Centro de São Paulo. Foto: Nelson Almeida/AFP |
“A população de rua é porta-voz da miséria e da exclusão social mais clara da nossa sociedade”. Com essa frase, o psicanalista e professor da PUC-SP, Jorge Broide, que há mais de 40 anos acompanha a vida dessas pessoas, sintetiza a grave situação do Brasil hoje. A crise na qual o país está mergulhado, a falta de emprego, de políticas públicas e de perspectivas tem empurrado milhares de brasileiros, inclusive famílias inteiras, para a vida ao relento, cenário que ganha cores ainda mais dramáticas no período do frio que está apenas no começo.
O dado mais recente disponível é uma projeção feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e divulgado em 2020, que estimava em cerca de 222 mil o número de pessoas em situação de rua em todo o país. São Paulo, uma das cidades com a maior concentração e triste símbolo dessa mazela tinha, em 2021, segundo censo da Prefeitura, quase 32 mil pessoas vivendo nas ruas, número 31% maior do que o aferido em 2019. A capital também registrou aumento de 230% no número de moradias improvisadas em barracas, no mesmo período.
“A gente nota que tem muito mais famílias com crianças hoje e há um número muito mais elevado de pessoas em situação de rua do que se aponta. O censo fala em 32 mil pessoas, mas a gente percebe que é bem mais, diria em torno de 50 mil”, aponta Darcy da Silva Costa, coordenador do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR).
Ele acrescenta que “andando pela cidade, nos deparamos com várias barracas, gente dormindo nas praças, sob as marquises; passam o dia todo na rua porque os equipamentos, os albergues, não dão conta de manter todos, a quantidade de vagas ainda é muito menor do que precisaria”.
A crise nas ruas
Com a onda de frio recente e o início da temporada de inverno, a vida dessas pessoas tende a piorar e crescem as campanhas e a busca por alternativas emergenciais especialmente nas cidades mais frias do país. Porém, a raiz do problema, que não é novo, mas se agravou muito nos últimos anos, está majoritariamente nos indicadores sociais, que pioraram nos últimos anos. A falta de trabalho, a pandemia, a inação por parte do governo federal para enfrentar a crise e de medidas das administrações locais estão entre os principais fatores que levam ao aumento do problema.
“A crise, a impossibilidade de pagar aluguel, o desemprego, tudo isso tem levado muita gente para as ruas e essa população é diferente da que havia há 30 anos. Antes, havia muita gente com questões de saúde mental”, explica o professor Jorge Broide.
Como se não bastasse todos os prejuízos causados pela gestão de Jair Bolsonaro (PL), o próprio governo ainda piorou a vida de parte considerável da população ao transformar, por motivos eleitoreiros, o Bolsa Família - que teve resultados importantes e mundialmente reconhecidos para o enfrentamento da miséria -, em Auxílio Brasil. Até este momento, ao menos dois milhões de famílias em extrema pobreza ficaram de fora da lista de beneficiados, o que pode levar ao aumento de pessoas vivendo pelas ruas.
A piora na vida dos brasileiros nos últimos anos pode ser verificada nos dados trazidos pela pesquisa global do instituto Gallup e analisada pela FGV Social divulgado nesta semana. O levantamento mostrou que a taxa de insegurança alimentar no Brasil saltou 17% em 2014 para 36% no final de 2021, percentual que levou o país a ficar, pela primeira vez, acima da média mundial de 35% nesse quesito.
“A crise financeira e sanitária traz mais desigualdades sociais e consequentemente, o aumento da população em situação de rua. São pessoas que nunca imaginaram estar nas ruas, famílias inteiras, que perderam a condição de classe trabalhadora”, diz Vanilson Torres, do MNPR do Rio Grande do Norte. Para ele, questões como a Emenda Constitucional 95, as reformas trabalhista e da previdência também são elementos importantes para explicar a piora sensível na vida do povo, o que incide diretamente no aumento da miséria e da quantidade de pessoas vivendo nas ruas.
Egressos da prisão
Jorge Broide explica que outro grupo importante que hoje compõe a população em situação de rua são os egressos do sistema penal. “Como aumentou enormemente o encarceramento e as pessoas saem da prisão sem nada, muitas delas têm de ir para rua, de tal maneira que hoje a gente pode calcular entre 40% e 50% da população em situação de rua em São Paulo são egressos do sistema penal”, salienta.
O problema impõe uma dupla exclusão para os ex-detentos. Além das dificuldades advindas do preconceito e do estigma, Broide explica que, de acordo com o Código Penal Brasileiro, quando alguém é preso por crime contra o patrimônio ou tráfico de drogas, a pena é a reclusão mais multa que, se não for paga, equivale ao não cumprimento integral da pena. “Em média, as pessoas que saem do sistema prisional devem em torno de sete mil reais. Impossível de pagar para a maioria e muitos nem sabem que a devem. A pessoa vai tirar o título de eleitor, a carteira de trabalho e não consegue porque ela tem essa pendência na justiça. Então, essas pessoas são empurradas para a clandestinidade muitas vezes pelo resto da vida”, diz.
Diante desse cenário, o enfrentamento ao problema exige uma série de medidas que respondam a essas especificidades, além da própria questão social que acaba sendo o pano de fundo comum a todos. É preciso investir em moradia, geração de emprego, assistência social, saúde, educação, entre outras áreas fundamentais para o desenvolvimento e a dignidade humana. Para Broide, a população em situação de rua mostra “as chagas, as mazelas da sociedade e toda a exclusão e crise social que a gente vive”.
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