Por Marcelo Semer, no site Justificando:
Para discutir Judiciário, crise e democracia, objeto de análise em uma obra que homenageou o jurista Pedro Serrano [1], me debrucei sobre o legado autoritário e seus reflexos no Poder. É oportuno retomar o tema, sobretudo, quando ainda existem governantes que celebram o golpe militar e a própria “comemoração” chega a ser autorizada judicialmente.
Ingo Muller relatando a história d’Os Juristas do Horror, explica como os magistrados alemães tiveram muito mais dificuldade em conviver com a República de Weimar [2] do que propriamente com os nazistas, a quem saudaram logo de cara:
“A maioria dos juízes alemães foram rápidos em resolver suas dúvidas, no entanto, apesar do ‘Decreto para a Proteção do Povo Alemão’ e o ‘Decreto para a Proteção do Povo e do Estado’ (…) apesar das táticas de terror da SA durante a campanha eleitoral de 1933 e as manobras de golpe que permitiram a ela controlar a polícia na maioria das províncias alemãs, o Conselho de Juízes da Federação emitiu uma declaração em 19 de março que expressava aprovação quanto à ‘vontade do novo governo em por fim ao imenso sofrimento do povo alemão’ e ofereceu sua cooperação na ‘tarefa de reconstrução nacional”.”[3]
Não se pode dizer que o Judiciário brasileiro teve para com a nossa ditadura um relacionamento muito mais distante ou abertamente conflituoso, em que pese momentos de confronto, de lado a lado, como a cassação dos ministros do STF, Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, ou a condenação da União à indenização no caso Herzog.
A participação do Judiciário em 1964 se inicia nos primórdios do golpe, com a tácita anuência do STF à falsa declaração de vacância de João Goulart em sessão do Parlamento, a pedalada com que se buscou, sem muita convicção, dar uma mínima roupagem jurídica ao golpe. Lembra Alexandre Zaidan Carvalho que o presidente do STF, Álvaro Ribeiro da Costa, não apenas participou da sessão no Congresso, como, dias após o golpe, em 17 de abril, discursou em apoio ao regime justificando o sacrifício provisório de algumas garantias constitucionais [4].
Como observa Carvalho, a propósito, o uso político do léxico revolução teve significado peculiar, sobretudo, no discurso dos juristas empenhados em oferecer uma justificativa ao golpe [5]. De uma forma ou de outra, como se acostumou a aclarar nos momentos mais candentes de ruptura política, as instituições permaneceram funcionando, embora não muito mais do que formalmente. Com as severas restrições impostas pelos atos institucionais que foram seguidamente excluindo da apreciação judicial a lesão de determinados direitos (das cassações de políticos, do AI-1, aos habeas-corpus do AI-5), a jurisdição se tornava relativamente inócua no que referia à possibilidade de controle do poder.
Para o historiador Robert Gellately, na Alemanha não houve necessidade de os nazistas realizarem um expurgo relevante no sistema policial e judicial porque a maior parte dos seus integrantes não teve qualquer dificuldade em se ajustar:
“Muitos integrantes do quadro da polícia e da Justiça tinham simpatia pela abordagem nazista e ficaram felizes em fazer parte de um regime que queria combater o crime e dar a polícia mais poder para operar da maneira que achasse mais apropriada.”[6]
A violência ao Estado de Direito tende a ser normalizada, inserida na rotina, e fazendo parte dos novos paradigmas, como viemos a descobrir também por aqui. Como relata Lédio Rosa de Andrade:
“(…) por volta de 1975, em um Congresso Nacional dos Magistrados, o então juiz de Direito, João Baptista Herkenhoff (…)em sessão plenária, propôs uma moção pedindo tão-só a volta do Estado de Direito (não incluiu a palavra Democrático) e foi derrotado de forma esmagadora, recebendo apoio apenas de três ou quatro congressistas.” [7]
Nem toda repressão da ditadura funcionou pelo direito penal subterrâneo, à sorrelfa, escapando ao controle judicial. Parte das prisões resultou em processos criminais, apreciados na Justiça Militar e, por vezes, reapreciados no Supremo Tribunal Federal. Por certo, o controle se exercia apenas sobre uma face visível da violência de Estado, mas mesmo nesta, com escassa revisão, seja pela convergência, pela submissão, ou simples negação. Circunstância das mais relevantes sobre a validade das provas, fundamentalmente a confissão policial (o objeto do desejo das torturas) vem a ser analisada na Comissão Nacional da Verdade, e fornece uma pequena mostra de como o assunto havia sido tratado judicialmente:
“De acordo com pesquisa conduzida por Swensson Junior, durante o regime militar de 1964 (…) o STF estabeleceu o entendimento de que as confissões extrajudiciais – aquelas obtidas na fase do inquérito policial militar, muitas vezes sob tortura – seriam admissíveis como prova quando testemunhadas e não contrariadas por outras provas (…)Como assentado no RC 1.255, as “confissões judiciais ou extrajudiciais valem pela sinceridade com que são feitas ou verdades nelas contidas” (RC 1.255, ministro relator Cordeiro Guerra, julgado em 20 de agosto de 1976).”[8]
Não se pode dizer que o panorama tenha se alterado significativamente no processo penal. O prestígio do inquérito policial representa uma correia de transmissão desde o CPP de 1941, de inspiração fascista, até os dias atuais, passando incólume e prestigiado não apenas pelas duas ditaduras, como pelos respectivos períodos de redemocratização. O abandono de um sistema inquisitorial jamais se concluiu por completo -a dificuldade em instituir hoje o Juiz das Garantias é uma mostra disso.
A transposição dos elementos de inquérito aos autos de um processo judicial permite que sejam utilizados como meios de prova, porque, a uma, não existe tarifação das provas que posicionem umas em relação a outras; a duas, porque o juiz se ampara no livre convencimento para amealhar, entre todos os elementos reunidos nos autos, provas para proferir a sua decisão.
Os perigos desse método também já foram descritos por Jacinto Coutinho:
“Quando o juiz é o senhor plenipotenciário do processo – ou quase - e pode buscar e produzir a prova que quiser a qualquer momento (na fase de investigação e naquela processual), não só tende de sobremaneira para a acusação como, em alguns aspectos, faz pensar ser despiciendo o órgão acusatório”.[9]
A questão do aproveitamento do inquérito policial é um legado inquisitório que se combina com a livre apreciação da prova, com o que se mantém a dinâmica autoritária como epicentro do processo. Assim explica Ricardo Gloeckner, analisando a montagem do código, pelo então ministro Francisco Campos:
“Campos depositará em duas categorias estruturantes esta função extra-processual de ‘combate’ à criminalidade exercida pelo direito processual penal: a-) nas mãos dos juízes os poderes instrutórios (poderes instrutórios ex oficcio) e b-) nas mãos destes juízes o princípio da livre apreciação da prova. Em última instância, o julgador, repetindo-se como protagonista do processo penal, poderá produzir e interpretar, ‘em conformidade com a sua própria consciência’, os elementos probatórios. Temos, portanto, uma ideia de monopólio de prova no processo penal, garantindo aos magistrados uma ampla e irrestrita liberdade no campo semântico e pragmático.”[10]
Tais críticas também podem ser endereçadas ao Judiciário dos períodos democráticos, dada a enorme prevalência das permanências sobre as rupturas. Como explica Anthony Pereira, a judicialização da repressão brasileira é circunstância determinante para que os crimes contra a humanidade dos anos de chumbo, até hoje não tenham sido apurados [11], contrariando jurisprudência pacífica no âmbito do direito internacional.
A ditadura se foi há mais de três décadas, mas o legado autoritário mantém-se presente no cotidiano das relações jurídicas. Isso tanto serve para normalizar a violência estatal (a omissão dos operadores do direito ao extermínio da juventude negra, por exemplo) como de incubação para novas aventuras autoritárias.
* Marcelo Semer é juiz substituto da Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo e membro da Associação Juízes para Democracia.
Notas:
[1] “Judiciário e democracia: quando a crise é o projeto”, in Democracia e Crise. Um olhar interdisciplinar na construção de perspectivas para o Estado brasileiro, LOPES, Anderson Bezerra e outros, Autonomia Literária, 2020.
[2] Los Juristas del Horror: La justicia de Hitler. El pasado que Alemania no puede dejar atrás. Tradução: Carlos Armando Figueiredo [para o espanhol]. Bogotá: Alavaro Nora, 2014:“Quando o Império Alemão chegou ao fim e um social-democrata declarou uma república, foi um golpe terrível para os membros do Judiciário que tinham sido muito monárquicos. ‘Toda a majestade caiu’, lamentou o primaz da Federação dos juízes, Johannes Leeb, ‘incluindo a majestade da lei’. Nas leis da república, ele viu um ‘espírito de mentira’, ‘um direito bastardo de partido e classe’.” (p. 21/2).
[3] Idem, p. 58.
[4] “Entre o dever da toga e o apoio à farda. Independência judicial e imparcialidade no STF durante o regime militar”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 32, nº 94, junho/2017.
[5] Idem, p. 4: “Nas manifestações públicas de aclamação da subida ao poder dos militares pelos juristas, a característica mais marcante foi a negação da expressão ‘golpe de Estado’…
[6] Apoiando Hitler. Consentimento e coerção na Alemanha nazista. Trad. Vitor Paolozzi. Rio de Janeiro, Record, 2011, p. 46.
[7] O que é Direito Alternativo. Florianópolis, Editora Obra Jurídica, 1998, p. 14.
[8] BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório final. Brasília, Governo Federal, 2014. Disponível em http://www.cnv.gov.br/
[9] “Sistema acusatório. Cada parte no lugar constitucionalmente demarcado”, in Revista de Informação Legislativa. Senado Federal, v. 46, n. 183, p. 103-115, jul./set. 2009, p. 111
[10] Autoritarismo e Processo Penal: Uma genealogia das ideias autoritárias no Processo Penal brasileiro. Rio de Janeiro: Tirant lo Blanch, 2018, p. 132.
[11] “Via judicial da repressão evitou mortes, afirma brasilianista”. Folha de S. Paulo, edição de 05/04/2004, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0504200414.htm.
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