segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Fugir da guerra cultural ou enfrentá-la?

Por Jair de Souza


De repente, aqui estamos nós enfrentando um debate nada menos do que sobre o papel histórico desempenhado pelos chamados bandeirantes na formação da nação brasileira.

Sim, trata-se de algo inesperado, mas, nem por isso, de pouca relevância para a luta popular por emancipação.

Estivessem ou não conscientes das possíveis consequências de sua ação, ao tocar fogo na estátua de Borba Gato, os integrantes do grupo que se denominou “Revolução Periférica” trouxeram à tona para discussão um tema que ainda não estava em pauta para boa parte da militância de esquerda do país.

Bem, não estava na ordem do dia, mas cabe perguntar: Por que não estava? Antes de abordar diretamente esta questão, gostaria de fazer um breve preâmbulo para tornar mais compreensível o que vou tentar transmitir.

Queria iniciar dizendo que entendo e compartilho da estranheza expressada de boa fé por várias pessoas quanto à (in)oportunidade do momento em que a ação foi deslanchada. Estávamos em meio ao processo nacional de luta contra o governo Bolsonaro, que culminaria com os atos públicos unitários naquele próprio dia.

Com um pequeno esforço de exercitação mental, não seria difícil dar-se conta de que tal atitude poderia servir para desviar o foco da atenção do resultado efetivo almejado com a realização das manifestações anti-Bolsonaro daquele dia. Sim, esta preocupação deveria ter sido levada em conta, embora, na verdade, sua incidência sobre o número de participantes nas atividades e no nível de entusiasmo dos mesmos, nada, ou muito pouco, alterou.

Tenho a impressão de que ninguém deixou de ir aos atos programados por causa do ataque efetuado contra a estátua de Borba Gato. No entanto, precisamos reconhecer que houve, pelo menos, um desentendimento sobre a necessidade de atuação combinada e coordenada do conjunto das forças populares. Sobre quem deve recair a responsabilidade por esta falha é algo que não me sinto em condições de responder neste instante. Mas, considero plenamente válido que se façam questionamentos a respeito.

Muito diferente e inaceitável foi o comportamento que pudemos detectar em certas pessoas vinculadas a partidos de esquerda ou a meios de comunicação progressistas. Lamentavelmente, vimos gente externando seu aval à prisão do líder popular Paulo Galo, dando por justificativa válida sua violação das leis estabelecidas; e outros que se puseram a tentar resgatar positivamente o legado dos bandeirantes, apresentando-os como verdadeiros forjadores da nação brasileira.

Sobre os que se recusaram a manifestar sua reprovação ao ato de repressão contra uma liderança popular que estava em luta, ainda que pudesse estar equivocado, quero expressar toda minha repulsa. Considero tais pessoas indignas de estarem associadas a nosso projeto de busca por um mundo mais digno e justo para o povo trabalhador.

Agora, para aqueles que estando filiados a agrupações políticas de esquerda e procuraram fazer uma leitura positiva dos bandeirantes, como se eles realmente tivessem tido um papel histórico favorável à evolução da luta popular no Brasil, gostaria de chamar-lhes a atenção para o grande equívoco histórico em que estão metidos.

A argumentação clássica de que, com sua atuação, os bandeirantes foram os grandes artífices da grandeza e da unidade do Brasil em que vivemos me parece não apenas ingênua, como intrinsecamente maligna. Ingênua, por colocar como inerentemente positiva a ideia de grandeza e unidade. Imagino que nenhum cidadão suíço se sinta mais insignificante e mais infeliz ao constatar que seu país é infinitamente menor e menos unificado do que o nosso Brasil. Claro que possuir um território amplo e extenso pode ser um fator positivo, mas não é de por si um indicativo de uma vida melhor para o povo de tal país.

No entanto, vejo como algo muito mais grave o fato de julgar como benéficas as investidas dos bandeirantes pelos interiores de nossas terras, sem nenhuma preocupação sobre o que isso significou para os povos que sofreram os efeitos dessas ações. Não posso deixar de fazer um paralelo com o pensamento hitleriano que justificava em termos parecidos sua expansão colonialista para o leste europeu. Afinal, por que não ver com bons olhos que uma raça superior avance e ocupe territórios que vinham sendo ocupados por seres inferiores? Ou, em outras palavras, como ser contra o irrefreável avanço das forças da civilização por sobre povos decadentes? Por favor, entendam que estou sendo irônico!

Ainda dentro desse espírito, também encontramos justificativas do mesmo naipe para glorificar a grandeza e pujança dos Estados Unidos. São esses mesmos argumentos que servem para tornar aceitável o extermínio quase total das civilizações indígenas da América do Norte. Afinal, como gostam de salientar os defensores dessa visão, se não fosse por isso, não se teria forjado um país e uma nação tão forte e poderosa como são os Estados Unidos de hoje. E que se fodam os pele-vermelhas, que só estavam ali para atrapalhar o progresso da humanidade, não é mesmo?

E, como não podia deixar de ser, esta também é a base da argumentação empregada pelos sionistas israelenses para justificar a expulsão dos palestinos de suas terras milenárias e o extermínio dos que não aceitam passivamente sua expulsão. E quem vai negar que foi assim que se ergueu o Estado de Israel, o país mais potente de toda aquela região ao longo da história?

Mas, e o problema da guerra cultural, como vamos evitar os percalços que ela nos impõe?

Ora, bolas, vamos deixar de bobagens. O imperialismo e as forças que o apoiam querem travar a guerra cultural naquelas questões onde eles creem que podem levar alguma vantagem em função do atraso cultural de nossos povos e seus consequentes preconceitos. Eles sabem que devem fugir de todo debate que envolva questões materiais concretas, daquilo que influi e determina o nível de vida real das pessoas. É por isso que eles tratam de endereçar os debates para temas da moral e de bons costumes, da família, de religião, etc.

Mas, eles não têm nada a ganhar com a discussão de assuntos relacionados ao imperialismo, ao genocídio dos povos indígenas, ao racismo. Se eles sentissem que poderiam levar alguma vantagem nessas abordagens, eles mesmos já teriam se encarregado de colocar em evidência tais questões. Não foi por simples benevolência que os grandes meios associados às classes dominantes deram tratamento discreto ao ateamento de fogo no Borba Gato. Eles também não desejam que o tema entre em pauta. Seria muito arriscado, eles não têm nada a ganhar.

Sim, a guerra cultural está aí, e vai continuar estando. Claro que nesta guerra, como em qualquer outra guerra, cada exército procura travar as batalhas no momento e nas condições mais apropriadas para suas forças. Porém, seguramente, na atualidade, nem o imperialismo nem as forças que a ele se associam em nosso país estão em condições de tirar proveito de uma campanha de fustigamento dos símbolos que mais expressam a face delinquencial de nossas classes dominantes, como são os símbolos relacionados aos bandeirantes.

Volto a reiterar, devemos e podemos pôr em discussão a conveniência ou inconveniência do ato contra a estátua de Borba Gato da maneira como ele se deu, mas nunca a validade moral do mesmo. Muito menos, não podemos deixar de expressar nossa solidariedade àqueles líderes populares que estão sendo perseguidos em razão de sua justa demonstração de rebeldia.

Toda nossa solidariedade a Paulo Galo e aos demais perseguidos por lutar por uma vida mais digna!

* Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.

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