Diferentemente da experiência do neoliberalismo perseguido durante a Era dos Fernandos (Collor, 1990-1992, e Cardoso 1995-2002), a recente retomada do receituário neoliberal desde a segunda metade da década de 2010 parece apontar para outros propósitos, guiados pela luta no interior do poder burguês. Nos anos de 1990, por exemplo, o ingresso passivo e subordinado na globalização transcorreu assentado na elevadíssima taxa real de juros e significativa valorização cambial, o que favoreceu ao rentismo na subordinação do capital industrial à esfera bancária e financeira.
Com a crise global de 2008, contudo, o rentismo teve parte de seus fundamentos comprometida. A operação governamental adotada ao final de 2008 conseguiu salvar - do tombo maior - o sistema rentista e suas consequências perversas mais gerais para o conjunto da economia nacional.
Mas no interior do poder burguês, o sistema rentista passou a emitir sinais – ainda que tênues – da perda de vigor. Materialização disso ficou evidente logo no primeiro governo Dilma (2011-2014), com as ações de enfrentamento do rentismo sob a marcha da nova rodada da matriz econômica.
Mesmo que enfraquecido, o sistema rentista contava com muitos aliados, conseguindo reagir o suficiente para interromper a estratégia desenvolvimentista em curso nos governos petistas. A insurgência do ativismo da mídia comercial e do esforço incansável dos porta-vozes do dinheiro indicou o quanto o rentismo penava para manter subordinado o conjunto das esferas do capital.
No convite à nação para se integrar ao sonho de unidade proposto pelo programa da turma da “ponte para o futuro”, lançado antes do golpe de 2016, pareceu implícita a expectativa de outro ciclo de prosperidade a ser alavancado pelo rearranjo no interior do poder burguês. Sem atacar o sistema rentista, a retomada do receituário convergia para o desmonte final das amarras do Estado Moderno construído desde a Revolução de 1930, aplainando a volta do vetor de comando da economia brasileira vinculada à dominância da produção e exportação de commodities.
Ao mesmo tempo que se desfazia de empresas estatais, sobretudo da Petrobras [1], o programa econômico e social do golpismo desmontava políticas incorporadoras dos pobres ao orçamento público, em verdadeira operação de liquidação nacional. De vento em poupa, os negócios com exterior se traduziram em riqueza efetiva, mais do que compensado pelo esvaziamento rentista, com o gradualismo do movimento geral de abandono do tripé da política macroeconômica, redução real na taxa de juros e desvalorização cambial.
As tradicionais operações de tesouraria operada por bancos comerciais, através de elevados juros no giro da dívida pública e continuado superavit fiscal, não mais garantiam os mesmos ganhos extraordinários do passado. Com isso, inovações importantes nas instituições gestoras do estoque de riqueza velha se tornaram mais fortalecidas, com bancos de investimentos e fintech, buscando abrir outras fontes de expansão no mercado de capitais e proximidades com o pulsar do setor produtivo, especialmente agroexportador.
Mesmo com o endividamento público em alta e a ausência de superavit fiscal, o ciclo esperado de prosperidade pela produção e exportação de commodities não refluiu nem mesmo durante a pandemia da Covid-19. Nesse sentido, ganharam corpo as mudanças que rapidamente fundamentaram novas relações da elite nacional tanto com os grupos sociais internos como as elites externas, menos dependentes do sistema rentista.
A engrenagem que concede vitalidade ao ciclo interno de produção para exportação de commodities, dependente do comportamento dos preços dos produtos internos fixados externamente. Enquanto a prosperidade se manifestaria durante a elevação do valor em dólar das commodities, a imprevidência se forjaria no movimento inverso, com a queda nos preços baixos dos produtos exportados, desaguando-se na própria desagregação nacional.
Concomitante com o atual deslocamento do centro dinâmico do Ocidente para o Oriente, a demanda de commodities tem se sustentado, mesmo com oscilações bruscas. Com o mais recente dinamismo do capital agroexportador brasileiro, sustentado por demanda chinesa e preços favoráveis, a sua prosperidade interna ofereceu alternativas ao rentismo dominante no poder burguês.
Diante da baixa na taxa real de juros e da desvalorização cambial, os recursos sobrantes internamente, fortemente aplicados anteriormente na especulação rentista, voltaram-se ao reinvestimento na expansão das lavouras de produção para exportação. Enquanto segundo maior exportador de alimentos do mundo, o Brasil guiado por preços internacionais, gera artificialmente a escassez interna, com preços inflacionados, assegurando ganhos extraordinários aos negócios da produção primária.
Além disso, o endividamento das famílias, a hipoteca de propriedade e até mesmo a venda antecipada de safras futuras, entre outras operações financeiras para permitir a alavancagem ainda mais acentuada do ciclo de prosperidade. Mas na queda dos preços internacionais, a imprevidência e a desagregação social ganham ainda maior vulto, arrastado para os especuladores e traficantes, a parcela crescente da responsabilidade da gestão da crise de reprodução social ora vivida.
* Marcio Pochmann é professor da UFABC e do Cesit/Unicamp.
Nota
[1]. Atualmente, cerca de 4/5 das reservas do petróleo na camada do pré-sal se encontram sob o comando de empresas petroleiras estrangeiras.
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