Por Lygia Jobim, no site Carta Maior:
Em 26 de junho de 1997 a Organização das Nações Unidas, criou o Dia Internacional da Luta contra a Tortura com o fim de, não só combater a prática desta aberração, como oferecer amparo às suas vítimas.
Ao se falar em tortura o que primeiro nos vem à mente é a tortura praticada diretamente no corpo de uma pessoa. Quando com fins políticos e aplicada cientificamente, bem ensinada por especialistas, a marca que deixa nas vidas de suas vítimas, não se apagam. A tortura lhes torturará sempre, podendo levá-las, mesmo que tenha cessado há anos, ao suicídio, como foi o caso de Frei Tito de Alencar Lima, dominicano que se enforcou no Convento Sainte-Marie de La Tourette, em 1974, três anos depois de ter sido liberado e de Maria Auxiliadora Lara Barcelos, a Dodora, que, libertada também em 1971, cinco anos depois atirou-se nos trilhos de um trem numa estação de metrô, em Berlim Ocidental. Carregaram a tortura até não poder mais conviver com ela.
Da tortura física não posso falar a não ser por ouvir dizer. Só a conheço através de relatos que desgarram a sensibilidade, mesmo quando nos chegam de forma mitigada pela falta do cheiro de sangue, suor e excrementos, em filmes como Batismo de Sangue, dirigido por Helvécio Ratton, baseado no livro homônimo de Frei Betto.
No entanto, suas marcas se fazem presentes, eternamente presentes, nas mentes de pais, mães e filhos daqueles que passaram por ela. Estas marcas eu conheço bem, pois com frequência me percebo no exercício de imaginar o que fizeram ao corpo de meu pai, vítima da repressão da ditadura militar. O que fizeram a ponto de não me ter sido permitido vê-lo morto? Quanta dor ele suportou antes de morrer? Em que pensava enquanto lhe tiravam a vida?
São perguntas que, para mim, ficarão para sempre sem resposta e me torturarão até a morte. O que aconteceu, mesmo para aqueles que sabem como, onde, porquê e por quem, ficará ressonando em nossas vidas de familiares de mortos e desaparecidos como a nossa tortura. É a tortura além da tortura e que a impunidade só agrava, enquanto o Estado brasileiro não cumprir sua obrigação de punir os responsáveis.
A justiça sobre os crimes de lesa humanidade que as instituições devem à sociedade, até hoje não foi feita. Seus autores e mandantes estão impunes e a prática de tortura utilizada desde os tempos coloniais permanece ativa, de forma sistemática e generalizada, nas ruas e em lugares de detenção.
Mas quem tem consciência da gravidade deste crime e de suas consequências, e se referencia na ética, se vê com o compromisso de lutar para que esta prática ignóbil, monstruosa, inaceitável numa democracia, não mais aconteça. Praticada em delegacias e fora delas, por milicianos ou traficantes, contra os menos favorecidos, a população carcerária, jovens e crianças indefesas e tantos outros, ela continua a existir em nosso dia a dia.
Afinal, que país é este que mantém uma lei que anistia torturadores, crime considerado inafiançável por nossa Constituição? Que país é este que elegeu para o mais alto posto do Executivo, um adepto e incentivador da tortura o qual, em sua declaração de voto no impeachment da Presidente Dilma enalteceu um notório torturador, o Coronel Brilhante Ustra? Que se permite homenagear no Palácio do Planalto outro conhecido torturador – Major Curió -, responsável por desaparecimentos de opositores ao regime ditatorial na região do Araguaia?
A Lei de Anistia de 1979, ainda que tenha permitido a volta de tantos exilados e a liberação de presos políticos das masmorras, promoveu a anistia dos torturadores em uma interpretação falaciosa que se mantem até os dias atuais. A que serve esta interpretação senão à difusão da impunidade das forças repressivas, que violam direitos de cidadania agredindo, torturando e matando? Produz efeitos perversos e discriminatórios sobre a população pobre e periférica das grandes cidades, sobre indígenas e mulheres. Como ferramenta do poder contribui para manter a profunda desigualdade social, azeitando a máquina do capital.
É necessário, para que se ponha um freio à banalização desta ignomínia, que o Supremo Tribunal Federal reinterprete o quanto antes a Lei de Anistia de 1979, origem da certeza de impunidade que assola o país em todos os níveis e setores.
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