quinta-feira, 7 de outubro de 2021

O escravismo criou o Brasil

Por Roberto Amaral

Somos filhos do escravismo, a chaga colonial que pautou o império, argamassa daquilo que chamamos de nação, uma aspiração de povo, um projeto de país: “Não há, nunca houve, aqui, um povo livre, regendo seu destino na busca da própria prosperidade. [...] Nós, brasileiros, somos um povo em ser impedido de sê-lo” (Darcy Ribeiro, O povo brasileiro). Continuamos como um projeto, um advir, olhando com justo mal-estar para nossa formação de povo, nação, país, uma expectativa sempre adiada, uma realidade sempre anacrônica, um permanente descompasso em face do mundo.

Uma civilização que carrega a pena de Sísifo, sempre a refazer suas pegadas quando tudo indica haver-se encontrado com o progresso humano. Mas civilização incansável, que até aqui não renunciou ao ofício de tentar chegar ao topo da montanha, esperança após esperança, frustração após frustração: o império que reproduz a colônia; a república que convive com a hegemonia do latifúndio; uma “revolução” que não toca na ordem econômico-social; uma democracia que não convive com a emergência das massas. Os sonhos dos anos 1960 destruídos pela ditadura de 1964; as expectativas de um novo pacto social desfeitas pelo golpe de 2016; a irrupção da extrema-direita em país que se supunha democrático e progressista. A tutela militar quando o país da “Constituição cidadã” aspirava à sua maioridade. Se continuamos lutando e nos nutrindo de esperanças, tem-nos faltado, porém, até aqui, engenho e arte para impedir que o destino desejado resvale de nossas mãos como a pedra que Sísifo, condenado a uma vida sem sentido, não consegue manter no alto.

Este, o grande desafio da esfinge.

A base de nossa formação são o etnocídio e o escravismo, a violência do senhor da terra sobre o trabalhador, o mando da casa-grande sobre a senzala, do engenho sobre o eito; do capital crescentemente monopolista e açambarcador sobre o trabalho humano, explorado em níveis chocantes até mesmo para os padrões do capitalismo internacional. Assim se explica nossa sociedade estruturalmente autoritária e racista apta a reproduzir, no capitalismo que a tanto se presta, as formas mais indignas de exploração do trabalho humano.

Da lavoura do açúcar ao agronegócio moderno; das feitorias ao país moderno; do engenho às grandes fábricas, bancos e conglomerados, quase tudo mudou nesses 500 anos de existência. Conhecemos, irrupções, insurgências e guerras. Guerreamos um país vizinho e dizimamos seu povo. Participamos de um conflito mundial lutando em teatro estrangeiro. Intocável, porém, permaneceu o mando. Os donos do poder de hoje são os herdeiros do poder que, em cinco séculos de exploração e sobrexploração, construíram uma das mais injustas sociedades jamais conhecidas pela humanidade. Deste ponto de vista o atual regime não pode ser considerado “um ponto fora da curva”. Nos 67 anos do império, com dois monarcas e vários gabinetes, tivemos um só governante: os interesses do latifúndio. Os tumultuados 132 anos da vida republicana registram a eleição de apenas quatro governos de centro-esquerda, o último dos quais defenestrado.

A tragédia do Brasil de hoje não é fruto do acaso, nem encontrará saída, qualquer que seja a voz das eleições de 2022, no repertório do neoliberalismo, a exacerbação da disfuncionalidade do capitalismo em sua crise contemporânea, ainda longe do ápice. O mundo, e o Brasil no mundo (país nenhum é uma ilha), caminham para grandes abalos que virão à tona na sequência de profundas transformações econômicas, em curso, e grandes traumas sociais. Não se trata, tão só, das consequências, para a economia e para a política, da chamada revolução tecnológica, rompendo com as relações de produção clássica, alterando mesmo o papel do proletariado como vanguarda revolucionária. Em meio a tais transformações, certamente as mais profundas em dois séculos, assiste-se ao sempre traumático processo de mudança da hegemonia político-econômica, transitando de um Ocidente decadente (mas altamente belicoso) para uma Eurásia emergente. As implicações sobre nossa história doméstica são mais que evidentes e quaisquer que sejam os desafios interpostos eles não poderão ser enfrentados vantajosamente se não conseguirmos derrotar a atual hegemonia da classe dominante brasileira, colonizada, atrasada, forânea.

Em meio à globalização e à interdependência imposta pelo capitalismo em sua fase monopolista, em cenário internacional que não enseja projeções senão no curtíssimo prazo, o Brasil, nada obstante as forças dominantes, ingressa em processo de profunda transformação estrutural que será ditado pelas contradições que o regime de classes não pode resolver e o neoliberalismo está levando ao paroxismo. O conflito entre o passado e o futuro está estabelecido gerando novas forças e, certamente, novas formas de luta que cobrarão das formações progressistas, especialmente da esquerda socialista, inusitada capacidade de constituição de alianças diretas com as grandes massas. O que Jean-Marie Guéhenno chama de “rio subterrâneo que incha fora de vista” (Valor,1º/10/21) pode vir à tona e levará de roldão aquelas forças que não souberem navegar em suas águas, dando destino e rumo ao fato social.

Este é o desafio que a história coloca para as forças progressistas brasileiras.

As eleições de 2022 não serão o porto seguro com o qual os socialistas poderão voltar a sonhar, nem evitarão a ruptura (que não devemos temer), qualquer que seja seu resultado. Trata-se de ponto de partida sem o qual dificilmente haverá um segundo degrau, neste sentido constituindo marco da maior importância, indicador das condições de lutas futuras. Daí seu caráter agônico. A conquista da presidência da república por forças de centro-esquerda e nessa altura a construção de uma aliança político-popular de sustentação de uma nova ordem, adversa da atual, adquirem o caráter de etapa prioritária do projeto estratégico de uma sociedade em busca da supressão da ditadura de classe. Mas ainda não será o ponto de chegada.

Quaisquer que sejam as condições de luta colocadas pelo processo social, impõe-se, desde já, o esforço por mobilizar uma nova correlação de forças na sociedade, sem o que não contaremos com alternativas favoráveis de médio e longo prazo. Ao contrário do que parecia crível em 2003, e principalmente em 2014, a conciliação de classes, ou, sua variável, a aliança conservadora, e muito menos a desastrada renúncia à defesa das teses da esquerda socialista, jamais serão suficientes para sustentar um governo simplesmente progressista. De outra parte, o impasse político de nossos dias, um de cujos aspectos é a resistência do adversário, exige a imediata revisão das táticas de nosso campo. É óbvio que a estratégia da reconquista da hegemonia da centro-esquerda (perdida em 2014 mesmo havendo ganho as eleições!) desenvolve-se em três etapas intransponíveis, sequenciais e auto comunicantes, que são a luta própria de 2021, as eleições de 2022 (etapas que integram o movimento que podemos chamar de “Fora Bolsonaro”) e a sustentação de um eventual governo política e fatualmente comprometido com as grandes massas.

Não basta, pois, mirando 2022, supor que a tarefa se encerra na conquista de uma maioria simplesmente suficiente para ganhar o pleito. Isso seria ignorar as dramáticas lições de 2014 e 2016.

Somos fruto do nosso passado, mas essa evidência não pode cair sobre nossos ombros como uma tragédia ditada pelo Olimpo; cabe-nos intervir exercendo o papel de sujeito no processo histórico.

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O homem de bem e os canalhas

Convidado a integrar o ministério da Justiça no primeiro governo Lula, o criminalista Márcio Tomaz Bastos, que tanta falta nos faz, tomou a iniciativa de entregar a gestão de todos os seus recursos a uma empresa especializada nesse mister, renunciando a qualquer informação sobre aplicações, rendimentos etc. Nada a destacar, pois é assim que agem os homens de bem, e Tomaz Bastos era, acima de tudo, um homem honrado, que dignificou sua classe. Essa história já foi contada por Elio Gaspari, em sua coluna em famoso jornalão que hoje protege meliantes. Por não serem homens de bem, mas de bens adquiridos na especulação financeira, o ainda ministro da economia e o presidente do Banco Central escondem suas fortunas em “offshores” instaladas em “paraísos fiscais” - o que, por si, numa república séria, já os desqualificaria, a ocupar os cargos atuais. Sem cerimônia, porém, preservam os cargos e as aplicações que crescem na medida em que podem interferir nos rumos da política brasileira, contribuindo, por exemplo, para a queda ou a elevação do dólar. Recentemente, por exemplo, o ministro da economia interferiu na redação da nova lei do imposto de renda, fazendo cair o alíquota do imposto devido a quem tem aplicação no exterior (seu caso e do colega do BC). Mas, este, porém, é um só escândalo. Há um outro, gritante, o comportamento da grande imprensa brasileira, de quase absoluto silêncio acerca do despautério. A taça da desfaçatez vai para o Estadão, que dedicou à matéria o destaque de quase uma página, arrolando pilantras deste e do outro lado do mundo (como o presidente queniano, Uhura Kenyattar, e o rei jordaniano, Abdullah II), mas não traz uma só referência aos “investidores” brasileiros pego na falcatrua pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos. Solidariedade de cúmplices.

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