Por Maíra Mathias e Raquel Torres, no site Outras Palavras:
Justo no momento em que a CPI da Pandemia começou a se debruçar sobre o tema mais promissor até agora – a relação entre o governo federal e empresas privadas para a compra de vacinas, especialmente a da Covaxin –, apareceu Luiz Paulo Dominghetti.
Sua denúncia-bomba à Folha e a imediata convocação para depor eram o prenúncio de fortes emoções.
Mas o que aconteceu ontem superou todas as expectativas.
Quando, do nada, ele sacou da cartola um áudio que incriminaria o deputado Luís Miranda por tentar “negociar a busca por vacinas diretamente com a Davati”, muitas luzes de alerta piscaram. Miranda – cujo depoimento na semana passada implicava o governo na pressão pela assinatura de um contrato irregular para a aquisição da Covaxin, intermediada pela Precisa Medicamentos e colocou o presidente Jair Bolsonaro no centro do palco por nada fazer diante do alerta de irregularidades – de repente aparecia no áudio como alguém que tentava negociar vacinas para um “comprador com potencial de pagamento instantâneo”.
O senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), que havia decidido participar da sessão, foi o primeiro a se animar.
“O áudio é importante”, disse, quando o presidente Omar Aziz (PSD-AM) começou a esboçar desconfiança.
“Está claro que trata de vacina”, respondeu ao relator Renan Callheiros (MDB-AL), quando este mencionou a possibilidade de que tratasse de outro insumo.
Acontece que não demorou para se apurar que o áudio de fato era antigo, de outubro do ano passado, e não tinha nada a ver com vacinas.
Miranda registrou em cartório uma ata dando conta de que as mensagens tratam da venda de luvas nitrílicas para um indivíduo identificado como ‘Rafael Luvas’.
A oposição começou a suspeitar que Dominguetti tenha sido “plantado” pelo governo para produzir provas fraudulentas. E o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) chegou a pedir que se avaliasse sua prisão em flagrante pelo falso testemunho.
Dominguetti se defendeu dizendo que recebeu o áudio recentemente de Christiano Alberto Carvalho, representante credenciado da Davati, sem data nem contexto, e apenas acreditou que se tratasse da venda de imunizantes.
Omar Aziz negou o pedido de prisão.
Desmentir o áudio não foi suficiente para evitar a formação de um tumulto na CPI – além de uma ação orquestrada das redes bolsonaristas na internet.
Imediatamente após a divulgação do áudio, elas foram inundadas com mensagens indicando que Miranda teria interesse pessoal em fazer a denúncia a Bolsonaro.
“Já faz tempo que os grupos bolsonaristas estavam desalinhados. Não falavam sobre os mesmos temas e cada grupo tinha a sua própria agenda, ao contrário do que acontecia em 2018, 2019 e 2020. Surpreendentemente, hoje a orquestração voltou. Ou seja, quem estava esperando o Dominguetti ir para a CPI já estava esperando algo, algum conteúdo para ser compartilhado”, conclui David Nemer, pesquisador que estuda e monitora esses grupos, ao Congresso em Foco.
Obviamente, essas redes não viralizaram a informação de que o áudio, nesse contexto, é uma fraude.
Jair Bolsonaro, de quebra, comemorou: “Eu quero saber como (a imprensa) vai reagir com a questão da CPI de hoje. Foi bonito, hein? A imprensa deve estar se contorcendo, se mordendo”, disse ele, em sua transmissão ao vivo ontem à noite.
Inimiga da perfeição
A repórter Constança Rezende, que escreveu na Folha a primeira matéria sobre a propina, publicou no jornal um relato sobre como foi sua apuração do caso, o que é bem interessante de se ler.
Ela conta que não foi procurada por Dominguetti, mas chegou a ele após descobrir o contato do filho de Cristiano Alberto Carvalho, que, por sua vez, lhe passou ao pai. Cristiano lhe falou sobre Dominguetti e, após insistência da repórter, acertou uma conversa entre ambos.
A entrevista com Dominguetti aconteceu no dia 29, mesma data em que o furo foi publicado.
Esse pode ser mais um daqueles casos em que a pressa para publicar uma reportagem faz com que parte da apuração fique de fora.
Em seu relato, Constança diz que o site G1 tinha publicado, naquele mesmo dia 29, uma matéria mostrando que a CPI começara a investigar as negociações da Davati com o ministério: “A reportagem então o informou [a Cristiano] que a imprensa já estava noticiando de olho no tema e enviou a ele o link do G1“, escreve ela, apontando que, logo depois disso, Dominguetti aceitou falar.
O episódio não deixa de sugerir que havia pressa também da própria Folha em noticiar o escândalo antes de outros veículos que já estavam na pista.
Mas com isso ficaram várias pontas soltas, como comentamos nesta edição da news, quando falamos sobre o furo.
A história era, desde o começo, muito esquisita e, embora a entrevista com Dominguetti fosse uma informação quentíssima, ela não deveria ter se sustentado sozinha.
Além de a Davati ser uma empresa de atuação suspeita, já tendo se envolvido num esquema aparentemente fraudulento de doses no Canadá, o próprio Dominguetti tem suas particularidades.
Policial militar da ativa, ele nem pode trabalhar para empresa nenhuma, como logo se observou.
Na CPI, disse que ganha pouco e atua como intermediador de insumos farmacêuticos para “complementação de renda”, recebendo uma porcentagem do que vende.
Se o Ministério da Saúde assinasse o contrato de 400 milhões de doses que estava na mesa, ele acredita que “receberia em média de US$ 0,03 a US$ 0,05 por dose”.
Isso daria uma “complementação de renda” de pelo menos US$ 12 milhões…
Os indícios de picaretagem da Davati foram fartamente usados pelos senadores da base aliada para defender o governo Bolsonaro – que, no entanto, continua tendo muito o que explicar.
Documentos mostram que o Ministério da Saúde tentou de fato negociar doses da vacina da AstraZeneca com um intermediário – sendo que a farmacêutica sempre deixou claro que só negociava diretamente com governos e organismos multilaterais.
Além disso, não negou até agora que houve pedido de propina. E, para completar, exonerou Roberto Ferreira Dias, acusado por Dominguetti de negociar esse suposto pixulé, sem nenhuma investigação.
A história, segundo Dias
Roberto Ferreira Dias, que foi exonerado do cargo de diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde na terça-feira, resolveu enviar uma nota à imprensa para rebater as denúncias que pesam contra ele.
No texto, sugere que está sendo usado como “cortina de fumaça” e “fantoche” e dá a entender que há outros envolvidos em irregularidades que não foram expostos até o momento. “O fato é que, manifestamente, existem terceiros interessados…”.
Além da acusação de “pressão atípica” para a compra da Covaxin feita pelo servidor Luis Ricardo Miranda na semana passada, Dias é personagem central da história contada por Luiz Paulo Dominguetti.
Segundo o PM, durante um jantar em 25 de fevereiro, Dias disse que a continuidade da negociação dependia do pagamento de US$ 1 de propina por dose.
Apadrinhado por Ricardo Barros, Dias confirmou ter conversado com Dominguetti sobre vacinas nesse jantar, mas negou ter pedido propina para fechar negócio.
Ainda de acordo com ele, o PM foi levado ao local pelo tenente-coronel Marcelo Blanco, também integrante do Departamento de Logística do ministério.
No dia seguinte, 26 de fevereiro, aconteceu a reunião formal, com Dominguetti representando a Davati. Dias afirma que listou quais documentos seriam necessários para dar início às negociações.
A partir daí, as comunicações que começaram no dia 22 de fevereiro não com o PM, mas com o CEO da Davati, teriam cessado.
Na nota, Dias se justifica. Segundo ele, muitas empresas se apresentam com ofertas durante a pandemia e, por conta da crise, as propostas – ainda que improváveis – precisam ser ouvidas.
Ainda de acordo com essa versão, as requisições de documentos que fez impediram a Davati de conquistar uma carta de intenções do ministério que serviria como “passaporte” para negociar em nome do governo brasileiro.
Se isso faz sentido, não sabemos.
Nada exigente
Mas Dias não foi nadinha exigente no caso da vacina indiana Covaxin.
Documentos obtidos pela Folha mostram que, no dia 22 de fevereiro, ele aprovou a emissão da nota de empenho no valor de R$ 1,61 bilhão em favor da Precisa Medicamentos quando ainda havia pendências básicas no horizonte como… a assinatura do contrato entre ministério e empresa.
Não só: “Não havia no processo, naquele momento, documento que comprovasse a regularidade fiscal da Bharat Biotech na Índia. Nem mesmo o documento equivalente ao CNPJ havia sido providenciado”, diz a Folha, que na reportagem lista ainda mais coisas em falta.
E-mails obtidos pelo jornal mostram a cronologia da pressão exercida pela Precisa, através do advogado da empresa Túlio Belchior Mano da Silveira. O pano de fundo é ainda a falta de documentos.
Em 18 de fevereiro, o advogado mandou um e-mail ao gabinete do então secretário-executivo, Élcio Franco, pedindo que o Ministério da Saúde assinasse o contrato “o quanto antes”.
Quatro dias depois, novo e-mail foi enviado, desta vez à Coordenação-Geral de Aquisições de Insumos Estratégicos para Saúde.
Silveira dá a entender que houve conversa com alguém do ministério mais cedo, e formaliza o pedido para que o contrato seja assinado sem os documentos que faltam.
“Naquele momento, o processo não tinha nem sido enviado à consultoria jurídica do Ministério da Saúde, formada por integrantes da AGU (Advocacia-Geral da União). Um contrato só é assinado quando há análise prévia da viabilidade jurídica da proposta”, explica o jornal.
A minuta do contrato foi remetida à consultoria jurídica na noite do dia 22.
O parecer ficou pronto dois dias depois, trazendo dez recomendações que não foram atendidas pelo Ministério da Saúde antes da assinatura do contrato, que aconteceu no dia 25.
Então… Francisco Maximiano, dono Precisa Medicamentos, enviou ontem um documento à CPI para apresentar sua versão dos fatos.
E essa versão é engraçada: segundo ele, o relato dos irmãos Miranda ao presidente Jair Bolsonaro feito no dia 20 de março não poderia ser verdadeiro porque, nessa data, a carta de intenção de compra da vacina ainda não tinha sido enviada pelo Ministério da Saúde.
Como vimos, as negociações já estavam de vento em popa em fevereiro.
Grupo evangélico em ação
Porque o roteirista do Brasil tem muita imaginação, agora ao rolo da Davati se soma uma organização evangélica. A empresa esteve envolvida na oferta de vacinas a prefeituras e governos estaduais, dessa vez por meio da Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), presidida pelo reverendo Amilton Gomes de Paula.
A Agência Pública apurou que, em março, a Senah enviou cartas aos gestores oferecendo as doses, que estariam em domínio da Davati.
Elas seriam vendidas a US$ 11 a unidade, com prazo de entrega de até 25 dias.
O preço é o triplo do que foi fechado com a Fiocruz.
E o reverendo Amilton Gomes também esteve no Ministério da Saúde no dia 4 de março.
Em suas redes sociais, ele disse na época que se reuniu com representantes da pasta “para articulação mundial em busca de vacinas”.
Na visita, estava com Dominguetti. O policial confirmou essa informação à CPI.
Pra deixar de ser espectador
A Procuradoria-Geral da República recebeu uma descompostura e tanto de Rosa Weber.
Como sabemos, a PGR pediu à ministra que adiasse a decisão de abrir investigação contra Jair Bolsonaro no caso da Covaxin até que a CPI conclua seus trabalhos.
Para ela, que rejeitou o pedido da Procuradoria ontem, a postura mostra que a PGR “desincumbiu-se de seu papel constitucional”.
“A instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito não inviabiliza a apuração simultânea dos mesmos fatos por outros atores”, escreveu a ministra.
“No desenho das atribuições do Ministério Público, não se vislumbra o papel de espectador das ações dos Poderes da República”, acrescentou.
Também ontem, Weber enviou ontem à PGR outra notícia-crime, desta vez relacionada às suspeitas de solicitação de propina na negociação de vacinas no governo.
O retorno do plano popular
Na terça-feira, Arthur Lira (PP-AL) ressuscitou a comissão especial criada em 2017 para mudar a lei dos planos de saúde.
Na época, não faltaram polêmicas.
O relator era Rogério Marinho, hoje ministro do Desenvolvimento Regional.
Uma das muitas propostas apresentadas por ele era a redução do valor das multas aplicadas quando as operadoras deixam de cumprir pontos no contrato.
“O substitutivo visava a desregulamentação do mercado, a retirada dos direitos dos consumidores desses serviços”, resume Ana Carolina Navarrete, do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), para o Outra Saúde.
Ela acompanhou de perto a discussão e lembra que a comissão “deu muito trabalho” e só foi enterrada porque prejudicava não só a população, mas também profissionais de saúde, principalmente médicos.
Navarrete avalia que a reabertura da comissão deve ser entendida como parte de um “movimento articulado”, que inclui investidas dos ministérios da Saúde e da Economia, principalmente deste último.
Não por acaso, no mesmo dia em que Lira constituiu a comissão especial, o SBT noticiou planos da pasta comandada por Paulo Guedes.
Segundo a notícia, a equipe econômica está desenhando um PL “para flexibilizar regras que regulam as operadoras da saúde privada”.
O objetivo é reduzir a cobertura que as empresas são obrigadas a oferecer. Mas reduzir tanto que o contrato possa cobrir apenas uma doença.
Se for isso mesmo, a ideia conseguirá ser a pior versão possível do “plano popular” defendido por Ricardo Barros quando ele era ministro da Saúde.
Dá para acompanhar as movimentações da comissão por aqui.
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