quarta-feira, 18 de março de 2020

Algo perverso na comunicação presidencial

Por Fernanda R. Rosa, no site Outras Palavras:

“Olá prezados integrantes de grupos de WhatsApp e Telegram de todo o Brasil. Jair Bolsonaro. Eu quero cumprimentá-los pela maneira como vocês fazem política. Pela consciência patriótica que vocês têm de que o futuro está em nossas mãos. E a verdade para nós acima de tudo, tá ok? Estamos juntos pessoal. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos.” - (Jair Bolsonaro em campanha para presidente, 23 de agosto de 2018).

Em meio a uma pandemia mundial causada pelo novo coronavírus, que levou a Organização Mundial da Saúde a recomendar distanciamento social à população a fim de mitigar a propagação da doença via aglomerações, o presidente Jair Bolsonaro chamou a população às ruas para uma manifestação em seu apoio dia 15 de março de 2020. Apesar do número limitado de pessoas, jornais sugerem que idosos, o grupo de risco considerado mais vulnerável à doença, atenderam ao chamado em sua maior parte. A convocação foi feita via redes sociais, e incluiu um vídeo [1] compartilhado via a conta de WhatsApp de Bolsonaro identificada pelo brasão da República, a correligionários, com ataques ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal, conforme noticiado quase como furo jornalístico. 

Apesar de o presidente ter levantado escusas sugerindo que o vídeo era de 2015 - o que foi facilmente desmentido pelas imagens que remetem à sua campanha em 2018 - e ter tentado minimizar sua comunicação via WhatsApp dizendo possuir “algumas dezenas de amigos onde [troca] mensagens de cunho pessoal”, o caso traz à baila não somente os crimes de responsabilidade que estaria cometendo, mas as características de sua comunicação como pessoa pública em tempos de plataformas digitais, e mais especificamente, a comunicação do Planalto em tempos de grupos de WhatsApp.

Jair Bolsonaro foi eleito em uma campanha marcada por fluxos de informação ainda nebulosos para pesquisadores(as) de internet. Entre denúncias de uso de caixa 2 para envio de mensagens em massa via grupos de WhatsApp e Telegram, e uso ilegal de dados pessoais para registro de chips que enviariam tais mensagens [2], o que emerge é a tendência de políticos(as) criarem canais diretos com eleitores(as) mediados(as) apenas por aparelhos celulares, agências especializadas em disparar conteúdo, e serviços de mensagem ponto-a-ponto altamente populares no Brasil com a função de grupos de até 256 pessoas (WhatsApp) ou 100.000 pessoas (Telegram) disponível.

Em um dos exemplos mais representativos da campanha Bolsonaro em 2018, o então candidato enviou um vídeo aos(às) eleitores(as) exibindo a tela de seu celular onde diversas mensagens eram escritas remota e freneticamente em múltiplos grupos de WhatsApp. Sorrindo satisfeito, ele indicava que “daqui a pouquinho,” depois do café, responderia a todas as mensagens (Vídeo, agora editado com legendas pela oposição, pode ser visto aqui). Bolsonaro, então candidato, criava ali uma proximidade antes inimaginável com anônimos(as) e potenciais eleitores(as) que o assistiam na tela do seu celular, incitando o desejo de quem o via de estar na tela daquele dispositivo na mão de um possível presidente, numa cena de realismo fantástico. 

O vídeo, de pouco mais de 20 segundos, implode a exclusividade e o papel de espaços regulados pelo Tribunal Superior Eleitoral como arenas de comunicação e propaganda de grande alcance de candidatos(as). A nova arena eleitoral na palma da mão de Bolsonaro é regulada pelos termos de uso de uma empresa, no caso, de um grande conglomerado chamado Facebook, dono do WhastApp. Faz muito sentido que o candidato agradeça aos participantes dos grupos “pela maneira como vocês fazem política”. Existem regras diferentes em ação.

Sabemos que estratégias enfocadas na estratificação de eleitores(as) para envio de mensagens de marketing direcionadas são práticas padrão de campanhas desde muito tempo, porém, comparando as eleições passadas e um estudo que fiz da eleição à prefeitura de São Paulo em 2008, fica clara uma diferença fundamental: as mensagens visuais de maior alcance que as campanhas podiam disseminar eram em formatos de programas de TV. Revisitando as eleições de 2008 com o olhar das eleições de 2018, aquelas se baseavam majoritariamente na comunicação pública, via TV aberta: horários eleitorais gratuitos, programas de entrevistas e debates eram as formas comuns de candidatos levarem suas mensagens à maioria da população. Nas eleições de 2018, no entanto, a comunicação privativa ganhou lugar, direcionada a alcançar os(as) mais de 120 milhões de usuários(as) do WhastApp no país, segundo informações de 2018.

Enquanto esse fenômeno eleitoral recente deverá dominar a agenda de pesquisa de diversas áreas nos próximos anos - como os estudos de comunicação em massa o fizeram com o advento da TV nos anos 1950 -, estamos em tempo de deslocar a atenção para os efeitos desse fenômeno no período entre eleições, ou seja, no exercício do cargo, num cenário em que o presidente e os responsáveis pela sua comunicação podem ter à disposição um sem número de grupos de WhatsApp e Telegram e números de celular de cidadã(o)s brasileiros(as). Como se poderia imaginar, mais de um ano após as eleições, as contas utilizadas para propagar conteúdo do então candidato continuam ativas, servidas por robôs capazes de enviar 14 mensagens num intervalo de 30 segundos. Mas isso não é tudo. Como visto, o próprio presidente também utiliza sua conta pessoal para postar conteúdos que podem incidir em crime de responsabilidade devido ao cargo que exerce. E ele o faz usando o brasão da república como avatar, conforme noticiado. O quadro é preocupante quando analisado do ponto de vista da comunicação pública: não sabemos quantos grupos existem, em que condições foram formados, como são utilizados e quais mensagens são circuladas nesses espaços.

Ao abordar aqui a comunicação de pessoas públicas, e de um chefe de estado, a finalidade é enfatizar a necessidade de criar mecanismos institucionais para impedir abusos e cenários comparáveis a regimes autoritários. Como evitar que a possível virtualização de um presidente e o exercício de sua liberdade de expressão gerem a desvirtuação de valores democráticos? Num contexto em que parte de suas mensagens poderão estar fora do escrutínio público amplo e da esfera pública tradicional, o uso de grupos privativos de mensagem limita as condições materiais de entes da sociedade exercerem seu papel crítico e de acesso à informação como direito. Tais grupos de mensagens, vale salientar, tendem a se formar com pessoas com perspectivas políticas comuns, e soluções como criar e incluir outros grupos apenas aumentam a capacidade de estratificação e vigilância dos membros.

Esse cenário, onde uma pessoa pública se utiliza de meios de comunicação privativa, é ainda mais grave num contexto de discursos inflamados, extremistas, e que disseminam preconceito contra certos grupos da população. O atual presidente teve sua campanha marcada por esse tipo de discurso contra negros(as), mulheres, grupos LGBTQ+ e populações indígenas. Como fazer com que os direitos humanos não se convertam em assunto plebiscitário de plataformas de mensagem, onde valores constitucionais deem espaço a sentimentos conservadores e retrógrados incitados por um presidente e seus(suas) assessores(as)? E como fazer com que a laicidade do Estado não definhe ainda mais num ambiente de comunicação presidencial inacessível ao grande público?

O que dizer do fato de que, na contramão da sensatez, um chefe de Estado como Bolsonaro estimule opiniões que enfraquecem poderes responsáveis por pesos e contrapesos na democracia representativa utilizando dinheiro público e comunicação privativa, para com isso tentar mostrar apoio popular e ter mais facilidade de passar medidas com aparência democrática? O vídeo utilizado para chamar as pessoas às ruas em meio à crise do coronavírus, que associa Bolsonaro a um mártir que “quase morreu por nós” opondo-o a outros poderes é um exemplo da busca clara de desinformar e dos riscos acarretados à democracia no Brasil. Não sabemos quem gerou tal mensagem, o ponto aqui é problematizar a personalidade maior do Planalto por se utilizar dessas narrativas, seguindo a linha que o candidato testou em campanha.

A cientista política alemã Jeanette Hofmann defende que tecnologia e democracia são resultado de uma coprodução entre si (Mediated Democracy, 2019), em que as tecnologias influenciam a democracia assim como a política também delineia as tecnologias. Eu concordo, e indo além do foco da autora nas estratégias de movimentos sociais e partidos de esquerda em plataformas digitais, no contexto brasileiro atual, devemos atentar para as estratégias de comunicação não apenas de partidos ou coletivos, mas de uma única pessoa de posse do maior cargo político do país que cancelou sua afiliação partidária onze meses após ter sido eleito e está em busca de formar seu próprio partido. É fundamental lançar luz sobre a materialidade das plataformas de comunicação, incluindo seu design e governança, para entender a participação que possuem no fenômeno político em curso e como elas também são resultados dele, para assim, regulá-las de acordo.

No Brasil, há uma história bastante particular de líderes populistas os quais, a despeito de suas diferenças, buscaram responder a insatisfações gerais, e se basearam em voto popular e “manipulação” das aspirações da população, conforme nos mostra Francisco Weffort em sua análise das décadas de 1930-1960. Se por um lado, não podemos des-historializar o conceito de populismo, também é necessário repensar o populismo como coprodução, uma vez que hoje a população tem participação sem precedentes na construção das narrativas que circulam nas redes sociais. De fato, os(as) usuários(as) dessas plataformas não apenas repassam informações aos seus contatos, mas por vezes também fazem releituras, alteram e ressignificam as mensagens. Eles(as) as manipulam. Logo, é tempo de pensar na extensão do populismo possível nos dias atuais considerando que este é coproduzido por cidadã(o)s mediados(as) por plataformas digitais vigentes, especialmente grupos privativos de mensagens.

A comunicação do presidente é um tema urgente de interesse público e um sustentáculo à democracia. As tecnologias possuem governança privada, e um design que pode ser explorado oportunisticamente para ampliar o controle de narrativas por governos e atores privados sustentados por insatisfações populares e guiados por interesses não condizentes com valores democráticos. Grupos como os possibilitados pelo WhatsApp e Telegram têm características de comunicação privativa que não condizem com a premissa de comunicação pública requerida por qualquer chefe de Estado. Ademais, os termos e condições que Facebook/WhatsApp, Telegram e outras empresas estabelecem não podem substituir as regras democráticas e constitucionais que devem continuar regendo a sociedade. Pode um(a) presidente direcionar-se à população falando o que quiser, na hora que quiser via comunicação privativa sem atentar para a Constituição e para as condições de saúde pública que a colocam em risco? Vimos que pode. Deve? Precisamos coletivamente e institucionalmente garantir que não.

Notas

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