Charge: Fer |
A Cúpula das Américas de Los Angeles pretendia ser o evento para dar um pontapé inicial na consolidação de uma nova hegemonia dos EUA na América Latina e no Caribe, após o “abandono” de Trump e ante a crescente influência da China na região.
Fracassou miseravelmente antes de começar.
Como sempre, os EUA impuseram vetos políticos e ideológicos a países com governos que os desagradam.
Assim, Cuba, Nicarágua e Venezuela foram vetados unilateralmente pelos EUA.
A desculpa esfarrapada foi a de sempre: esses países teriam governos autocráticos e promoveriam graves violações dos direitos humanos.
Curioso que essa tocante preocupação com democracia e direitos humanos não se aplica a países aliados dos EUA, como as ditaduras medievais do Golfo Pérsico (Arábia Saudita, Emirados Árabes, Bahrein etc.).
Diga-se de passagem, Biden se prepara para visitar o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohamed bin Salman, aquele que mandou assassinar o jornalista dissidente Jamal Khashoggi, que morava nos Estados Unidos e trabalhava para o The Washington Post.
Agora, no entanto, bin Salman é visto como “parceiro estratégico”, dada à necessidade de se produzir mais petróleo, um problema criado pelos EUA e por alguns parceiros europeus, em sua insana cruzada contra a Rússia.
Tampouco se aplica a aliados regionais dos EUA, como Colômbia, por exemplo. Nesse país, em 2021, foram assinados 138 ativistas de direitos humanos, por grupos armados que têm apoio do governo.
Mesmo nosso país, o Brasil, tem um currículo lamentável em direitos humanos e vive hoje numa espécie de semidemocracia, tutelada pelo poder militar, sob a ameaça constante de se transformar numa nova ditadura tout court.
Entretanto, esses países foram convidados porque se submetem, de forma canina, aos desígnios geopolíticos do Império.
Mas o fato concreto é que esse veto dos EUA provocou a pronta reação de países como México, Guatemala, Honduras, El Salvador e Bolívia, por exemplo, que não enviaram seus chefes de Estado para a cúpula.
Com isso, o principal tema de debate da cúpula, a migração, ficou inteiramente prejudicado, pois o México e os países da América Central são os principais exportadores de mão-de obra barata para os EUA.
Mão-de-obra essa que é tratada aos pontapés pelo governo dos EUA, em clara violação de direitos humanos.
A eleição desse tema como o principal da cúpula revela bem qual a importância da América Latina para os EUA: nenhuma.
O que importa realmente para os EUA, em relação à nossa região, são dois “problemas” que sempre são discutidos nas suas eleições: tráfico de drogas e migração irregular.
Em relação especificamente ao Brasil, há o “problema” da preservação da Amazônia e da proteção dos povos originários, temas que têm ampla repercussão no Partido Democrata.
Nesse sentido, a Cúpula é muito mais dirigida para agradar o público interno dos EUA, do que para realmente concertar agendas regionais relevantes para todos os países.
Interesses próprios da América Latina nunca tiveram muita relevância nessas cúpulas imperiais.
É preciso considerar, em tal contexto, que a América Latina sempre foi encarada, desde a época de Monroe, nos EUA, como um mero “quintal”.
Uma região de influência geopolítica exclusiva, que tem se submeter às diretrizes do Departamento de Estado e aos desejos políticos dos grupos anticastristas da Florida, swing state decisivo nas eleições presidenciais dos EUA.
A participação de Bolsonaro na Cúpula fracassada e esvaziada obedeceu também ao mesmo propósito geral de política interna.
Biden convidou Bolsonaro para um encontro bilateral com o intuito de evitar um esvaziamento ainda maior da cúpula.
Já Bolsonaro, sejamos francos, foi à cúpula com a missão exclusiva de tirar uma foto com Biden para distribuir nas suas redes sociais. Pretende, com isso, mostrar ao público interno que não é um pária, uma espécie de zumbi político mundial.
Em vão. O encontro entre os dois foi algo patético. Protocolar. frio e tenso, o encontro não produziu mais que declarações genéricas e vagas, previamente acertadas pelo corpo diplomático.
Os temas sensíveis que realmente importam na relação bilateral foram cuidadosamente evitados.
Os dois levaram “colas” previamente preparadas pelas assessorias para saber o que dizer e evitar atritos.
Até mesmo a linguagem corporal revelou a distância pessoal e política entre os dois mandatários. Não ouve apertos de mão e Bolsonaro evitou olhar para Biden.
Afinal, Bolsonaro só tem olhos para Trump, por quem professa explícito e devotado amor.
Depois, o nosso capitão tentou consertar o estrago, aproximando-se sorridente a Biden, nos estertores da cúpula.
Embora Bolsonaro diga que se “maravilhou” com Biden, é certo que o presidente norte-americano e o resto do mundo continuam a vê-lo como aquilo que ele realmente é: um governante medíocre, reacionário e ignorante, que nada tem a dizer de relevante nos foros mundiais, um político do qual todo o mundo quer distância.
Não há cúpula capaz de sanear essa imagem consolidada e merecida de Bolsonaro, o qual, aliás, chegou atrasado para o discurso de encerramento e a foto oficial.
Nosso presidente, como se sabe, não tem muito apreço pelo mundo do trabalho, pessoal e politicamente.
Ao contrário do que afirmaram algumas cabeças colonizadas, Bolsonaro nunca foi, não é e nunca será um estadista.
E não o é porque não fala inglês.
Não o é porque não consegue falar nada de significativo e interfere negativamente na agenda mundial.
Lula não fala inglês, mas foi e é um estadista de nível planetário, porque fala coisas importantes para o mundo e intervém positivamente na agenda internacional.
Lula é assete solução; Bolsonaro é estorvo e problema.
Independentemente dessas digressões sobre as relações bilaterais Brasil/EUA, o mais importante a ser destacado aqui é que a Cúpula fracassada e esvaziada revela tendência geopolítica inexorável.
A América Latina não será mais apenas um quintal dos EUA. Pelo menos, não de forma monolítica.
O mundo mudou de forma profunda, política e economicamente.
É inevitável que a China, a nova locomotiva econômica, tenha uma influência cada vez maior em nossa região, até mesmo porque Beijing, ao contrário de Washington, não exige contrapartidas políticas e ideológicas para estabelecer laços de cooperação e de investimento.
A Rússia, por sua vez, também tem, hoje, grande interesse em nossa região.
É natural, portanto, que muitos países do nosso entorno regional tenham interesse em diversificar suas parcerias estrangeiras, de modo a melhor promover seu desenvolvimento interno.
Foi o que o Brasil fez, com muito êxito, na época de Lula. No mesmo diapasão, a Argentina se prepara agora para ingressar no BRICS e desfrutar dos investimentos chineses que serão feitos no projeto estratégico da Nova Rota da Seda.
Como dizia o poeta Cazuza, o tempo não para. Mesmo os EUA não são capazes de detê-lo.
E Bolsonaro, que parou no tempo, mais especificamente na década de 70 do século passado, quando o Brasil vivia na ditadura de que ele tanto gosta, será uma vítima daquilo que Hegel dizia: a história mundial é uma corte de julgamento.
Não esquece e não perdoa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente: