sexta-feira, 25 de junho de 2021

Ódio e amor nas redes sociais

Por Frei Betto, em seu site:


“Diga-me em que nicho da internet se encontra e direi se vou odiá-lo.” Se alguém frequenta uma tribo de Whatsapp ou Twitter de defesa dos direitos humanos e conecta outro de bolsonaristas, será inevitavelmente agredido, ofendido, ou sumariamente excluído dos contatos. E vice-versa.

Como afirma o doutor em Ciências da Comunicação, Moisés Sbardelotto, “não basta gostar ou desgostar de algo: é preciso também desgostar daqueles que gostam daquilo de que não gosto. A raiva e o rancor se digitalizam e permeiam sites e redes sociais digitais mediante expressões de intolerância, indiferença, desinformação, negacionismo, difamação, discriminação, preconceito, xenofobia. O ódio, assim, ganha forma de bits e pixels, principalmente pela ação dos chamados haters, os odiadores, aqueles que amam odiar.”

Tal situação faz parte de um fenômeno mais amplo e recente caracterizado pela difusão de desinformação e má informação, como as chamadas fake news. De acordo com Claire Wardle e Hossein Derakhshan, essa “poluição de informações em escala global” gera verdadeira “desordem informacional.”

As redes digitais me fazem lembrar o Coliseu, a arena dos gladiadores romanos. Como meros espectadores confortavelmente instalados em nossas casas, assistimos aos confrontos pela telinha do celular e, com frequência, repassamos a terceiros. Isso reforça os atos de violência simbólica, intolerância e fake news, o que acirra os ânimos e se contradiz ao adjetivar as redes de ‘sociais’, já que, nesse caso, não favorecem a sociabilidade, e sim a hostilidade. É o que o papa Francisco qualifica de “excomunicação”, a comunicação que exclui o outro.

Então não devemos denunciar o político que desrespeita as regras do jogo democrático, profere mentiras e viola os direitos humanos? Devemos sim! Mas respaldados por argumentos consistentes e provas inquestionáveis.

A etiologia do ódio demonstra que ele decorre de frustrações reprimidas que descontamos em outra pessoa. Para Freud, “o eu odeia, abomina e persegue, com intenção de destruir todos os objetos que constituem uma fonte de sensação desagradável para ele, sem levar em conta que significam uma frustração […] da satisfação das necessidades de autopreservação” (Pulsão e seus destinos, 1980[1915], p.160).

O hater (= aquele que odeia) sente prazer mórbido de descontruir o outro. Fora das redes digitais, uma pessoa que odeia a outra guarda essa amargura no coração e na mente, sem ter como atingir o alvo de seu ódio. É o veneno que ela ingere esperando que a outra morra...

No caso do ódio digital, a amargura encontra vazão imediata e condições de rapidamente atingir o alvo e compartilhar a ofensa com amplo leque de pessoas. O ódio digital fica armazenado nas redes e pode ser reativado a qualquer momento. Assim, o ódio pessoal se transforma em ódio social e global. E estabelece uma “confraria universal do ódio”, sem que haja a contrapartida capaz de fazer refluir essa onda deplorável – a educação para o amor.

Como afirma Sbardelotto, “a internet, assim, torna-se campo fértil para o crescimento de uma ‘cultura do descarte’ digital.” Ou como assinala o papa Francisco, tais atitudes visam a “destroçar a figura do outro, num desregramento tal que, se ocorresse no contato pessoal, acabaríamos todos por nos destruir uns aos outros” (Fratelli Tutti, 44).

O ódio digital é covarde. O emissor alardeia ofensas que seria incapaz de proferir cara a cara. E muitas vezes nem sequer se identifica. Assemelha-se àquelas pessoas que, na Idade Média, se deliciavam ao assistir a Inquisição queimar, em praça pública, supostos hereges.

A vida ensina que pessoas impregnadas de ódio são infelizes e trazem infelicidade a quem as cercam. Tentam encobrir sua fragilidade e insegurança sob a atitude de prepotência, arrogância, dono ou dona da verdade, ainda que não haja nenhuma consistência no que afirmam.

O desafio, portanto, é fazer das redes digitais uma escola de amorosidade. Muitos nichos reúnem tribos que se identificam por comungarem a mesma fé, a mesma proposta política, os mesmos objetivos.

Zigmunt Bauman aponta como uma das causas da “modernidade líquida” a falta de modelos a serem seguidos. Fui educado no altruísmo graças à educação religiosa que me levou a admirar santos e santas dedicados a promover o bem do próximo. Valores como solidariedade, fome de justiça, utopia de um mundo melhor, me vieram da educação politica, que me ensinou a admirar Ajuricaba, Tiradentes, Zumbi dos Palmares, Prestes, Che Guevara, Fidel, Rosa Luxemburgo, Marighella, Nelson Mandela, Martin Luther King, Gandhi e Ho Chi Minh, entre outros.

A quem nossas crianças e jovens aprendem a admirar? Quais os modelos que abraçam? Muitos se espelham em ídolos de TV, futebol, música, show business. São boas pessoas em geral, mas não majoritariamente exemplos de altruísmo e idealismo. A maioria espelha os “valores” de uma sociedade hedonista e consumista: fama, poder, riqueza e beleza. O que tende a exacerbar o ego, despertar ambições desmedidas e, em consequência, frustrações que suscitam baixa autoestima e inveja impregnada de ódio. Como bem definiu Tomás de Aquino, “a inveja é a tristeza de não possuir o bem alheio”.

Esse mundo de perda de referências éticas e dissolução de valores, no qual tudo é fluido e mutável, é o que Bauman qualifica de “modernidade líquida”. Era em que as relações humanas são voláteis, intangíveis, inconsistentes. Época da globocolonização, que nos impõe o consumo frenético, a competitividade desenfreada, a repugnância (em forma de racismo e preconceito) ao diferente.

A psicologia ensina que pessoas muito inseguras tendem a ser agressivas, a manter relações tóxicas. Ficam ansiosas em transitar nas redes digitais em busca da certeza de que outras pessoas são mais infelizes do que elas ou merecem ser depreciadas. Essa insegurança decorre do medo. Medo de serem rejeitadas, de empobrecer, de não serem devidamente reconhecidas, amadas, admiradas.

A conexão universal com um número infinito de pessoas leva muitos a buscarem se espelhar no próximo, comparar-se aos demais, perseguir a certeza de que suas vidas valem a pena ser vividas. Mas esse espelhamento precisa ter referências positivas em pessoas e atitudes solidárias, idealistas, capazes de fazer de suas vidas um bem e um dom para que outros tenham vida. E isso só se obtém em três escolas: a da arte, a da espiritualidade e a da política, quando abraçadas com espírito crítico.

* Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros. Assine e receba todos os artigos e livros do autor: mhgpal@gmail.com Livraria virtual: freibetto.org.

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