domingo, 15 de setembro de 2013

A disputa pelo voto de Celso de Mello

Por Najla Passos, no sítio Carta Maior:

Só o tempo dirá se o ministro Celso de Mello sucumbirá à intensa pressão midiática que recai sobre ele desde o final da sessão desta quinta (12), quando a votação pela admissibilidade ou não dos embargos infringentes na ação penal 470 fechou o placar em 5X5 e o presidente da corte, Joaquim Barbosa, encerrou a sessão. Em coletiva à imprensa, indicou que irá manter a posição expressa no primeiro dia de julgamento, pela validade do recurso. Será?

Normalmente discreto, Celso de Mello fez questão de conceder coletiva à imprensa. Difícil saber se foi uma fala espontânea ou um recado às redações do país. Mas o fato é que ele deixou claro que não se curvará às pressões da mídia, muitas vezes travestidas de sentimento geral da população. “É preciso decidir, e é preciso decidir com independência do que pensa a opinião pública”, disparou. O ministro não adiantou o teor do voto que, segundo ele, já está pronto. Mas falou em coerência e lembrou aos jornalistas que já se manifestou duas vezes sobre os embargos infringentes, uma delas na própria ação penal do mensalão.

Foi no dia 2 de agosto de 2012, no primeiro dia do julgamento (ver vídeo), quando rebateu o argumento dos advogados de que os réus sem direito a foro privilegiado deveriam ser julgados nas instâncias inferiores para terem direito ao duplo grau de jurisdição, como prevê o Pacto de São José da Costa Rica, convenção internacional ratificada pelo Brasil.

“O Supremo Tribunal Federal, em normas que não foram revogadas e ainda vigem, reconhece a impugnação de decisões emanadas do plenário desta corte em sede penal, não apenas em embargos de declaração como aqui se falou, mas também em embargos infringentes do julgado, que se qualificam como um recurso ordinário dentro do STF, na medida em que permitem a rediscussão de matéria de fato e a reavaliação da própria prova penal”, afirmou na ocasião.

Na ocasião, nenhum dos ministros, nem mesmo o relator da ação, Joaquim Barbosa, contestou a posição de Mello sobre a pertinência dos infringentes. Os advogados dos réus deixaram o tribunal convictos de que teriam, pelo menos, direito de recorrer à própria corte das decisões mais polêmicas, que obtivessem pelo menos quatro votos contrários, como prevê o artigo 333 do Regimento da Corte. Para os advogados, tudo indicava que a regra fora acertada no início do jogo. E combinado não sai caro.

As ‘deslealdades’ do processo

Foi também nesta mesma sessão que Barbosa e o ministro revisor, Ricardo Lewandowski, protagonizaram sua primeira discussão acalorado. Ao votar favorável ao desmembramento do processo, o revisor foi acusado pelo relator de “deslealdade” por não ter apresentado sua posição anteriormente. “Dialogamos nesses últimos 2,5 anos em que Vossa Excelência é revisor. Me causa espécie que vossa excelência não tenha se manifestado sobre isso há 6, 8 meses, antes que preparássemos toda essa... É deslealdade, ora”.

Lewandowski reivindicou seu direito à posicionamento contrário. “Eu, como revisor, ao longo deste julgamento, farei valer o meu direito de manifestar-me sempre que entender que isso seja necessário. Eu acho que é um termo muito forte o que Vossa Excelência está usando, e que já está prenunciando que este julgamento será muito tumultuado”, profetizou.

Só em maio deste ano, já como presidente da corte, Barbosa revelou sua inenção de suprimir a possibilidade do recurso, ao negar, em decisão individual, os embargos infringentes requeridos precipitadamente pela defesa do ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares. Teria cometido a sua “deslealdade”, já que jamais falara antecipadamente sobre o assunto?

Para o criminalista Marcelo Leonardo, que representa o publicitário Marcos Valério, se a defesa de Delúbio não tivesse violado o devido processo legal e entrado prematuramente com os infringentes, essa discussão sequer ocorreria. “Antes de maio, nenhum dos advogados seria capaz de supor essa polêmica”, afirmou. Alçado ao posto de vilão da advocacia, o advogado que represente Delubio, Antônio Malheiros, tem se mantido longe do plenário do STF.

O segundo precedente de Mello
Na coletiva de ontem, Celso de Mello disse que a segunda vez que se manifestou sobre os infringentes foi em dezembro do ano passado, quando foi designado relator de embargos de declaração da ação penal 409, como já havia lembrado Lewandowski em seu voto. Mello não acolheu o recurso, mas porque os votos divergentes não somavam o mínimo de quatro, e não porque o considerasse inadmissível. Ele não aventou a hipótese dos infringentes terem sido revogados pela Lei 8038/90, como agora alegam os contrários ao recurso.

Na coletiva, Celso de Mello não comentou as possíveis pressões que estaria sofrendo em função da responsabilidade de dar o voto de minerva. “Essa responsabilidade é inerente ao desempenho no caso e à função”, se limitou a dizer, acrescentando que empates acontecem muitas vezes, independentemente da natureza da matéria. “As decisões que emanam do Supremo não são individuais, mas revertidas de coletividade”, acrescentou.

O decano, entretanto, será submetido a uma semana de manchetes incisivas sobre seu papel neste imbróglio. E sua história, inclusive no curso da própria ação penal do mensalão, demonstra que ele não é dos mais afeitos a desagradar às forças conservadoras. No curso do julgamento do mensalão foi um dos que condenaram com mãos mais pesadas, como fez questão de recordar o ministro Gilmar Mendes, também durante o seu voto.

O juiz que largou o apito
Se o julgamento do mensalão fosse um jogo de futebol, seria impossível não observar que o ministro Gilmar Mendes abandou de vez o apito e decidiu cavar o gol junto ao time que ele representa. Deixou de ser ministro para se travestir de Ministério Público. Atacou os réus com fúria descomunal. Alterou a voz, fez discurso político. Tal como Barbosa, começou criticando a duração do julgamento, que já consumiu mais de 50ª sessões e, de tão longo, assistiu à aposentadoria de dois ministros. “Talvez não estejamos mais aqui quando os embargos vierem a ser julgados”, apelou.

Mendes fez questão de recordar o que Celso de Mello falou no seu voto sobre o crime de quadrilha, que ajudou a dar maioria para a decisão mais polêmica do caso e, por isso, a mais suscetível aos embargos infringentes. “Este processo revela um dos episódios mais vergonhosos da história política de nosso país, pois os elementos probatórios que foram produzidos pelo Ministério Público expõem aos olhos de uma nação estarrecida, perplexa e envergonhada, um grupo de delinquentes que degradou a atividade política, transformando-a em plataforma de ação criminosa”, afirmou, citando as palavras do ministro que, estrategicamente, será o responsável pelo desempate.

Fez jus à fama de “o mais aliado com a direita dentre os 11 homens da corte”, ao dar voz ao fantasma do medo do comunismo e atacar ferozmente o que definiu como “o pensamento de que o partido é o Estado”. Ele lembrou que o mensalão, pelo que se apurou até o momento, desviou R$ 170 milhões dos cofres públicos. “Perto disso, o crime de Donadon, que envolve fraude de R$ 8 milhões, deveria ser tratado em juizado de pequenas causas”, atacou.

O ministro discordou do argumento apresentado pelos favoráveis aos infringentes de que a Lei 8038 não revogou o revogou o Regimento Interno do STF, que prevê o recurso. Citou artigo da ex-ministra Ellen Gracie, em que ela afirma o contrário. Jogou por terra seus pareceres anteriores que destacavam que a legislação internacional se sobrepor a nacional, ao desconsiderar o direito ao duplo grau de jurisdição previsto no Pacto de São José da Costa rica, convenção da qual o Brasil é signatário.

Ao final do voto, jornalistas que assistiam à sessão na sala contígua ao plenário aplaudiram e deram vivas. Estava garantida sua prevalência no noticiário de ontem, de hoje e dos próximos dias.

Com direito a puxão de orelha
Sem ter preparado um voto por escrito, o ministro Marco Aurélio, que empatou o placar em 5X5 fechando a sessão, também insistiu na tecla da celeridade, lembrando que mais de 400 ações penais aguardam julgamento na corte. “Eu mesmo tenho processo – e isso é uma frustração para o julgador – que liberei há 10 anos para julgamento”, argumentou. Não respondeu à provocação de Lewandowski, que sugeriu o aumento do número das sessões.

Ele também lembrou que “a sociedade pede o fim do processo do mensalão”. Acabou interrompido pelo ministro Luiz Roberto Barroso: “Eu sou um juiz constitucional. Não estou pleiteando ser manchete favorável no dia seguinte”. Barroso também recordou que o papel do juiz é servir à Constituição. "A opinião pública é muito importante em uma democracia e fico muito feliz quando coincide com a decisão do tribunal constitucional. Agora, se o que considero certo não bate com a opinião pública, eu cumpro meu papel. A multidão quer o fim desse julgamento, e eu também. Mas nós não julgamos para a multidão, nós julgamos pessoas”.

O ministro acrescentou que uma pessoa que tivesse um pai, filho ou irmão na reta final de um julgamento em que as regras fossem mudadas no último minuto, jamais concordaria com isso. “Não estou aqui subordinado à multidão. Não tenho o monopólio da certeza, mas tenho o monopólio íntimo de fazer o que acho certo. O que sair no jornal do dia seguinte não faz diferença pra mim se não for o certo", disse Barroso.

Irritado, Marco Aurélio insistiu que dá, sim, importância ao noticiário, “porque é servidor público e, por isso, deve prestar contas à sociedade”. E desqualificou o colega que,desde que entrou no julgamento, no último mês, vem desabonando as decisões tomadas pela maioria do STF: “Vejam que o ‘novato’ parte para a critica ao próprio colegiado, como partiu em votos anteriores. No que chegou a apontar que não decidiria da forma na qual nós decidimos. Não respondi à critica, não foi uma crítica velada, foi uma crítica direta, porque não achei que era bom para o tribunal a autofagia".

Carmem Lúcia na defensiva
Primeira a votar na sessão desta quinta, quando o placar ainda estava em 4X2 em favor dos réus, Carmem Lúcia decepcionou pelos argumentos tacanhos. Já começou na defensiva, esclarecendo que, nas oportunidades anteriores em que se pronunciou sobre embargos infringentes, foi para dizer que eles não eram cabíveis em habeas corpos e, portanto, não fizera análise da sua admissibilidade. “Digo isso para não ficar a impressão de que houve mudança de tendência ou um comportamento inovador”, justificou.

Segundo a ministra, cabe ao Congresso legislar sobre as leis nacionais, como é o caso da legislação penal - e não há lei de autoria do Congresso que preveja os embargos. Ela desconsiderou que, por decisão do próprio poder constituinte, o Regimento Interno do STF foi acolhido com força de lei pela Constituição de 1988. E revelou que decidiu pela inadmissibilidade dos infringentes ao observar que esses recursos não são cabíveis no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Para ela, dois réus hipoteticamente acusados pelo mesmo crime que, por questões de prerrogativas de foro, fossem ser julgados no STF e STJ, teriam tratamento diferenciado, o que fere o princípio da isonomia. “Não posso tratar desigualmente os desiguais neste caso, porque aqui são iguais”, observou. A ministra também não considerou que o réu condenado originariamente pelo STJ, colegiado de 2ª instância, tem como recorrer ao STF, enquanto o condenado pelo STF, não.

Além disso, preferiu esquecer que, na própria ação do mensalão, esse princípio já foi ferido, tendo em vista que réus sem direito a foro privilegiado foram condenados no STF, enquanto outros ainda estão sendo julgados nas instâncias inferiores. Caso, por exemplo, de quatro executivos do Banco do Brasil que, junto com Henrique Pizzolatto, assinaram a autorização de repasse dos recursos do Visanet para a agência de publicidade de Marcos Valério. Apenas Pizzolatto foi julgado – e condenado - pela corte máxima.

Ele respondeu ao questionamento de que os embargos infringentes seriam uma forma de garantir o duplo grau de jurisdição, alegando que este direito tem seus limites dentro do sistema jurídico brasileiro. Arrepio geral na ala do plenário destinada ao assento dos advogados.

Princípio da vedação do retrocesso
O ministro Ricardo Lewandowsk, como esperado, votou a favor dos infringentes. Para ele, a aceitação do recurso “permite a derradeira oportunidade de corrigir erros de fato e de direito, sobretudo porque encontra-se em jogo o bem mais precioso da pessoa depois da vida, que é seu status libertatis”. Ao fazer um histórico sobre a legislação que rege a corte, ele disse que todos os regimentos anteriores da casa previam alguma forma de embargabilidade das decisões, sobretudo se em única instância. “Portanto, essa possibilidade de embargar decisões não unânimes é da história do STF”, defendeu.

Em resposta ao argumento central da ministra Carmem Lúcia, Lewandowski lembrou que o Superior Tribunal de Justiça foi criado pós Constituição de 1988. Portanto, não tinha norma anterior recepcionada como lei, como é o caso do STF, prevendo embargos infringentes. E criticou a postura dos colegas que rejeitam o recurso, para ele, de forma casuística. “Embora a Lei 8038 tenha criado os embargos de divergência, o recurso em habeas corpus e o recurso em mandato de segurança apenas no âmbito do STJ, nunca se cogitou a não interposição desses recursos no âmbito dessa corte. Igualmente, a intervenção federal (...) só foi prevista na lei em relação ao STJ. Não obstante, ninguém jamais competência do STF para decretá-la”.

O ministro também ressaltou que, nas inúmeras vezes que o STF os embargos infringentes, nunca observou que estivessem revogados. E defendeu o princípio jurídico da vedação do retrocesso, segundo qual nem o administrador, nem o legislador e nem o julgador podem atuar para restringir os direitos que a constituição assegura. “Não se pode retirar casuisticamente nesse julgamento um recurso com o qual os réus contavam e com relação ao qual não havia qualquer contestação nesta Corte".

Cenários possíveis
Com os votos na mesa, a corte ficou dividida do seguinte modo: Barbosa, Luiz Fux, Carmem Lúcia, Gilmar Mendes e Marco Aurélio contra o recurso, e Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli e Lewandowski a favor. A sessão será retomada na próxima quarta (18), quando Celso de Mello proferirá o seu.

Se os embargos infringentes forem acolhidos, após a publicação do acórdão final, as defesas dos réus terá prazo de 10 dias para apresentar recursos. Um único e novo relator será designado para o caso. “Para a defesa, isso é positivo porque significa que não será mais o Joaquim Barbosa, que já deixou suas posições muito claras no processo, e que são amplamente desfavoráveis aos réus”, explica Marcelo Leonardo.

Não haverá um novo e longo julgamento, como vem sendo repetido como mantra pela imprensa. O próprio ministro Marco Aurélio, desfavorável aos infringentes, disse que serão julgadas apenas questões muito específicas de réus específicos: os oito condenados por formação de quadrilha, outros três por lavagem de dinheiro e um por evasão de divisas. Ele também rebateu a “ameaça” de Gilmar Mendes de que o julgamento se perca indefinidamente em uma sucessão de recursos. “Isso não é possível. O processo é dinâmico, não pode retornar”, retrucou.

O ministro garantiu aos jornalistas - ávidos pela informação - que não haverá prescrição de penas. “Com os embargos infringentes, suspende-se a contagem. Não há este perigo”, rebateu. Marco Aurélio lembrou ainda que, mesmo com o recurso, o resultado final pode nem sofrer alterações. Uma possibilidade concreta seria Celso de Mello votar pelo recurso, para manter sua coerência, e depois voltar a pesar a mão na reavaliação. Se os dois novos ministros seguirem a tendência mais favorável aos réus, o fiel da balança deverá ser o ministro Marco Aurélio, que ora acompanha um grupo e ora outro.

Caso os infringentes sejam indeferidos, a procuradora-geral da República em exercício, Helenita Acioli, já pedirá, na mesma sessão, a prisão dos condenados. E o presidente da corte, Joaquim Barbosa, decidirá se elas serão feitas imediatamente ou só após a publicação dos embargos. A mídia, de qualquer forma, estará mais perto de obter as tão esperadas imagens com que tentará pautar as eleições de 2014: as das prisões dos “mensaleiros”, especialmente do ex-ministro José Dirceu e do deputado José Genoino (PT-SP).

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