Charge: Miguel Paiva/247 |
Um senador ou um deputado pode impunemente louvar a morte? Pode exaltar assassinos e tripudiar sobre as vítimas? Na teoria, não. Na prática, sim. Na letra fria da lei, não. Na complacência do Congresso e dos congressistas, certamente sim.
É o que se confirma na Câmara dos Deputados de Arthur Lira e no Senado de Rodrigo Pacheco. Prova disso estamos tendo agora, quando a máquina de matar instalada na Polícia Militar paulista executa uma pessoa a cada dez horas, produção cadavérica que dobra aquela de 2022.
Alguns congressistas, entre eles um senador, aplaudiram a carnificina patrocinada pela PM do capitão Guilherme Derrite e do seu chefe Tarcísio de Freitas, os donos do açougue que abate e oferece, sobretudo, carne preta.
A maioria deles frequenta a mesma e óbvia sigla, cuja graça vira um paradoxo se confrontada com o procedimento corriqueiro da legenda: Partido Liberal. O único fora do PL também lida com uma contradição: seu partido é "social" e "democrático". Imagine se não fosse...
É o mais saliente da trinca e atende pelo codinome Sargento Fahur. Vamos a ele:
- (...) Eu não fiquei chocado de um policial jogar um cabra de uma ponte. Por quê? Porque o cara chega numa conclusão de que não vai adiantar merda nenhuma levar aquele cara para a delegacia.
Bolsonarista do PSD do Paraná, Fahur também debochou do rapaz executado por um policial com 11 tiros. Corajosamente desferidos pelas costas:
- Outro noia vai roubar o mercado, furta 3 pacotes de sabão (...), o policial está lá fazendo compra, vê o ladrão, todo espalhafatoso, escorregando, dá onze tirinhos nele e tem que ser responsabilizado e afastado? Vai acabar a polícia de tanto afastar gente.
A extensão dos bigodes de Fahur opera na razão inversa da sua valentia, tanto que intrepidamente apagou seu post tão logo sua ostentação de brutalismo começou a reverberar. É o seu perfil. Em 2020, informou estar "alegre" com o cancelamento de 24 CPFs na chacina do Jacarezinho, no Rio. Destemido, porém medroso deletou a postagem em seguida.
Para não ficar atrás, o senador Jorge Seif, do PL de Santa Catarina, julgou tímida a atitude do policial que jogou o sujeito da ponte. Disse que o PM deveria tê-lo atirado "de um penhasco" e que arremessá-lo para "tomar banho" em um córrego acabou sendo "um prêmio".
Como bravura e bolsonarismo são palavras que se repelem mutuamente, Seif pensou com as pernas e foi correndo apagar sua gracinha sem graça.
Um terceiro personagem, o deputado Capitão Augusto (PL-SP) aproveitou o momento para enaltecer Derrite que "está fazendo um ótimo trabalho". E argumentou: "Basta ver os números".
Bem, os números discordam, ao menos aqueles que dialogam com o principal, a preservação de vidas humanas, entre elas a de Ryan da Silva Andrade Santos, de quatro anos, assassinado em Santos.
Porém, se a lógica for a trazida por Derrite, está perfeito. Ou não foi do secretário aquela entrevista em que tachou de "vergonhoso" o desempenho de colegas de farda que mataram menos de três pessoas em cinco anos de serviço?
Outra felicitação pelo bom trabalho veio do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG). "Parabéns ao secretário Guilherme Derrite e ao governador Tarcísio de Freitas", publicou nas redes.
Deputados e senadores, no momento da posse, fazem um juramento. Nele, prometem "manter, defender e cumprir a Constituição" e "observar as leis". Como se sabe, essa senhora, a dona Constituição, estabelece algumas normas onde, salvo engano, tropeçam louvações ao homicídio.
A começar pelo terceiro inciso do artigo 1º. Lá, ancora-se a "dignidade da pessoa humana" como um dos seus princípios fundamentais. Supõe-se que um agente público jogar um suspeito de uma ponte só para ver o que acontece ou desfechar 11 tiros em alguém pelas costas não coadune, em qualquer hipótese, com a dignidade da pessoa alguma ou mesmo de um bicho. Tampouco celebrar tal gesto notoriamente criminoso.
"Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante" diz adiante o inciso terceiro do artigo 5º. E o inciso segundo do artigo 55 adverte que senador ou deputado podem perder o mandato se seu procedimento "for declarado incompatível com o decoro parlamentar".
Além disso, o artigo 287, do Código Penal, criminaliza a apologia pública de ação criminosa, fixando penas de detenção de três a seis meses ou multa. Não existe a menor nesga de dúvida de que Fahur e Seif glorificaram delitos muito bem documentados.
O padrão ético do Congresso é sofrível, mas nem sempre foi tão grotesco. É da gente se perguntar quando isso descambou. Cada um de nós tem uma data, um instante, uma tese sobre o gatilho que deu a largada rumo à putrefação absoluta. Eu também tenho a minha hipótese.
Penso que foi quando um deputado desprezível do baixo clero, visto como irrelevante e bizarro pelos seus pares, afixou uma mensagem na porta de seu gabinete. Naquele dia distante de 2009, mães, pais e irmãos de desaparecidos da guerrilha do Araguaia visitavam a Câmara buscando apoio para sua incansável procura dos restos mortais de seus entes queridos chacinados pela ditadura.
"Quem procura osso é cachorro", dizia o cartaz.
* Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e "O Pais da Suruba" (Libretos, 2017).
É o que se confirma na Câmara dos Deputados de Arthur Lira e no Senado de Rodrigo Pacheco. Prova disso estamos tendo agora, quando a máquina de matar instalada na Polícia Militar paulista executa uma pessoa a cada dez horas, produção cadavérica que dobra aquela de 2022.
Alguns congressistas, entre eles um senador, aplaudiram a carnificina patrocinada pela PM do capitão Guilherme Derrite e do seu chefe Tarcísio de Freitas, os donos do açougue que abate e oferece, sobretudo, carne preta.
A maioria deles frequenta a mesma e óbvia sigla, cuja graça vira um paradoxo se confrontada com o procedimento corriqueiro da legenda: Partido Liberal. O único fora do PL também lida com uma contradição: seu partido é "social" e "democrático". Imagine se não fosse...
É o mais saliente da trinca e atende pelo codinome Sargento Fahur. Vamos a ele:
- (...) Eu não fiquei chocado de um policial jogar um cabra de uma ponte. Por quê? Porque o cara chega numa conclusão de que não vai adiantar merda nenhuma levar aquele cara para a delegacia.
Bolsonarista do PSD do Paraná, Fahur também debochou do rapaz executado por um policial com 11 tiros. Corajosamente desferidos pelas costas:
- Outro noia vai roubar o mercado, furta 3 pacotes de sabão (...), o policial está lá fazendo compra, vê o ladrão, todo espalhafatoso, escorregando, dá onze tirinhos nele e tem que ser responsabilizado e afastado? Vai acabar a polícia de tanto afastar gente.
A extensão dos bigodes de Fahur opera na razão inversa da sua valentia, tanto que intrepidamente apagou seu post tão logo sua ostentação de brutalismo começou a reverberar. É o seu perfil. Em 2020, informou estar "alegre" com o cancelamento de 24 CPFs na chacina do Jacarezinho, no Rio. Destemido, porém medroso deletou a postagem em seguida.
Para não ficar atrás, o senador Jorge Seif, do PL de Santa Catarina, julgou tímida a atitude do policial que jogou o sujeito da ponte. Disse que o PM deveria tê-lo atirado "de um penhasco" e que arremessá-lo para "tomar banho" em um córrego acabou sendo "um prêmio".
Como bravura e bolsonarismo são palavras que se repelem mutuamente, Seif pensou com as pernas e foi correndo apagar sua gracinha sem graça.
Um terceiro personagem, o deputado Capitão Augusto (PL-SP) aproveitou o momento para enaltecer Derrite que "está fazendo um ótimo trabalho". E argumentou: "Basta ver os números".
Bem, os números discordam, ao menos aqueles que dialogam com o principal, a preservação de vidas humanas, entre elas a de Ryan da Silva Andrade Santos, de quatro anos, assassinado em Santos.
Porém, se a lógica for a trazida por Derrite, está perfeito. Ou não foi do secretário aquela entrevista em que tachou de "vergonhoso" o desempenho de colegas de farda que mataram menos de três pessoas em cinco anos de serviço?
Outra felicitação pelo bom trabalho veio do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG). "Parabéns ao secretário Guilherme Derrite e ao governador Tarcísio de Freitas", publicou nas redes.
Deputados e senadores, no momento da posse, fazem um juramento. Nele, prometem "manter, defender e cumprir a Constituição" e "observar as leis". Como se sabe, essa senhora, a dona Constituição, estabelece algumas normas onde, salvo engano, tropeçam louvações ao homicídio.
A começar pelo terceiro inciso do artigo 1º. Lá, ancora-se a "dignidade da pessoa humana" como um dos seus princípios fundamentais. Supõe-se que um agente público jogar um suspeito de uma ponte só para ver o que acontece ou desfechar 11 tiros em alguém pelas costas não coadune, em qualquer hipótese, com a dignidade da pessoa alguma ou mesmo de um bicho. Tampouco celebrar tal gesto notoriamente criminoso.
"Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante" diz adiante o inciso terceiro do artigo 5º. E o inciso segundo do artigo 55 adverte que senador ou deputado podem perder o mandato se seu procedimento "for declarado incompatível com o decoro parlamentar".
Além disso, o artigo 287, do Código Penal, criminaliza a apologia pública de ação criminosa, fixando penas de detenção de três a seis meses ou multa. Não existe a menor nesga de dúvida de que Fahur e Seif glorificaram delitos muito bem documentados.
O padrão ético do Congresso é sofrível, mas nem sempre foi tão grotesco. É da gente se perguntar quando isso descambou. Cada um de nós tem uma data, um instante, uma tese sobre o gatilho que deu a largada rumo à putrefação absoluta. Eu também tenho a minha hipótese.
Penso que foi quando um deputado desprezível do baixo clero, visto como irrelevante e bizarro pelos seus pares, afixou uma mensagem na porta de seu gabinete. Naquele dia distante de 2009, mães, pais e irmãos de desaparecidos da guerrilha do Araguaia visitavam a Câmara buscando apoio para sua incansável procura dos restos mortais de seus entes queridos chacinados pela ditadura.
"Quem procura osso é cachorro", dizia o cartaz.
* Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e "O Pais da Suruba" (Libretos, 2017).
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