Ilustração: Erin Dwia/C40 |
O Brasil tem metas para a inflação desde 1999. Acabamos de lançar metas para o resultado primário das contas públicas. Por que não teríamos, também, metas sociais? Por que só metas monetárias e fiscais? Eis a pergunta que não quer calar.
Se dependesse do mercado financeiro e dos economistas da mídia corporativa, os objetivos sociais, aceitos retoricamente como “importantes”, “relevantes”, “essenciais”, seriam estabelecidos de forma bem genérica, flexível e vaga. Em contraste com os monetários e fiscais, especificados com cuidado, detalhes e rigor, especialmente os fiscais. Na ausência dessas especificações, não haverá confiança na política econômica, asseguram os economistas ortodoxos, com ampla ressonância midiática. Já os objetivos sociais, vistos na prática como menos relevantes, podem ficar na esfera do meramente vago.
Preciso fazer uma ressalva antes de prosseguir. Longe de mim considerar irrelevantes as sagradas metas fiscais e monetária. Pelo amor de Deus! (Estou até me benzendo aqui.) Gostaria apenas de sugerir que metas sociais talvez sejam importantes também.
O pouco caso com questões sociais é típico dos brasileiros privilegiados, tacanhos em visão e aguerridos na defesa dos seus interesses imediatos. O povo que se vire, que se contente com as sobras do banquete. Enquanto os pobres padecem, a pequena minoria continua vivendo tranquila no paraíso dos rentistas em que se converteu o Brasil – único país, repito, que oferece aos aquinhoados a possibilidade de aplicar as suas gordas poupanças em títulos líquidos, sem risco e com alta remuneração real. Paraíso dos rentistas e, também, paraíso fiscal de todos os super-ricos, que têm carga tributária superleve, e ainda assim reclamam, indignados, quando se tenta fazê-los pagar um pouco de impostos. Um nojo, em suma.
Pequeno distúrbio, porém. Desde janeiro de 2023, o Brasil tem um governo declaradamente reformista, comprometido, tudo indica, com a distribuição da renda e o combate à fome e à miséria. Uma serpente no paraíso dos rentistas e super-ricos. Rosnando volta e meia, a Faria Lima observa com inquietação os movimentos de mudança esboçados por Brasília. Opera na mídia, por um lado, e nos bastidores do Executivo e do Congresso, por outro, para obstruir tentativas de fazer um pouco de justiça social. Vozes autorizadas protestam contra os “ruídos” do Presidente da República, que estaria supostamente atrapalhando a condução da política econômica. Foi eleito pelo voto direto, sem dúvida, mas deve ficar reduzido à condição de um inofensivo e decorativo Rei da Inglaterra.
Um parêntese
Paro de repente, e releio o que escrevi. Sinto necessidade de abrir um pequeno e rápido parêntese. É que um texto como este, dirigido a um público não especializado, não pode ficar circunscrito a generalidades; tem que descer ao nível do concreto e dar nome aos bois. É a melhor maneira de retratar as classes dirigentes brasileiras, quase sempre caricaturais e burlescas, como já dizia Machado de Assis.
Vejamos. Um bom exemplo é o financista Ilan Goldfajn, que ocupa atualmente o cargo de presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Lá está o bufunfeiro, confortavelmente instalado em Washington. Nada sabe de desenvolvimento, é verdade, mas tem a pose e a solenidade que o cargo requer. A sua função, na realidade, tem pouco a ver com financiamento do desenvolvimento. O que lhe cabe é essencialmente cumprir as ordens do Tesouro dos EUA, que manda e desmanda no BID. Pelo Tesouro ele foi eleito, e do Tesouro receberá orientação e instruções detalhadas. Mas o ponto a que quero chegar é o seguinte: o bufunfeiro em questão, como todos, presta as suas homenagens enfáticas à distribuição da renda e ao combate à miséria. Recentemente, esteve num congresso como keynote speaker. Quando chegou a sua vez, encolheu a generosa barriga e subiu ao pódio para proferir a sua conferência. Disse algumas palavras introdutórias, desfiou várias trivialidades, repassou os slogans mais batidos, até que, em determinado momento, estufou o peito, empostou a voz e proclamou: “Tudo faremos pelo progresso social e pela distribuição da renda na América Latina!” Aplausos. Satisfeito, a autoridade internacional voltou a seu lugar, arfando com o esforço que fizera, como um tenor medíocre depois de uma ária difícil.
Mas essa figura carimbada é uma entre mil. Temos uma verdadeira legião de economistas e financistas desse tipo, fiéis serviçais do status quo e da turma da bufunfa. Na condição de implementadores ou porta-vozes dos interesses dos beneficiários da injustiça vigente, contribuem incessantemente para que a distribuição da renda e luta contra a pobreza fiquem apenas no plano da retórica e dos keynote speeches.
A determinação de Lula
É o de sempre, leitor ou leitora. Subdesenvolvimento não se improvisa, dizia Nelson Rodrigues, é obra de séculos. Desta vez, entretanto, temos Lula. Percebe-se que ele não desistiu. Quer porque quer colocar o pobre no orçamento e, além disso, o rico no imposto de renda. Naturalíssima essa insistência. O Brasil, como sabemos, é um dos países com renda e riqueza mais concentradas no mundo. Uma grande parte da população vive na pobreza, passa fome, não tem acesso adequado a serviços básicos como educação, saúde e saneamento. Enquanto isso, os bilionários embolsam juros pornográficos e escapam da tributação.
Essa é a nossa miséria nacional estrutural. Responsabilidade social acima de tudo, portanto! Se Lula não lutar até a morte para superar esse quadro de pobreza e injustiça, terá patrocinado um dos maiores estelionatos da história.
Mas digo com toda tranquilidade, leitor ou leitora: é visível que o presidente Lula está determinado a honrar seus compromissos de campanha. Não só as promessas de 2022, mas a história de uma vida inteira. Lula deve ser se não o único, um dos poucos líderes políticos que viveu na carne a pobreza e o desamparo. “Todos nós somos cínicos”, dizia Delfim Netto, “só o Lula sabe da vida do povo”. Os políticos e intelectuais discursam ou teorizam sobre a pobreza e a injustiça. Já Lula viveu essa realidade, tem a memória do sofrimento do povo inscrito na sua trajetória desde a infância profunda.
E ele tem pressa, pois sabe, como político experimentado, que o tempo corre contra o governo e a favor das forças da inércia e do status quo.
Metas sociais – bazucas na única guerra que vale a pena
Volto à pergunta que não quer calar. Metas sociais seriam, a meu ver, úteis para dar foco à ação do governo. Num país como o Brasil, são tão ou mais importantes que as metas monetárias e fiscais, consideradas sacrossantas pelo mercado financeiro e seu puxadinho, a mídia corporativa.
Não faltam dados da área social no Brasil. É viável, acredito, usar estatísticas conhecidas e confiáveis para construir metas quantitativas específicas, a serem alcançadas em prazos pré-determinados.
O ministro Wellington Dias, do Desenvolvimento Social, anunciou recentemente que em torno de 20 milhões de brasileiros serão retirados da pobreza até o final deste ano, refletindo a retomada do Bolsa Família e os novos benefícios previstos no programa. Hoje, a estimativa do governo é que 62 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza.
A busca da responsabilidade social já começou. O governo, desde janeiro, tem tomado medidas pontuais para distribuir renda: a volta da política de valorização do salário mínimo, o aumento do limite de isenção para o imposto de renda na fonte, a mencionada retomada do Bolsa Família, entre outras.
Será que esse esforço não se beneficiaria da definição e do anúncio de metas sociais quantitativas? Metas que o governo se proporia a cumprir ao longo do seu mandato, ano a ano, de 2023 a 2026? Essa é uma área em que os partidos de esquerda e o governo Lula contam com quadros experimentados. Não haveria maior dificuldade de mobilizar esses especialistas para selecionar criteriosamente um conjunto de indicadores que balizariam as metas sociais anuais do governo. Por exemplo, a quantidade de pessoas ou famílias com renda inferior às linhas de pobreza e miséria, o número de domicílios sofrendo de insuficiência alimentar, índices de escolaridade e alfabetização, indicadores de acesso à saúde e saneamento básico, indicadores de distribuição de renda, entre outros.
Essas metas não seriam de um ministério, mas do governo no seu conjunto. Receberiam, no mínimo, o mesmo destaque e a mesma atenção que recebem as metas macroeconômicas. O anúncio das metas sociais, após cuidadosa discussão, pública e aberta, deveria ser feito pelo próprio Presidente da República, com a pompa e circunstância que o assunto merece.
Qual a vantagem de seguir procedimentos como esses? É questão de bom-senso. O anúncio, no mais alto nível, de um conjunto de metas previamente discutido e elaborado com o auxílio dos melhores especialistas ajudará a que todos os setores relevantes do governo, em colaboração com entidades da sociedade, se engajem nessa guerra contra a fome, a pobreza e a injustiça.
Como tem repetido o presidente Lula, essa é a única guerra de que nos interessa participar. É preciso lutá-la com garra, determinação incansável, sangue nos olhos. Metas sociais ajudarão a vencê-la.
* Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista CartaCapital.
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