Charge: Bira |
Será realizada agora, nos dias 9 e 10 de dezembro, a Cúpula pela Democracia (The Summit for Democracy), promovida pelo Presidente Joe Biden.
Oficialmente, os objetivos da cúpula são:
- Defender a democracia das “ameaças” do autoritarismo
- Promover a luta contra a corrupção
- Promover o respeito aos direitos humanos
Mediante essa cúpula, realizada de forma virtual, Biden pretende liderar o “mundo livre” numa cruzada contra regimes autoritários, ditaduras e corruptos de uma forma geral. Comovente. Secundado pelo fiel escudeiro, Antony Blinken, Biden já se julga a caminho para libertar Jerusalém.
Bom, essa não é uma boa notícia. Nem para mouros, nem para cristãos.
Nessas cruzadas, os EUA fazem, em geral, o papel de Godofredo de Bulhão ou Federico Barbarossa, que, em nome dos valores cristãos e da libertação de Jerusalém, promoveram verdadeiras carnificinas na cidade sagrada, matando indiscriminadamente milhares de homens, mulheres e crianças.
Latino-americanos e os habitantes do Magreb e do Oriente Médio sabem bem o que a “promoção da democracia” pelos EUA realmente significa.
Mas, antes de tudo, há de se questionar qual autoridade moral e política que os EUA têm para liderar o mundo em direção à democracia, especialmente após Trump e a invasão do Capitólio.
De acordo com o Democracy Index de 2020, da sisuda e conservadora The Economist, haveria apenas 23 democracias plenas (full democracies) no mundo.
Os EUA, com seus problemas de racismo, violência policial e a recente fragilização ocasionada pela extrema direita e suas estratégias manipulativas, não figuram entre elas.
Mesmo o país mais bem classificado no índice, a Noruega, não tem nota dez. Ninguém é realmente modelar, nesse campo. A democracia é um contínuo processo de aperfeiçoamento de liberdades e direitos.
Outro questionamento tange à escolha dos participantes, feita unilateralmente pelo governo Biden.
Previsivelmente, Biden não convidou para a cúpula China, Rússia, Irã, Turquia etc., alegando que são “regimes autoritários”.
Entretanto, convidou Iraque, Paquistão, República do Congo, Zâmbia, Malásia e vários outros países que não são classificados como democracias reais.
Na América Latina, não convidou Cuba, Venezuela, Nicarágua e a própria Bolívia, que superou o golpe de Estado, mas convidou Colômbia e o Brasil de Bolsonaro.
Segundo as avaliações feitas com base nos índices da Freedom House, cerca de 31% dos convidados da cúpula ou são regime autoritários ou são democracias incompletas e “comprometidas”.
Saliente-se que Biden convidou 4 países entre os que que mais sofreram deterioração em suas democracias nos últimos anos, a saber: Brasil, Filipinas, Índia e Polônia.
A hipocrisia das escolhas obedece a um imperativo da nova doutrina de segurança nacional dos EUA, estabelecida em 2010, ainda no governo Obama.
Conforme essa doutrina, a prioridade da política externa e da política de segurança dos EUA, que antes era o combate ao “terrorismo”, tem de ser a luta pelo poder mundial contra adversários como China, Rússia e seus eventuais aliados.
Trump adotou uma estratégia crua e direta de fazer cumprir tal imperativo.
Adotou o America First, uma política francamente unilateral, protecionista e xenófoba, que comprometeu antigas alianças e criou sérios desgastes diplomáticos, abrindo caminho para um avanço geopolítico da China, especialmente na Europa.
Biden, sem abandonar o protecionismo do America First, pretende reconstruir antigas alianças e investir, de novo, em diplomacia para melhor afirmar os interesses do Império ameaçado no mundo.
A Cúpula pela Democracia é vertente fundamental dessa política.
Trata-se, é óbvio, de tentativa de isolar e criminalizar países adversários dos EUA, com os frágeis pretextos da defesa da democracia, da promoção os direitos humanos e da luta contra corrupção.
Por isso, a cúpula de Biden vem sendo muito criticada, até mesmo dentro dos EUA.
O convite à Taiwan, em particular, é visto como uma provocação grave e desnecessária à China, que eleva muito a tensão política, no cenário mundial.
O convite à Ucrânia e a ausência da Rússia têm o mesmo efeito.
Em vez de apostar na distensão, Biden parece apostar no acirramento dos conflitos. Em ambos os casos (Taiwan e Ucrânia), os conflitos políticos ameaçam se transformar em conflitos bélicos.
Apesar das críticas e da evidente hipocrisia, a Cúpula pela Democracia tem de ser levada a sério. Biden pretende elaborar planos e ações internacionais para fazer cumprir seus objetivos. E fará cobranças.
Entre as linhas de ação que mais preocupam está a luta global contra a “corrupção”.
De fato, num cenário mundial de criminalização da política e dos sistemas de representação, essa vertente da luta geopolítica internacional pode fazer um grande estrago, como o que aconteceu no Brasil, com a Lava Jato. O discurso populista contra a corrupção sempre faz muito sucesso.
Sabedor desse potencial, o governo Biden pretende converter a luta internacional contra a corrupção em um elemento central da nova política externa dos EUA. combater a evasão e os desvios fiscais propiciados por mecanismos vinculados aos denominados “paraísos fiscais”.
Claro está que combater a evasão e os desvios fiscais propiciados por mecanismos vinculados aos denominados “paraísos fiscais” é algo positivo para todos os países.
Contudo, os EUA pretendem combater, sobretudo, o que eles denominam de “corrupção estratégica”, isto é, aquela corrupção que seria promovida por governos supostamente “autoritários e corruptos”, como os China e da Rússia, com o objetivo de obterem maior influência econômica e política no mundo.
O combate a essa “corrupção estratégica” recairá também sobre quaisquer países ou empresas que contrariem os interesses dos EUA.
Isso não chega a ser propriamente uma novidade.
A Alstom, ex-gigante francesa das áreas de energia e transporte foi forçada, devido a uma ação de corrupção promovida pela justiça dos EUA a vender seus ativos à General Electric, sua concorrente norte-americana, em 2014.
O mesmo aconteceu com a Petrobras e com as grandes empresas de construção civil do Brasil.
Agora, contudo, aquilo que era algo eventual ou pontual poderá se converter em algo usual e sistemático.
Governos rivais e empresas concorrentes deverão, com essa nova diretriz, ser vítimas frequentes de ações “anticorrupção” politicamente motivadas.
Uma das propostas que está sendo ventilada para cumprir esse objetivo é a da criação de Cortes Supremas Anticorrupção, compostas por juízes “ilibados”, como a anunciada por Moro.
Na Ucrânia, já está sendo implementada uma corte desse tipo, a qual seria supervisionada por um conselho público de especialistas, nacionais e internacionais.
A ideia essencial é a de “internacionalizar” o combate à corrupção, limitando a soberania jurídica de alguns Estados sobre esse tema.
Em outras palavras, a administração de Biden, como já afirmei em artigo anterior, pretende criar ou consolidar uma espécie de Lava Jato Global, de modo a submeter a luta contra a corrupção aos seus desígnios geopolíticos.
Não é casual que Moro tenha apresentado essa proposta da corte anticorrupção agora. Ele está perfeitamente sintonizado com Departamento de Estado dos EUA e com o DOJ.
Bolsonaro tinha uma relação umbilical com Trump e a extrema direita dos EUA.
Moro, porém, assim como Dallagnol, têm uma relação orgânica e sedimentada com o aparelho de Estado dos EUA, ou, se quiserem, com o que alguns denominam de Deep State. Trata-se, portanto, de uma relação mais profunda, estável e ainda mais comprometedora da soberania nacional.
Assim sendo, Moro é, sem dúvida, o candidato preferencial dos EUA. O ungido do Império.
Além do apoio local, terá o apoio dos EUA, que poderá chegar de diversas formas.
Lembrem-se que os EUA controlam a Internet e as comunicações globais, via provedores privados e a NSA. E ainda têm enorme influência em nossas procuradorias, Polícia Federal etc.
Tudo é possível, para quem tem tanto poder. Inclusive a inviabilização da candidatura de Lula e a redução dos níveis de rejeição de Moro.
A Cúpula pela Democracia poderá se converter, portanto, no início de um processo que comprometerá definitivamente nossa democracia e nossa soberania.
Precisaremos estar atentos. Ingenuidade geopolítica não é mais algo aceitável.
* Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.
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