sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Derrotar Kast e o neofascismo no Chile

Fernando Krauss
Por Leonardo Wexell Severo, de Santiago

“Estamos diante de uma batalha estratégica que é derrotar o neofascismo com um projeto de transformação que una a maioria do nosso povo e supere a grave crise em que estamos mergulhados”, afirmou Fernando Krauss, ex-vice-presidente do Partido Socialista do Chile, e atual responsável pelo programa de Meio Ambiente do Instituto Igualdade, que contribui para a formação de quadros do PS. Vindo de uma família de esquerda, teve o pai militante do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR) assassinado pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), Fernando Krauss viveu exilado 16 anos em Cuba, de onde retornou na redemocratização.

O que esperar das eleições presidenciais e parlamentares do próximo domingo?

Conforme apontam as pesquisas, nos enfrentamos com uma situação de risco, que apareceu nas últimas semanas. E apesar de serem muito criticadas, porque muitas vezes não acertam, há um dito popular que diz que as bruxas não existem, mas que voam. Ou seja, de alguma forma elas dão sinais. E estes sinais têm trazido preocupação e, no caso chileno, vou dizer a razão: porque tem crescido o apoio em alguns segmentos a candidatura de José Antonio Kast, um candidato muito parecido aos que têm surgido na ultradireita da América Latina e da Europa nos últimos anos.

Inclusive perambulou por aqui ao lado de Eduardo Bolsonaro?

Não só caminhou, como Kast, junto com a presidente da União Democrática Independente (UDI), correu para ver quem chegava primeiro para salvar Bolsonaro. É um candidato que está mais à direita do que a direita tradicional chilena, como a UDI, que sempre procurou manter a identidade da ditadura de Pinochet. Kast saiu deste partido por considerar que a organização estava abandonando a sua identidade histórica e, de alguma maneira, estava se desfazendo deste legado. Ele é um defensor da ditadura. Por isso foi várias vezes visitar miliares presos pelas mais atrozes violações dos direitos humanos. Estou falando de nomes como Miguel Krassnoff Martchenko, brigadeiro do Exército que acumulou mais de 800 anos por todos os crimes que cometeu de sequestro, tortura e desaparição de pessoas.

Kast diz não estar de acordo que a mudança climática seja uma ideia de consenso científico; é uma pessoa que não acredita nos direitos da igualdade da mulher e é defensor de um conjunto de temas que de alguma forma representam um retrocesso para o que foram os avanços democratizantes da sociedade e dos direitos sociais, políticos e econômicos.

Diante de tantas barbaridades, de onde vem a sua força?

É uma construção que vem de um longo tempo. Demarcou campo nos partidos tradicionais e foi criando sua própria força política com um discurso em que reafirma muito fortemente o chavão de segurança e ordem como elemento central. No Chile, vem se produzindo, da mesma forma que em outros países, uma campanha em prol da religiosidade, da religião católica fundamentalmente, e ao mesmo tempo um fortalecimento das igrejas ligadas a cultos evangélicos e protestantes. E ele vem tendo muita recepção neste mundo porque afirma a necessidade de manter alguns valores cristãos negando outros, nega uma série de direitos como a liberdade da mulher, o direito a seu corpo e à natalidade.

Kast ressalta os valores da ordem e da segurança, ao mesmo tempo em que reafirma os conceitos neoliberais como o Estado mínimo, com maior espaço para as regras de mercado. Esta reafirmação aparece hoje em dia como opção para passar ao segundo turno, desbancando a candidatura de direita dos partidos tradicionais, que é Sebastián Sichel. Portanto, chama a atenção não só que ele chegue à presidência, mas que se configure esta força com apoio que demonstra. Ele afronta os valores democráticos da sociedade chilena. Entre outras coisas defende que o Chile saia da Organização das Nações Unidas (ONU), o que revela estarmos diante de alguém que não tem limites para fazer declarações retumbantes, mas sem qualquer efetividade. Declarações como esta contra a ONU têm uma série de implicações políticas e institucionais, que obviamente não irá cumprir, mas fala.

Estamos mergulhados em uma crise social, econômica, de legitimidade das instituições, de falta de confiança, por conta da corrupção que vai da presidência da República às Forças Armadas. O fato de não ter avançado a destituição do presidente no Senado [faltaram quatro votos] mostra a deterioração das instituições.

Há uma preocupação não só da esquerda, mas de todos os que acreditam na democracia, que o fortalecimento destas ideias de Kast, num contexto de crise econômica e social agravado pela pandemia, aprofunda um modelo desigual que gerou medo na população. Aumentou a insegurança, cresceram os delitos e a violência pelo rebaixamento da qualidade de vida e uma parte da população vê nesta candidatura uma que chega para pôr ordem na casa.

Por outro lado, temos visto o avanço de uma Convenção Constitucional, que traz muitas esperanças.

Acreditamos que esta é uma situação extremamente complexa porque há a intenção de mudança do modelo por meio de um processo constituinte. Algo que foi resultado de um amplo acordo político e social majoritário da nossa sociedade de transitar em paz até esta transformação, necessária, e que de alguma forma é uma resposta para salvar a institucionalidade. Se optou por este caminho que requer que somemos poderes e os coloquemos em sintonia com esse processo constitucional.

Kast não é um nome que vai respeitar este processo, vai querer torpedeá-lo, porque vai gerar uma situação de conflito e de choque que encaminhará o país a um cenário muito delicado. Por isso nos preocupa que as distintas forças, fragmentadas, não consigam se unir para barrar esta espécie de neofascismo que está se configurando.

Há uma ameaça neofascista à democracia, como responder a ela já que não há apenas uma necessidade conjuntural, tática, mas estratégica?

De alguma maneira já estás adiantando a resposta, porque é evidente que o processo constitucional, por meio destes 150 convencionais, tem o prazo de um ano para redigir um texto, que no segundo semestre de 2022 deverá ser submetido a um plebiscito. Então o primeiro passo, muito importante, é que o governo eleito assegure que o processo ocorra em paz, de uma maneira participativa e que se legitime este processo. Em segundo lugar, deverá ser um governo que dê substância à Constituição, a partir das leis orgânicas que irão lhe dar suporte.

Porque o executivo sempre tem muito poder e muitas prerrogativas, independente do modelo que seja aprovado. Daí a importância de gerar uma unidade básica entre as forças democráticas, porque a tarefa de transformação é de tal magnitude, e requer uma projeção no tempo, que vai além de uma gestão de governo.

Vou colocar um exemplo que é tudo que tem a ver com o desigual acesso à água no Chile com a sua privatização. Ainda que haja uma lei, que é o Código de Águas, que declara que este é um bem de uso público, há uma Constituição que a destina para uso privado e assim é explorado.

Então é preciso colocar este bem, que atualmente está na mão de uns poucos, à disposição do país e das comunidades. Será preciso um grande esforço para enfrentar não só os interesses políticos como econômicos que estão por detrás, que têm muita influência, que são donos de grande parte da economia do Chile, que são empresas transnacionais e, além disso, nos meios de comunicação, nas indústrias e, obviamente, nos partidos.

Se não houver um acordo político amplo, transversal, das forças que têm a convicção de transformação deste modelo, será muito difícil avançarmos, ainda mais com esta direita que está se apresentando. O fato é que Kast atraiu novamente a direita à sua essência mais conservadora, deslocando a mais branda. Esta é uma direita muito mais pinochetista, mais dura, mais ligada ao poder econômico, mais ligada ao modelo neoliberal, que foi marcado a ferro e fogo, e que parecia estar evoluindo até uma matriz de reconhecimento de alguns direitos sociais e do papel do Estado na economia, como era antes de 1973 no Chile. Parece que isso foi derrubado e que venceu esta direita mais retrógrada e que poderia se converter em um obstáculo ao modelo de transformação.

Não é somente que ganhe espaços de poder em termos políticos, mas que poderiam mutilar o processo com a sua força econômica e nos meios de comunicação. Isso é o que está em jogo e coloca nossa democracia em risco, obrigando ao conjunto de forças progressistas a dialogar mais, sermos mais compreensivas e nos colocarmos de acordo em um projeto mínimo que nos permita, ao menos, terminar o processo com uma proposta constitucional transformadora. Precisamos fazer com que todo o levante, ou que toda a explosão social que ocorreu tenha um sentido político e não fiquemos encurralados, o que nos levaria em direção à rivalidade e à deterioração da convivência.

Há um compromisso dos constituintes em aprovar uma legislação que garanta direitos sociais e trabalhistas retirados pela ditadura com sua política neoliberal. Que medidas econômicas são necessárias para recuperar o Chile?

Acredito que estes são temas para debate. Na minha avaliação, lamentavelmente, não há até o momento entre as forças de esquerda um projeto claro de caráter estratégico. Esta é uma debilidade. Os programas de governo propostos estão dentro de uma perspectiva de quatro anos. E nem sabemos se o próximo governo vai durar tal período, porque a Convenção Constitucional poderia dar um caráter de transitoriedade ao governo e ao parlamento, e não há um olhar aglutinador com uma perspectiva de projeto.

Além disso, se entendemos que existem dois grandes blocos, um mais moderado, formado pelo Partido Socialista, pelo Partido da Concertação mais a Democracia Cristã, que defende uma transformação mais lenta, cautelosa e gradual, reconhecendo elementos importantes do mercado, regulado pelo Estado; outro do Aprovo Dignidade, de Gabriel Boric, em que está o Partido Comunista, Revolução Democrática, Convergência Social e outras forças de esquerda, com uma visão de transformação mais profunda, mais rápida, forte e urgente.

Em ambos os casos, parece que falta um diálogo para sintonizar os elementos em comum existentes, porque separados não vamos chegar a lugar algum. De qualquer forma, acredito que não há uma fórmula claro e que tudo deve ser pensado em função do que for gerado na Convenção Constitucional, porque aí estará o debate estratégico.

O que é o positivo deste momento e por que o julgam histórico? Nesta convenção, a representação majoritária que está presente, dos diferentes partidos e independentes, é pela transformação do modelo social, econômico e político chileno. Não existe total clareza até onde vamos, mas a superação do modelo neoliberal a partir do estabelecimento da garantia de direitos sociais como o acesso à educação e à água; o fortalecimento do papel do Estado, assumindo um caráter mais ativo em determinadas áreas da economia; da apropriação dos recursos naturais para o desenvolvimento do país. Me parece que temos uma oportunidade, mas quais serão os casos e a profundidade será mais difícil avaliar. Porque me parece que o governo não será para aplicar as transformações, já que a Convenção Constitucional será plebiscitada no próximo ano.

Teremos um governo, e aqui precisamos pensar de forma inteligente, que sua principal conquista será a de que o processo constitucional termine e que seja validado. Sabemos que esta Constituição será a base das transformações e que virá para que o povo chileno saia da crise, principalmente os setores mais pobres. Além disso, penso que precisamos garantir esse acordo transversal mínimo.

Se a coalizão não for capaz de colocar-se de acordo e de ganhar o próximo governo e o seguinte, esta será uma transformação transitória, efêmera, e estaremos com problema.

Kast não está construindo uma força momentânea. Parece que está sendo organizada uma direita dura e conservadora, com projeção. Não é somente uma questão de momento. É uma reação pendular, com acumulação de forças. Alguém que, uma vez derrotado nestas eleições, poderia se converter em oposição ao processo de transformação com apoio em conexões internacionais na Europa, na América Latina e, obviamente, no capital estrangeiro que têm interesses muito relevantes no Chile. Por isso acredito que é algo para resolvermos agora, mas com a dimensão de termos pela frente uma batalha estratégica.

Afirmas que as eleições do Chile estão inseridas em um contexto histórico mais amplo.

Repito: estamos diante de uma batalha estratégica. Se perguntas se estamos fazendo todo o possível, respondo que não, mas acredito que o espaço da Convenção Constituinte é muito interessante porque ali está se produzindo uma aproximação e um diálogo político que, infelizmente, não transcende e não consegue permear a disputa pelos poderes mais imediatos como a presidência, os parlamentos e as prefeituras. Acredito faltar maturidade política na esquerda e no conjunto das forças democráticas, sobretudo em função da dimensão do diálogo social que necessitamos. Com um interesse maior colocado sobre a mesa conseguiremos acordos substantivos. Então todas estas disputas ocorrerão, mas não terão a relevância atual. Esta é parte da nossa tarefa.

E o papel da grande mídia neste momento?

Ainda que em nosso país tenha crescido muito o papel das redes sociais e da internet no último período, a maior parte da população, sobretudo o setor popular e a classe média, ainda são informadas pelos canais formais, onde há uma agenda nacional instalada como o Canal 13, Meganotícias, Canal 11 e, mais recentemente, pela CNN Chile. Logicamente o grupo Mercúrio e sua cadeia de meios, que teve papel destacado no golpe contra Salvador Allende. Mas me atreveria a dizer que isso não é novidade.

Somente agora está surgindo um canal bastante interessante que é La Red, que começa a transmitir fazendo um resgate da memória com uma série de documentários sobre o que ocorreu no golpe, antes do golpe e posterior a ele. Mas este ainda é um canal de menor peso diante dos demais, conformados por redes que abarcam televisão, rádio e jornais.

Existe uma mídia alternativa, mas que infelizmente não tem a penetração nem o alcance dos meios tradicionais, que contam com maior poder para chegar a uma maior audiência. Isso também deve ser parte do debate constitucional.

Defendes que a democratização dos meios de comunicação esteja presente no debate constitucional

É fundamental a democratização, que as comunidades contem com os seus próprios meios de comunicação. Estamos vivendo um processo de descentralização bastante importante. Elegemos neste ano pela primeira vez os coordenadores regionais (governadores) e a direita somente um. Antes eram todos indicados pelo presidente da República.

O importante é que o aumento do grau de autonomia das regiões fez com que 15 dos 16 coordenadores regionais ficassem com a oposição, com uma perspectiva progressista, impulsionando agendas de transformação. Infelizmente, a figura dos coordenadores regionais, por terem conquistado a autonomia somente agora, têm pouco peso na arquitetura nacional. Dependem do orçamento aprovado pelo Congresso, não podem gerar recursos eles próprios, têm muitas limitações. De qualquer forma, este é um indicador de que o país começa a mudar e que serão gerados projetos de informação e comunicação distintos, descentralizados e com maior abrangência.

Apesar destas muitas limitações, a sociedade chilena não está apenas em um processo de mudança institucional, como cultural. O fato é que os grandes meios de comunicação tentaram controlar a agenda da Constituinte e não conseguiram.

Como está o processo Constituinte?

O processo da Convenção Constitucional em um país tão polarizado como o Chile tem sido muito exitoso, pois os representantes eleitos conseguiram estabelecer regras de funcionamento em tempo recorde. Há várias semanas se formaram as comissões sobre Meio ambiente, patrimônios comuns e direitos da natureza. Somente para este debate se inscreveram 1.700 organizações e entidades para apresentar sua perspectiva, em um processo de participação enorme, muito bonito. Isso praticamente não encontra nenhuma repercussão na mídia tradicional.

Já se um convencional, por qualquer motivo xinga o outro, vira manchete, ganha relevância, como se estivessem todos polarizados, discutindo. Para questões importantes, essenciais, não dão qualquer espaço.

Digo que estamos no meio de uma fogueira e que diante de tantos elementos transcendentes é preciso estar atento.

O que esperar das eleições de domingo?

Espero do próximo 21 de novembro algumas coisas. A mais importante é que, apesar de toda a crise, o povo chileno ratifique a sua vontade de transformação. E isso se expressará na somatória dos votos de esquerda, que se sobreponham aos da direita. E isso precisa se refletir nas autoridades do parlamento, deputados, senadores e conselheiros regionais. Se isso ocorrer, e for traduzido no segundo turno, podemos dizer que está assegurado o objetivo político estratégico, fazendo com que a Convenção termine de forma adequada, com uma boa base, com os fundamentos para transformar o país. Do contrário, vamos ter um problema sério.

Qual o papel de Salvador Allende em todo este movimento?

Há cerca de dez anos se fez uma pesquisa bastante ampla, uma espécie de censo - e acredito que teríamos hoje um resultado semelhante -, sobre qual foi a figura mais importante da história do Chile. E Allende ganhou de longe. O povo chileno, em sua grande maioria, é allendista, reconhece nele o seu projeto. Vê em Allende uma pessoa que esteve disposta a dar tudo pelo bem-estar do seu povo, impecável, sobre quem não se pode argumentar que tenha feito nada em benefício pessoal, nada. Há uma frase sua muito importante para estes tempos: “Yo podré meter las patas, pero nunca las manos” (Poderei me equivocar, mas nunca colocar as mãos).

O valor de Allende gerando medidas em benefício dos chilenos, ações para enfrentar o fascismo, mesmo passados 48 anos, permanece na memória, estando presente como esperança para as futuras gerações. São jovens que conhecem Allende e que se informaram do presidente, carregam sua história viva. Está presente nos mais velhos, naqueles que dizemos já estarem passando para melhores dias. Essa geração dos anos 60 e 70 conseguiu transmitir sua mensagem. Allende é uma figura que revive permanentemente na memória do povo chileno e está muito presente nos debates e discussões na ideia da reconstrução nacional.

O que não se pode esquecer nunca é que Allende foi o último presidente democraticamente eleito, que contou com uma Constituição validada pelo povo, não como a que nos rege agora, que é a de Pinochet. Portanto, obviamente, tem uma enorme significação. Ter uma nova Constituição é de alguma forma repor o sentido democrático do Chile.

Uma última palavra?

Tomara que derrotemos a Kast. Não queremos um Bolsonaro por aqui. Por isso vamos fazer tudo que esteja ao nosso alcance para que não seja eleito, sobretudo após todas as barbaridades que, conforme somos informados, ocorrem no Brasil. E que vocês, assim como nós, fortaleçamos o caminho do diálogo e da unidade para eleger um projeto de transformação que derrote o neofascismo, deixando o divisionismo de lado.

* Esta reportagem foi elaborada pelo Coletivo ComunicaSul, com o patrocínio do Barão de Itararé, Agência Carta Maior, jornal Hora do Povo, Diálogos do Sul, Apeoesp Sudoeste Centro, Intersindical, Sintrajufe-RS, Sinjusc, Sindicato dos Bancários do RN, Sicoob e Agência Sindical.

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