Foto: Ricardo Stuckert |
No Brasil de hoje, há duas grandes correntes político-ideológicas que ameaçam a democracia, o desenvolvimento e a soberania do país: o neoliberalismo bolsonarista e o neoliberalismo tardiamente anti-bolsonarista.
A ameaça da primeira corrente, o neofascismo bolsonarista ou neofascismo neoliberal, é clara, direta e iminente.
Bolsonaro, um admirador confesso de ditadores e torturadores, agride diuturnamente as instituições democráticas, a Constituição e qualquer um que dele discorde.
Sua estratégia fascista de confronto permanente e difusão de ódio visa gerar instabilidade, motivar seus seguidores fanáticos, enfraquecer as instituições e, em última instância, implantar um regime autoritário com o apoio das polícias, de alguns setores das Forças Armadas, dos grupos religiosos de extrema direita e de segmentos mais atrasados do chamado poder econômico.
Para ele, não estaria mal que o Brasil tentasse seguir o exemplo recente da Bolívia.
Já a segunda corrente representa uma ameaça mais sutil e dissimulada, mas, nem por isso, menos perigosa, no médio e longo prazo.
Em primeiro lugar, é preciso considerar que os que hoje se horrorizam com Bolsonaro o estimularam e o apoiaram, mesmo sabendo muito bem quem ele era.
Os que hoje se arvoram em defensores da democracia e da Constituição também não tiveram pejo de apoiar um golpe contra uma presidenta honesta, que não havia cometido nenhum crime. Mesmo os mais ferrenhos apoiadores do golpe hoje reconhecem que Dilma Rousseff foi ilegalmente apeada com base na escusa inventada das “pedaladas fiscais”. O golpe foi uma clara “pedalada inconstitucional”, uma pedalada contra a democracia. Assim, o compromisso desses bolsonaristas arrependidos com a democracia não parece ser muito sólido.
Em segundo, o neoliberalismo tardiamente anti-bolsonarista, como todo neoliberalismo, socava os fundamentos econômicos, sociais e políticos de uma verdadeira democracia.
Não é segredo para ninguém que há uma crise geral das democracias e dos sistemas de representação política, fortemente golpeados pelas desigualdades ocasionadas pelas políticas neoliberais. Como fica evidente em obras como a de Piketty, o padrão de acumulação capitalista predominante a partir das décadas de 1970 e 1980 do século XX parece cada vez mais incompatível com a democracia.
A implantação progressiva do chamado modelo neoliberal reverteu, em maior ou menor grau, o progresso social e político feito ao longo do pós-guerra, no qual a socialdemocracia consolidou o Estado do Bem-Estar e produziu crescimento econômico com redução das desigualdades, eliminação da pobreza e oferta de serviços públicos gratuitos.
O grande crescimento das desigualdades, a erosão do Estado de Bem-Estar, a redução da participação dos salários no PIB, a extinção progressiva dos direitos trabalhistas e sociais, o desemprego estrutural, o crescimento das formas de trabalho com baixa proteção, a ausência de oportunidades, a reversão da expectativa de que as novas gerações teriam uma vida melhor que as anteriores etc. minaram as classes médias e os pilares sociais de uma democracia estável e substantiva.
Nas nações desenvolvidas, há uma desconfiança em relação aos partidos tradicionais e às instituições democráticas, o questionamento dos sistemas de representação, a emergência do denominado “populismo de direita”, a exacerbação das diferenças ideológicas e um sentimento mais ou menos generalizado de que a atividade política não cria alternativas para solucionar os problemas dos países e para melhorar a vida da maioria da população.
Muitos autores, como Thomas Piketty, Christian Laval, Noam Chomsky e Joseph E. Stiglitz, só para citar os mais conhecidos, destacam essa relação estreita entre o capitalismo financeirizado e desregulado, o aumento das desigualdades, a erosão dos Estado de Bem-Estar e a crise que atinge em cheio as democracias e a legitimidade dos sistemas de representação política. Obviamente, são esses fatores que explicam também a eclosão de forças de direita e de extrema direita em todo o mundo.
No caso do Brasil e da América Latina de um modo geral há agravantes. Aqui, diferentemente do que acontece na Europa e em outras regiões, a crise das democracias manifesta-se também na eclosão de golpes de Estado de natureza diversa, que incluem tanto golpes “brancos”, mascarados por decisões jurídicas e institucionais, quanto por típicas quarteladas sustentadas pela força e pela violência, como a da Bolívia.
Mas, mesmo levando em consideração essas diferenças significativas, parece-nos que a causa principal da crise dos sistemas políticos e das democracias é basicamente a mesma em todas as regiões: a predominância do modelo neoliberal e das políticas de austeridade, combinadas com a crise econômica mundial.
Por conseguinte, a defesa real da democracia e suas instituições implica, necessariamente, a rejeição da agenda ultraneoliberal e das políticas de austeridade que erodem os fundamentos econômico e sociais de uma democracia substantiva e funcional.
No médio e longo prazo, a Emenda Constitucional nº 95, que impôs uma austeridade permanente e que expulsa os pobres do Orçamento, tende a ser tão prejudicial à democracia quanto Bolsonaro. O mesmo pode ser dito em relação à regressiva reforma trabalhista, à reforma previdência etc.
Assim sendo, a chamada “Terceira Via”, como alternativa à polarização entre Lula e Bolsonaro, não representa uma alternativa democrática. Ela é tão antidemocrática quanto Bolsonaro, embora de modo diverso. As duas têm o mesmo projeto econômico e social arcaico, regressivo e antidemocrático.
Uma democracia estável e real não pode ser constituída com base em modelos que investem na desigualdade, na erosão do Estado de Bem-Estar, na extinção de direitos, na precarização do trabalho, na fragilização dos serviços públicos, na privatização de setores estratégicos, na abertura incondicional e generalizada da economia, na destruição da soberania etc.
Biden, por exemplo, sabe disso e está tentando reconstruir as bases da economia dos EUA. Como Lula o fez, Biden está investindo em igualdade. Está investindo nos pobres e excluídos. Tenta reverter a grotesca desigualdade criada pelas desastrosas políticas neoliberais. Tenta, como Roosevelt fez, voltar a criar uma classe média afluente e uma classe trabalhadora sindicalizada e plena de direitos para fundamentar uma democracia infensa a forças neofascistas como o trumpismo, na qual o Capitólio não seja mais invadido.
No Brasil, a única grande força política, sem desmerecer outras de menor expressão, que tem essa perspectiva progressista e moderna é a de Lula e o PT, a qual lançou um ambicioso programa de reconstrução e transformação do Brasil, baseado na luta contra a pobreza e a desigualdade, na reconstituição de direitos, na recuperação do papel do Estado como indutor do desenvolvimento, na constituição de um Estado de Bem-Estar robusto, na recuperação da soberania, na busca de um modelo ambiental e socialmente sustentável e na luta contra o racismo, a misoginia e a homofobia.
A verdadeira “Terceira Via”, entendida como alternativa democrática a forças autoritárias e regressivas, é, portanto, a de Lula.
O projeto de Lula e do PT é aposta na esperança e na verdadeira conciliação democrática que só pode surgir em um Brasil para todos. Nunca haverá verdadeira democracia em um país para poucos, como desejam o neoliberalismo bolsonarista e o neoliberalismo tardiamente anti-bolsonarista.
Mais que uma “Terceira Via” entre essas duas grandes forças autoritárias e regressivas, Lula é a única via.
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