sábado, 22 de julho de 2017

A gritaria de Bolsonaro e o avanço do 'mito"

Por Gabriel D. Lourenço e Luiz Gabriel Braun, no site The Intercept-Brasil:

Militar da reserva, político de carreira (sete vezes deputado federal, uma vez vereador) e presidenciável, Jair Messias Bolsonaro tirou alguns dias fora de Brasília, reino dos memes da corrupção brasileira, para vir até Florianópolis (SC) em maio. Em seguida, sua turnê passaria por Joinville, Blumenau e Jaraguá do Sul. Pela primeira vez, de acordo com evento criado no Facebook, para uma palestra: 2,7 mil pessoas mostraram-se interessadas no encontro aberto ao público, sem cobrança de ingresso. Uma amostra dos 21% de eleitores brasileiros que dizem que, se a eleição fosse hoje, escolheriam Bolsonaro para comandar o país. Número que parece consolidar a direita mais radical como uma alternativa cada vez mais real de poder no Brasil.

A seu lado em Florianópolis estariam os deputados federais Eduardo “Mitinho” Bolsonaro e Rogério “Bancada-da-Bala” Peninha. Não havia muitos detalhes. A julgar pelo vídeo promocional, poderia muito bem ser um meet and greet com um desses YouTubers da moda que se veem internet adentro. A diferença é que era um político superstar e presidente do Brasil wannabe.

Mas sobre o que era a palestra? Nada constava. Teríamos de ir lá pra ver.

Para nós, não fazia sentido um homem com um discurso daqueles ser entendido como carismático. Também desconfiávamos de que a multidão agia ao seu redor como seguidores de um messias, com “m” minúsculo. Mas, principalmente, queríamos entender por que, para aquela fervorosa parcela de gente de bem, “político de estimação” não pode – mas mito, bem, aí são outros 200 mil.
1. Os que não cansaram de esperar

Bolsonaro chegaria ao aeroporto às 10h20. Chegamos às 9h, e, obviamente, não éramos os primeiros a esperar por ele.

Algumas voltas clicando os vinte e tantos presentes, um senhor de cinquenta e tantos ralhou que não autorizava fotos dele. Acalmou quando explicamos que atrás dele estava a recepção ao deputado, e nosso trabalho era cobrir a vinda.

“Pena meu vôo sair antes do Bolsonaro chegar,” lamentou. “Queria ver o cara. Um dos poucos honestos que ainda sobraram por aí.”

“Então, você votaria nele?”

“Claro. Nele ou no Dória, são candidatos fortes na minha opinião. O Bolsonaro porque tá caindo de pau no Lula, no PSDB, nesses caras aí. E o Dória porque é um gestor de verdade. Essa eleição ou vai dar um, ou vai dar outro. O problema é o Nordeste.”

“Mesmo? Mas por que você acha isso?”

“O Nordeste é o forte da esquerda, é onde eles ganham voto. Porque lá o povo depende de Bolsa Família, de esmola, são massa de manobra. Eu sou de Campinas, moro aqui na ilha [Florianópolis] tem 15 anos e aqui, onde é mais desenvolvido, esses caras não se criam. Por que o Lula não tá fazendo campanha aqui no Sul, e lá no Nordeste já tem até outdoor dele, candidato a presidente? É verdade, recebi as fotos no meu celular e tudo…”
Logo depois, pedi a dois trinta-e-tantos de moletom do Bolsonaro que deixassem eu fotografar as estampas. O primeiro deles, mais alto e o único cabeludo lá além de mim, disse, desconfortável, que não. Seu amigo, de cabeça raspada, cutucou mandando se levantar, que não era pra ficar de frescura.

Na hora das fotos, fizeram cara de mau. E enquanto o primeiro voltou a seu mundinho, o segundo dizia por que Bolsonaro era o cara.

“Ele defende muita coisa que eu acredito. É de direita, defende punição pra bandido, porte de arma, é contra a ideologia de gênero – especialmente a ideologia de gênero. Esse negócio aí do Estado ficar mandando no sexo do meu filho, do que ele vai ser. Isso é um absurdo. Na criação da minha criança, mando eu.”

Chequei as fotos enquanto balançava a cabeça. Ele prosseguiu:

“O Bolsonaro não é homofóbico, não é contra os gays. Só não quer o Estado mandando no sexo das crianças, pô. É a favor da família, de Deus, a favor do cidadão de bem. E ainda tem gente com a cara de pau de dizer que ele é preconceituoso, racista, homofóbico. Se ser a favor disso tudo é ser homofóbico, então eu sou um baita de um homofóbico.”
2. Peregrinos, devotos e mártires das santas causas políticas

Encontrei dois jovens, filiados ao Partido Social Cristão (PSC), que desceram os 68 km de Itapema até lá para ver o cara de perto. O mais falante deles vestia uma camiseta do político, autografada na semana anterior quando ele mesmo fora a Brasília. Era a terceira vez que estaria diante do ídolo.

Câmera no pescoço, me apresentei como repórter. Me olharam assustados, os dois, como se eu fosse um demônio saído das entranhas da Folha de S. Paulo. Cobraram meu alinhamento político. Respondi que não era aquilo que me faria deixar de ouvi-los nem de tentar entendê-los.

“Talvez vocês possam me responder uma coisa,” comentei. “Um amigo que trabalha na Câmara me contou que a sala do Bolsonaro é a única com uma cama. Isso é verdade?”

“Não. Não, não, não, não!”, protestava o de camiseta autografada. “Não tem, não!”

“É que faria sentido, afinal,” e joguei pela empatia. “Pensa comigo. Se você é um político e tem vários projetos para votar, passa a noite inteira votando…”

“Não é não, cara. O Bolsonaro é humilde, come marmita todo dia. Ele é que nem a gente, não tem isso, não.”

A comoção chamou a atenção de Leandro Chaplin, um simpático careca do Direita Santa Catarina e responsável pela organização. Expliquei a situação da mesma forma. Respondeu sorrindo.

“Deve ter. Faz sentido, afinal. Hoje mesmo mandou um vídeo pra gente, às 6h da manhã, direto no gabinete, teve de ficar votando projeto até mais tarde.”

Adiante, um trio comentava ter levantado cedíssimo para estar ali àquela hora. Era o casal Tayoana Schuller, 24 anos, e Gabriel Roberto, 23 anos, junto ao amigo Flávio Acquesta, 41 anos. Estavam lá desde as 7h. Tiveram de acordar às 3h da manhã para preparar tudo e encarar os 225 km de Lages até a capital.
“Esperança, cara. No meio de um país com tanta corrupção, com estes nossos políticos que só nos trazem vergonha, vi nele uma esperança em si.”

Adiante, o professor de jiu-jitsu e medalhista mundial, Aron de Oliveira, 23 anos, tirava uma foto envolto na bandeira do Amapá – toda canetada por seus alunos. Planejou participar anteriormente de um campeonato em São Paulo só para facilitar a escala até Florianópolis, ver seu herói de perto. “Sem um puto no bolso”, teria de pegar dinheiro emprestado dos amigos para se virar ali. Queria uma foto, um contato, e voltar pra casa com um autógrafo na bandeira para seus alunos do projeto social – privilégio para poucos de lá.

“Pra mostrar que lá no Norte também existem pessoas que o apoiam. Apesar de ser um povo meio esquecido, às vezes criticado por ignorante, no Norte também tem pessoas.”

“E o que significa pra você esse esforço de vir de tão longe só pra estar diante do Bolsonaro?”

“Esperança, cara. No meio de um país com tanta corrupção, com estes nossos políticos que só nos trazem vergonha, e quando eu comecei a pesquisar sobre ele – uns quatro, cinco anos atrás –, e mesmo ele sendo de outra cidade, vi nele uma esperança em si.”

A multidão se aglutinava no aeroporto. Mais de cem pessoas chegaram no local, e a tendência era continuar crescendo. Na movimentação, branco, preto e verde-e-amarelo eram as cores majoritárias nas camisetas. Um sem-número de estampas do político superstar me fez pensar que talvez a direita sectária tenha arranjado um Che Guevara (ou, vá lá, um Lula) pra chamar de seu. Jovens ostentando alegremente o amarelo de suas ideologias, grandalhões com placas PVC de Senta a Pua (o famoso grito de guerra de combatentes brasileiros na Segunda Guerra Mundial), um velho orgulhoso de vestir a camiseta com a Gadsden Flag na altura do peito – uma cascavel em riste voltada à esquerda, símbolo da bravura militar americana.

Dez e tanto, e a ensandecida entourage se direcionava para esperar a chegada do Bolsonaro na rua, pois desembarcaria no portão externo. Da organização, alguém disse que poderiam falar com ele, abraçá-lo, mas sem viadagem.

Risadas coletivas. Uma senhora gritou que queria beijar aquele homem maravilhoso. Em êxtase, aquelas duzentas e tantas pessoas gritavam “mito! mito!” do lado de fora.
3. À espera do messias

A multidão à espera de Bolsonaro era feita de três-quartos êxtase e um-quarto de ansiedade.

Coros comuns e repetíveis, que iam de “Bolsonaro-Guerreiro-Orgulho-Brasileiro” a “Lula-ladrão-teu-lugar-é-na-prisão” eram mais do que um gesto de pertencimento. Era a prova freudiana de que o ser humano não é só um animal coletivo, mas um animal que precisa de liderança. Um líder que satisfaça o desejo de ser guiado, de dar sentido ao caos do mundo – e que afaste o medo da morte.
Ao se submeter a um líder, é como se magicamente você ganhasse os atributos que enxerga nele.

A isso é chamado de transferência, e quando é atendido, a sensação de poder, de sentido, de certeza é imensa. E desaparecem as ilusões, as ideias de que não podemos garantir nada, de que somos frágeis, de que talvez tudo o que façamos seja inútil frente à forças que não temos chance alguma de controlar. Ao se submeter a um líder, é como se magicamente você ganhasse os atributos que enxerga nele.

Medo e euforia, claro, não são exclusivos dos seguidores do político superstar, mas inerentes ao animal humano. E sabe qual a principal razão das massas serem perigosas? É que, nela, todos se afirmam coletivamente. Nada de ruim acontecerá consigo, quando em grupo – com os outros, talvez.

Pedi licença a um sujeito, um gordinho trintão de preto que se debruçava no muro, esperançoso de ver o desembarque do mito. Ao fundo, os coros continuavam. Cedeu espaço, e por algum tempo, nada do político. Quando agradeci e desci do muro, o sujeito gritou:

“Aqui, até a mídia é de Direita!”

Sem querem protagonizar debates profundos com meus observados, recorri ao manualzinho do jornalista padrão:

“Ei,” e fiz cara de indignado, “cê tá ciente que a imprensa tem que ser imparcial, né?”

“Caramba, velho,” e me respondeu sem graça, baixinho. “Desculpa. Eu me empolguei.”

Tentei negociar com a organização por um mínimo de espaço antes que aquele messias tempesteasse o mar de quase 300 pessoas que lhe aguardava. Talvez o corredor pudesse ser aberto, alguns minutinhos, só pra imprensa conseguir algumas fotos?

Não. Quando o fenômeno passou pelo portão, uma multidão de pessoas se acavalou. Eu e a câmera, dois náufragos no oceano de braços e celulares, diante do sessentão militarista, aclamado por eles como o futuro presidente do Brasil. Tanto faz se pelo PR, PRB, DEM, PSC ou PHS.

Cinco minutos depois, subiria a uma caminhonete com microfone para discursar. Foi recebido aos gritos de “mito”, “mas o que que é isso”, “dá que eu te dou outra”, dentre outras banalizações do mal – todas satisfazendo desejos difíceis de realizar sem punição.

Não nos deixaram subir para tirar fotos de seu ponto de vista superstar. Tivemos de ficar junto aos seguidores.

As vozes só cessaram com o hino nacional, cantado até a primeira metade.
4. O rei fala tudo e abranda logo depois
As primeiras palavras do candidato para seus seguidores foram para fazer piada com gaúcho. Em seguida, afirmou depressa que era brincadeira. E logo mandou chamar o “negão” – Linston Souza, da organização – ao seu lado.

“Tá vendo esse cara aqui? Conheci esse cara agora, na descida do avião. Falei com ele e disse: ‘porra, no meu tempo de solteiro as loirona que eu queria não tavam nem aí pra mim. Naquele tempo, as loiras queriam tudo saber é do negão aqui, porra.‘”


Hoje em dia a gente vive numa sociedade em que não se pode mais nem brincar um com o outro.”

E recebeu a primeira salva de palmas e urros.

“Isso aqui é uma brincadeira entre nós, claro. Hoje em dia a gente vive numa sociedade em que não se pode mais nem brincar um com o outro.”

Linston, no fim do dia, disse que considera Jair uma grande figura e nem um pouco preconceituoso. Ele mesmo é contra as cotas raciais, fez parte do movimento negro e considera a medida racista. “As cotas deveriam ser de classe, não de raça.”

Mas Jair Bolsonaro não é racista. Não se a sua concepção de racismo, claro, for algo entre “os negros são uma raça inferior” e “a escravidão não deveria ser abolida”.

Jacques Mick, doutor e professor do departamento de sociologia e ciência política da Universidade Federal de Santa Catarina, disse, em entrevista à reportagem, que a razão para existir um fenômeno Bolsonaro é a grande transformação social por que o Brasil passou nos últimos 30 anos.

O primeiro elemento dessa transformação, segundo Mick, seria o maior acesso à educação – ocorrida em especial no período lulista, embora já iniciada por Fernando Henrique – , o que, num país que sempre foi “uma nação de ignorantes”, significa muito. O próximo é o fortalecimento do movimento feminista, muito beneficiado pela intensa conexão em rede. Por fim, o sistema de cotas e outros incentivos foram essenciais para que os negros começassem a assumir espaços aos quais antes não pertencia. Lugares banais, como um avião, exemplificou o professor.

Essa junção de elementos, ou seja, o maior acesso à educação, o maior destaque dos negros, das mulheres, dos pobres, dos LGBTTI – as principais vítimas do preconceito – e a perda de hegemonia da esquerda nas últimas eleições fizeram com que a direita saísse do armário. Como disse Mick, num espaço em que nunca houve um negro, “o racista nunca teve que se manifestar”. Ou seja, a direita estava “escondida”, envergonhada por ter entregado um país em condições horríveis após o período ditatorial. Mas o avanço social desses grupos fez com que o segregacionismo se evidenciasse numa sociedade que sempre foi conservadora.

No momento da visita de Bolsonaro a Florianópolis, a gravação-bomba de Joesley Batista no Palácio do Jaburu ocupava o centro do noticiário e colocou o governo em suspenso. Foi a deixa pra Bolsonaro largar mais uma de suas piadas-bordão: “se continuar desse jeito, vou acabar sendo presidente por W.O.. ”

Não era a primeira vez que ouvia aquilo – alguém de sua legião já havia dito antes. Também afirmou que queria um país em que vagabundo não se criasse, porque não se negocia com patrão e reivindica direitos com “porfavor” e “comlicença”. E que chefe nenhum abusaria de empregado se o cidadão tivesse direito a arma.

O que talvez não fosse útil, já que a arma do meu patrão com certeza estaria alguns calibres à frente da minha.

A arma, segundo o Mito – e Carlos “Mitinho” Bolsonaro apenas reforçou – era mais do que o direito da autodefesa. Era, acima de tudo, o direito da liberdade individual. E essas e tantas outras mudanças viriam pela frente, “era melhor Jair se acostumando.”
5. Se os militares fechassem o Congresso, Bolsonaro ficaria dentro ou fora?

O momento político em que Florianópolis recebeu Bolsonaro não poderia ser mais instável para o Brasil. Na noite anterior, o jornal “O Globo” revelou que áudios gravados por Joesley Batista, dono da JBS, mostravam o Presidente da República, Michel Temer, dando aval para a compra de silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha, preso desde outubro de 2016. Essa informação faz parte da delação do empresário – a mesma que revelou que o senador Aécio Neves havia pedido R$ 2 milhões para pagar a sua defesa na Lava-Jato. A entrega desse dinheiro ao agora ex-presidente do PSDB foi filmada pela Polícia Federal.

Isso, pode-se dizer, nada tem a ver com o político superstar, porém, a semana também não estava sendo fácil para ele. Na segunda-feira, dia 15 de maio, a Folha de S. Paulo publicou uma reportagem mostrando que o deputado admitiu, em 1987, ter cometido atos de indisciplina e deslealdade no Exército. Foi considerado culpado por um conselho de justificação composto por três coronéis, mas absolvido em seguida pelo Superior Tribunal Militar. Quando procurado pelo jornal, na sexta-feira anterior à publicação, a assessoria do deputado disse que “a pauta é uma merda” e questionou “quem estava pagando”.

Em 16 de maio, foi publicado que superiores de Bolsonaro no Exército o julgavam possuidor de uma “excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente.” O político respondeu por telefone: “Publica essa porra de novo sem falar comigo. Eu só falo com vocês gravando”.

A Folha aceitou o convite – ou ameaça – e enviou dois repórteres para uma entrevista, que durou aproximadamente uma hora. No vídeo, vê-se o deputado contra a parede, agressivo na postura, defensivo nas respostas. Não poupou nem os leitores: referiu-se ao público do jornal como “tudo fake news”. Ao final da entrevista, fez uma live no Facebook acompanhado de seu filho, Eduardo Bolsonaro – que contribuiu traduzindo “independência ou morte” para o inglês –, e ainda chamou o Jornal do Brasil de “jornaleco que fechou.” A transmissão teve 4 milhões e 200 mil curtidas.

Os atos de indisciplina aos quais o jornal se referiu envolvem um artigo em que escreveu para a revista Veja, chamado “O salário está baixo”, e a sua liderança num protesto contra o valor do soldo dos militares. Na época, Bolsonaro era capitão no 8º Grupo de Artilharia de Campanha e estava no Exército havia 12 anos, quando entrou na Academia Militar das Agulhas Negras.

O feito ajudou-o a se tornar conhecido e a ser eleito, em 1988, como vereador no Rio e, dois anos depois, deputado federal pelo Partido Democrata Cristão (PDC). Desde então, Bolsonaro passou por mais seis partidos e foi reeleito também mais seis vezes para o cargo, sempre vagando entre o baixo clero e breves relances de ascensão midiática baseados, invariavelmente, em declarações ultrajantes a ouvidos progressistas (embora, por muito tempo, tenha integrado os quadros do Partido Progressista…).

Se hoje seus clamores pela volta da Ditadura ou os elogios a Brilhante Ustra são o que, de certa forma, o impulsionam rumo à corrida presidencial, nos anos 1990 isso quase colocou em risco a sua carreira política. Em 1993, posicionou-se, na Câmara dos Deputados, a favor da Ditadura, crente que a irresponsável democracia não seria capaz de resolver problemas sérios da nação. O fechamento do Congresso acabaria com a corrupção e com a inflação. “Democracia de verdade é comida na mesa, a capacidade de planejar sua vida, a capacidade de caminhar na rua sem ser assaltado”, disse o deputado para o The New York Times à época.

Impressionado, o então presidente da Câmara, Inocêncio de Oliveira, até tentou cassar o mandato de Bolsonaro. Porém, os Bolsosmurfs enviaram cartas a vários jornais posicionando-se a favor do que o deputado havia dito, fazendo com que Inocêncio mudasse de ideia. Quem explica é Shawn C. Smallman. Como conta no livro “Fear & Memory in the Brazilian Army and Society, 1889-1954” (Medo e Memória no Exército e Sociedade Brasileiros, em tradução livre): “Os brasileiros de classe média escreveram cartas aos jornais brasileiros, enquanto os moradores de favelas publicaram banners dizendo ‘Forças Armadas, assumam’. O discurso de Bolsonaro certamente não representava os pontos de vista da maioria das autoridades brasileiras. Mas a resposta civil a seu discurso mostrou que o Exército ainda tinha alguma legitimidade.”

Bolsonaro ainda cometeria o mesmo “erro” em 1999. Em entrevista a um programa da Band, disse que a ditadura militar “matou foi pouco” e que deveria ter fuzilado 30 mil corruptos, ‘‘a começar pelo presidente Fernando Henrique Cardoso’’. O então Presidente do Congresso, o nada-famoso Antônio Carlos Magalhães, chegou a dizer: “Se ele prega isso [fechamento do Congresso], deveriam cassar o mandato dele. Não vi a entrevista e não tenho que tomar conhecimento das loucuras de alguém que, evidentemente, está perdendo o senso e o juízo”.
Bolsonaro não estava, porém, perdendo a popularidade. Vários jornais receberam cartas de apoio ao que disse. E apesar do próprio FHC pedir que o deputado fosse punido, escapar foi fácil. O político superstar só teve de mandar uma carta de desculpas para o então presidente da Câmara à época, um político chamado Michel Temer.

Os anos 2000 não foram tão turbulentos para a estabilidade de Bolsonaro em seu cargo, mas, em entrevista ao Programa do Jô, resumiria a sua forma de propaganda: “Se eu não peço o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso, ele [Jô] jamais estaria me entrevistando agora”.

De polêmica em polêmica, o político enchia a própria bola. Cada vez mais visível, seus gritos militares e intolerantes começaram a ganhar eco nos anônimos silenciosos em tempos de internet – que encontraram nele um herói para chamar de seu – e reverberar virtualmente. Seja dizendo que: se pegasse filho fumando maconha, o torturaria; parlamentar não deve andar de ônibus, mulher deve ganhar salário menor porque engravida ou que nenhum pai tem orgulho de ter um filho gay. Assim, o político superstar começa a ver sinais de um público a atender. E que podia ouvir os gritos em Florianópolis.

Também virou celebridade. Deu entrevista à Playboy, apareceu na televisão e participou de game-show. Em 2014, foi o deputado federal mais votado no Rio de Janeiro, com 464 mil votos.

Essa popularidade e os quase 30 anos na política, no entanto, não garantem a ele relevância nos esquemas de poder em Brasília. Pouco consultado pelos colegas parlamentares, teve apenas quatro votos quando se candidatou a presidente da Câmara e não conquistou liderança pelos partidos em que passou. Logo, deve deixar o PSC, e entre os possíveis novos partidos já foram apontados o PR, PRB, DEM e PHS.

Para seu eleitorado, claro, isso não importa. Num esforço de revisionismo e boa vontade, serve até como prova mais de que não é “farinha do mesmo saco”.
6. Não era herói (mas era tipo isso)

“Bolsonaro”, interrompeu o garoto, invisível na multidão, “sem viadagem cara, mas tu é muito mais bonito pessoalmente, puta que pariu.”

O nome do garoto era William, tinha dezoito anos, era aluno de terceirão do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). Foi recebido como herói entre os amigos pelo seu gesto.

Todos riram. O deputado protestou, jocoso, preferindo que fosse uma mulher, “mas eu não tenho problema nenhum com o que cada um faz da sua vida.” Depois mandou o garoto subir com ele. Hastearam juntos uma bandeira do Brasil.

Naquele momento, William era o único que havia se destacado da multidão, trocado palavras, abraços e sido alvo da atenção especial do político superstar. Seus amigos estavam admirados. Para um jovem que é o único de sua turma que contesta o “discurso homogêneo de esquerda” difundido numa organização pública – e se sente oprimido com as tréplicas –, é capaz de estar sonhando com esse dia até hoje.

Quando perguntei a ele se considerava Bolsonaro um herói, respondeu que “não exatamente, mas era tipo isso.”

Pensei nisso por um bom tempo durante o trajeto até o centro. Procurei por um restaurante em que pudesse assistir aos cinco minutos de entrevista do presidenciável no jornal local do meio-dia, no qual o comentarista da afiliada da Globo o atacaria violentamente com perguntas não tão agressivas assim.

Quatro mesas adiante, um casal de meninas almoçava junto. Trocavam palavras e beijos antes da refeição.

As respostas de Bolsonaro iam equilibradas até o momento em que o entrevistador perguntou sobre “o que não era tolerável, na opinião do deputado, em relação às questões LGBT.”

“Olha, que façam o movimento que bem entenderem. O que eu não tolero, não posso admitir, é que esse tipo de informação chegue pra criancinhas a partir de seis anos de idade na escola. Não podemos admitir esses ativismos [sic] gay a partir dessa… tão pequena idade em sala de aula.”

O casal à minha frente não deu a mínima para ele.

7. A sarrada voadora que erradica o Mal

Antes da palestra, um velhinho tentava, timidamente e por conta própria, arrecadar assinaturas para a fundação de um Partido Militar. Vendia seu peixe dizendo que, com essa fundação, Jair Bolsonaro seria o ícone e o candidato à presidência do novo partido.

Enquanto esperava lá fora, um sujeito trintão, de terno, gravata e credencial de imprensa veio falar comigo no saguão do hotel cinco estrelas onde Bolsonaro palestraria. Contou-me que tinha um sitezinho para cobrir festas e descolara aquelas credenciais só pra estar mais perto do político na coletiva de imprensa.

“Eu me identifico muito com ele, sabe? Em ideias, jeito, personalidade, pensamento… Mas eu não entendo essa da esquerda, de querer fazer baderna, fazer protesto. Por que tem que fazer bagunça?”

Ia dizer que não sabia, mas olhei para o lado e entendi as razões do assunto. Alguns sujeitos, uns trinta, no máximo, todos vestidos de preto, organizavam-se na rua. Um ato contra o deputado havia sido marcado para o momento de sua entrada no hotel. Quando cheguei, não havia ninguém.

Corri até a rua. A fila para os que queriam entrar para a palestra chegava a dobrar no quarteirão. A Polícia Militar logo formou um cordão de nove policiais equipados com cassetetes. Diante deles, cartazes, músicas de protestos e gritos no megafone. Contrários a elas, uma massa de jovens de uniformes de escolas particulares, furiosos senhores nostálgicos e casais white-trash com a camiseta de seu político favorito.

Os manifestantes gritavam os discursos problemáticos do Bolsonaro que incitavam a violência. Os seguidores do político replicavam com os mesmos cantos do momento do aeroporto, num adicional de “vai comprar gilete”. Um adolescente negro batia no peito e no braço, agressivamente, bradando um eu sou Bolsonaro, eu sou brasileiro! Alguns musculosos, com penteados tão trabalhados quanto o corpo, faziam contagem regressiva para darem sarradas no ar e, depois, cumprimentos.

A chuva caía e obrigava os manifestantes a chegarem perto. A tensão era a mesma de um punhado de piranhas num balde d’água.

Durante a palestra, a dispersão dos manifestantes veio num estrondo só, numa bomba de efeito moral. Bolsonaro e os demais acharam graça.

8. O que o deputado tinha a dizer

Eu já tinha visto aquela cena antes, algumas horas atrás. Com a diferença do número de pessoas (umas 600 lotando o pequeno auditório), todo o mais era igual. Foi recebido com a cantilena aplausos, uivos e gritos de mito. As considerações do seu filho, as piadas com Linston, o hino cantado até a primeira metade – se esticássemos a mão, ainda daria pra sentir o calor da receita pronta, aquecida quatro horas atrás.

A diferença dessa vez foi quem quebrou o silêncio antes do discurso. Tayoana Schuller, diante do político superstar, gritava freneticamente.

“Dá que eu te dou outra! Dá que eu te dou outra!” – uma referência a um arroubo de coragem, e clássico instantâneo do Bolsonaro way of life, quando o deputado respondeu a uma ameaça de bofetada da colega Maria do Rosário (PT-RS), que, segundo antes, havia recebido a seguinte gentileza do mito: “Jamais ia estuprar você porque você não merece”.

Bolsonaro, em Floripa, foi comedido o suficiente para, até onde eu acompanhei, em nenhum momento repetir referências ao incidente com Maria do Rosário. Sua seguidora, não.
“Dá que eu te dou outra! Dá que eu te dou outra!”

Enfim, sobre o quê ele falou?

Pode ser resumido em um parágrafo. Que o Brasil deveria ganhar dinheiro com as próprias terras, igual aos índios dos Estados Unidos que têm seus próprios cassinos. Que era um absurdo um livro com um buraco no meio para que se enfiasse o dedo e demonstrasse, a uma criança, como ocorre a penetração – e como a máfia do MEC faria de tudo para aquilo passar. Que nunca cogitou lançar candidatura com Aécio. E como a “Folha”, a mídia e tudo mais eram demônios por distorcer o que ele disse. Por muitas vezes falou que, no seu governo, levaria o país pra frente.

Mas Jair Bolsonaro não é candidato a presidente. Se fosse, aquilo seria campanha. E, se fosse campanha, estaria fora de época. Se fora de época, seria passível de punição por descumprir o Artigo 36 da Lei n.º 9.504/97, revisto em 2015. Da Propaganda Eleitoral em Geral: “A propaganda eleitoral somente é permitida após o dia 15 de agosto do ano da eleição.”

Bolsonaro veio para dizer que não era candidato à presidência, mas também para dizer tudo o que faria se fosse.
9. O destino do ídolo é o mesmo que o nosso

Em outras palavras, o antropólogo norte-americano Ernest Becker diz: o líder não é tão foda assim quanto parece. E isso precisa ser esclarecido.

Ele tem seu efeito na multidão, mas de maneira sugestiva. Não num sentido hipnótico, mas sim num condescendente. Diante de um coletivo, ele é a figura que estabelece até onde se pode ir, o que pode ser feito – e isso normalmente vai além do que os sujeitos se permitem.

As pessoas não atirariam tijolos em alguém só porque Bolsonaro mandou; mas se ele fosse o primeiro a jogar, seriam necessários vários dias para juntar o total dos cacos. As pessoas se utilizam da figura do líder para se dar a liberdade de agir. E o líder, sem a massa, não se sente seguro para quebrar seus limites pessoais.

Bolsonaro é muito limitado como político. Começa pelo fato de que ele representa apenas uma parte específica e conservadora da direita. Claro, ele cresce nas pesquisas, motivado pela crise política e pelo grande descontentamento do eleitorado com os candidatos tradicionais. Mas Jacques Mick não acredita que aguente o processo eleitoral.

Primeiro porque ele é tal qual Celso Russomano, que liderou as pesquisas para a prefeitura de São Paulo durante quase todo o períodos das eleições, mas perdeu no primeiro turno para João Dória. Segundo, porque o processo eleitoral é cruel e capaz de trucidar quem tem passado duvidoso, quem não consegue pagar a alta conta e não possui uma forte estrutura partidária (como é o caso do PSC de Bolsonaro).

“Num embate entre Bolsonaro, Lula e Dória, você tem dúvida de que o Bolsonaro vai ser destruído?”

A exceção talvez seja Fernando Collor, que conseguiu se eleger apesar de não ser muito influente ou estar em um grande partido (era membro do PRN). O seu trunfo, ao contrário de Bolsonaro, estava em ter o sistema ao seu lado e, em especial, pelo destaque dado pela Rede Globo, aponta Mick.

A sociedade se mobiliza para punir casos de racismo como nunca antes. Flagrar alguém na torcida chamando um jogador de “macaco”, algo que talvez ainda(!) seja apenas uma brincadeira para alguém, para a maior parte da sociedade, motivo de revolta nacional. Este é um período em que as novelas e outros programas abrem espaço para minorias e apresentam relacionamentos homoafetivos em suas tramas – propaganda gayzista, diriam alguns mais revoltosos contrários.

Se os grandes tubarões da mídia, de fato, decidirem escolher um candidato nas próximas eleições, quais as chances de ser um político superstar cuja fama é de cair matando contra o ativismo gay?

Como a política está cada vez mais surpreendente a cada dia que passa, descartar qualquer candidato é arriscado. Até porque a esquerda à esquerda de Lula, por exemplo, ainda não achou o seu principal candidato – e pode enfrentar a sua mais difícil eleição na história recente. Mick, no entanto, opina de forma clara: “Num embate entre Bolsonaro, Lula e Dória, você tem dúvida de que o Bolsonaro vai ser destruído?”

Mas a fragilidade do político – política também, mas sobretudo a humana – não é vista pela multidão. Conforme Becker: por debaixo da figura do líder, além do cumprimento de seu papel, ainda existe, em essência, um ser humano. Um ser que treme diante do peso do mundo, que busca proteção e maneiras fáceis de afirmar sua ilusão de poder numa realidade.

A única chance de perceber isso diante de Bolsonaro foi durante sua coletiva de imprensa. Em determinado momento, disse que não saía mais para jantar, para churrasco ou pizzaria com sua família porque tinha medo de que algo acontecesse.

O mesmo sujeito que tinha medo da violência era o cara que, na pergunta seguinte, dizia que questões dos direitos humanos eram meros gastos da máquina estatal.

Algo não fazia sentido.

Em “A Negação da Morte”, Ernest Becker diz que o medo de morrer é a maior angústia na vida do ser humano. A consequência disso é a busca por negar essa consequência inevitável, negar que, no fundo, apesar de nosso maior entendimento, a vida humana é tão insignificante quanto a de qualquer outro animal. Para provar que temos significância no mundo, buscamos e esforçamo-nos pelo heroísmo.

Com isso em mente, no fim da coletiva, quando Jair Bolsonaro dirigiru-se ao elevador para ser recebido em sua palestra, corri para alcançá-lo. Tínhamos dois andares e uma única pergunta a ser respondida.

“Fala, cabeludo,” disse, suspirando. “Qual é a sua pergunta?”

“Eu vejo que você fala bastante contra essas questões dos direitos humanos. Minha pergunta é: por um acaso você tem medo da morte?”

Deu de ombros. Num riso sem graça, antes de sair pela porta que abria, em direção à palestra cujo discurso seria a repetição do mesmo dito de manhã, no aeroporto, respondeu:

“Não. A morte é a única certeza que eu tenho.”

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