segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Bolsonaro não é um palhaço, é um monstro

Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:

Nada pior que a naturalização do mal. De repente, o que parecia inaceitável se torna habitual. Há várias circunstâncias que contribuem para essa pacificação da revolta: a repetição, o inusitado da persistência do mal e a análise viciada da realidade. É o que explica que, hoje, se acredite que a covid-19 está relativamente controlada, diferentemente do que ocorria há um ano. Acompanha-se as curvas de morte em decréscimo sem olhar o que elas ainda sinalizam de ameaça real e imediata.

No entanto, os dados são inquestionáveis: adoece-se e morre-se mais hoje do que no pior momento do ano passado. Mesmo assim, se fala cada vez mais em flexibilização, afrouxamento de controles e estímulo à retomada das atividades e aglomerações. Nem mesmo o exemplo, que não seguimos no passado, em relação à situação na Europa, serve de alerta: mais uma vez acreditamos magicamente que a variante delta não chega até nós com o mesmo estrago, ainda que a vacinação esteja se arrastando.

Com Bolsonaro a coisa segue mais ou menos o mesmo roteiro. Suas declarações se tornam, a cada dia, mais criminosas e, no entanto, parece haver certa complacência com a estupidez. O Centrão está dando as cartas, a corrupção marca presença em várias áreas e inclusive as duas coisas juntas – corrupção e Centrão na mesma medida, com a nomeação de Ciro Nogueira para a Casa Civil – , sem falar no pior da militarização, com ameaças explícitas de interrupção da normalidade democrática. Há uma atmosfera de banalização do horror.

Em tal situação, parece mais fácil considerar o ex-capitão como uma figura polêmica, patética, limitada e incompetente, como cravaram pesquisas recentes. Nesse horizonte, mais eleitoral e pragmático que político ou ético, cabe trabalhar para mudar o detentor do poder sem necessariamente mudar seus princípios. Livrar-se de Bolsonaro e do bolsonarismo, sem abrir mão de seu projeto econômico e de extirpação dos valores democráticos, distributivos e participativos. Ficou fácil criticar a figura pública, que se deixa criticar exatamente para continuar fazendo o que quer.

É preciso mudar a forma de reagir a Bolsonaro. Não basta explicitar seus limites e mesmo escarnecer de seus defeitos, ancorado em enquetes e opiniões de colunistas liberais e jornalistas da chamada imprensa profissional. Essa não deixa de ser uma continuidade da estratégia de normalização. Há um clima de “agora vai”, que apenas apazigua e amortece ações mais concretas.

O presidente não surpreende mais em seus desvarios, ele apenas confirma o que era bravata, só que agora em nível mais avançado. O que parecia retórica, se tornou um conjunto de ações desagregadoras. Que vão da saúde à educação, da economia ao trabalho, passando pela justiça, meio ambiente, direitos humanos, cultura e relações internacionais. O projeto de Bolsonaro está assumido e maduro. Ele faz o que prometeu. Com exceção da submissão ao que ele chamava de “velha política”. Nesse caso, ele se contradisse para continuar o mesmo. Nada é tão ruim que não possa piorar.

O presidente não apenas defende ideias fascistas e o extermínio da população. Ele se curva objetivamente aos representantes do nazismo internacional e opera uma política sanitária de corte genocida. Já foi o tempo de atacar a educação com palavras, ele cortou recursos das universidades, abriu caminho para o ensino militarizado e prepara o golpe final com o projeto de ensino em casa. Uma pátria assumidamente deseducadora e desescolarizada.

A polarização entre economia e vida, que por algum tempo concentrou a análise do governo em relação ao controle da pandemia, se espalhou para outros setores da saúde pública. O que parece ser um método: anunciar o pior, esperar pela repercussão e consolidar o equívoco técnico ou desvio político como atribuição do governo.

Recentemente, Jair Messias vetou projeto que obrigava planos de saúde a cobrir despesas com medicamentos orais para tratamento do câncer. Planos deveriam servir para atender seus usuários (e financiadores) por meio de uma gestão profissional e prestando contas aos órgãos reguladores. Para o governo, no entanto, eles existem para dar lucro, mesmo que seja diminuindo suas contrapartidas com jamegão do presidente. A regulamentação da saúde complementar é dever do Estado, em nome da defesa da vida dos cidadãos. Não é um princípio de economia, mas de saúde pública.

Em sua justificativa do veto, ele alegou que a obrigatoriedade da cobertura seria prejudicial às empresas. De uma só penada, condenou doentes a mais sofrimento com internações para quimioterapia, defendeu a saúde do caixa dos planos e gerou desconfiança em relação ao sistema. Uma ação desumana, inepta e destrutiva. Além do mais, não parece lógico que internar seja melhor que medicar em casa, além do fato de a negação de um auxílio terapêutico levar ao agravamento da doença e consequentemente a mais despesas.

As vacinas contra a covid-19 foram denegadas dezenas de vezes e das mais abjetas formas, até a revelação do esquema de corrupção armado pelos militares de colarinho branco e colete do SUS, de acordo com a CPI do Senado. Os imunizantes poderiam controlar a pandemia e contribuir com o retorno da normalidade econômica, mas ficaram reféns do imediatismo somado à desumanidade. Que agora se repete no caso do medicamento para o câncer. Há uma variação do projeto genocida com a retirada de rebanho da responsabilidade dos planos de saúde.

O grande risco não está em ser governado por um palhaço, o que é vergonhoso para todos, mas perceber que temos um monstro na presidência. Não basta desconstruir Bolsonaro, como têm feito os neocorajosos da imprensa burguesa, fazendo a cama para a emergência ainda incerta da terceira via conciliatória. Para cada uma dessas figuras execráveis se exige uma ação política exemplar. Ao palhaço, o ridículo. No caso do monstro, há que se ir além. É preciso destruí-lo.

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