domingo, 31 de janeiro de 2010

Outra mídia é possível e urgente (12)

“Quando você abre a torneira e sai água suja, o que você faz? Reclama para o órgão responsável pela qualidade da água. E quando você liga a televisão ou o rádio e recebe conteúdos ‘sujos’, de má qualidade, o que pode ser feito? Praticamente nada”.
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.

“A luta pela democratização da mídia se insere em uma luta mais ampla, pela garantia ao direito humano à comunicação e, conseqüentemente, por uma sociedade justa e democrática, onde os direitos dos trabalhadores e de toda a população sejam respeitados”.
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.


A batalha pela democratização dos meios de comunicação não comporta ilusões e, muito menos, omissões. Diante do enorme poder da mídia hegemônica, que manipula informações e deforma comportamentos, a luta por mudanças profundas neste setor adquire um caráter estratégico. Não haverá avanços na democracia, na mobilização dos trabalhadores por seus direitos e na própria luta pela superação da barbárie capitalista, sem enfrentar e derrotar a ditadura midiática. Hoje, esta batalha comporta três desafios, que se inter-relacionam e se complementam.

O primeiro é o da denúncia da “imprensa burguesa”. Não há como democratizar os veículos sob o comando ditatorial dos Marinhos, Civitas, Frias e demais barões da mídia. Eles serão sempre aparelhos privados de hegemonia do capital. Qualquer ilusão neste campo seria desastrosa para as forças políticas e sociais de esquerda. O segundo desafio é o da construção e fortalecimento de veículos próprios das forças engajadas na luta pela superação de todas as formas de exploração e opressão. Sem construir instrumentos contra-hegemônicos de qualidade não será possível vencer a disputa de idéias, de projetos e de valores numa sociedade tão complexa como a brasileira.

Na contracorrente da lógica capitalista

Estes dois desafios não negam, porém, a urgência de um terceiro: o da luta pela democratização dos meios de comunicação. Na contracorrente da lógica capitalista, é possível erguer barreiras ao poder da mídia burguesa e construir políticas públicas que incentivem a diversidade e pluralidade informativas e culturais, conforme apontam recentes avanços na América Latina. Neste sentido, a Conferência Nacional de Comunicação, antiga demanda dos movimentos sociais, pode ser uma alavanca. Além de envolver amplos setores da sociedade neste debate, num processo pedagógico sem precedentes na história, ela pode propor medidas concretas que coíbam a ditadura midiática.

Várias entidades progressistas estão inseridas nesta luta. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), criado em 1991, nasceu das mobilizações por avanços na Constituição de 1988 e agrega várias entidades [1]. O Coletivo Intervozes, fundado em 2003, reúne militantes voluntários com reconhecida capacidade de elaboração. Já o Fórum de Mídia Livre, lançado em março de 2008, articula jornalistas, acadêmicos e veículos progressistas. A Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) e a Federação de Trabalhadores em Empresas de Rádio e Televisão (Fitert) não limitam sua atuação à defesa dos interesses corporativos. Destacam-se, ainda, a Associação Brasileira das Rádios Comunitárias (Abraço) e a Associação Mundial das Rádios Comunitárias (Amarc), entre outras organizações que priorizam a luta pela democratização da comunicação.

Os partidos de esquerda também estão se dando conta da importância desta frente de atuação. O PT, que sempre contou com renomados intelectuais da área, realizou em 2008 sua 1ª Conferência Nacional de Comunicação e apontou os caminhos para uma mídia democrática [2]. Já o PCdoB aprovou, em novembro de 2007, resolução específica com propostas concretas para o setor [3]. “A luta pela democratização da mídia faz parte da jornada pela ampliação da democracia como forma de alavancar a própria luta pela emancipação dos trabalhadores”, explica Renato Rabelo, presidente do PCdoB. No caso do PSB, vale citar a corajosa ação da deputada Luiza Erundina; já no PSOL, o deputado Ivan Valente se destaca por suas denúncias das manipulações midiáticas.

Há consenso entre estas forças políticas e sociais que não basta somente o diagnóstico sobre os efeitos nocivos da mídia hegemônica. Que ela não serve aos anseios dos trabalhadores, a história comprova de maneira cabal. Que ela é altamente concentrada e manipuladora, os fatos também evidenciam. Mais do que diagnosticar, é urgente avançar na formulação de propostas concretas que visem superar esta deformação na sociedade. Neste esforço, algumas proposições adquirem força catalisadora, capaz de unir amplos setores na luta pela democratização da comunicação. Na seqüência, apresento algumas delas, não como pacote fechado, mas como um roteiro de reflexão.

1- Fortalecer a radiodifusão pública

Como descrito no terceiro capítulo, a radiodifusão brasileira adotou o modelo privado made in EUA, diferentemente de várias nações nas quais a rede pública tem forte influência. O caso mais famoso é o da BBC de Londres, que se projetou na II Guerra Mundial, é gerida por um conselho autônomo e produz programas de qualidade [4]. Na França, quatro redes integram o seu sistema público. Na Alemanha, ARD e ZDF têm 14 emissoras locais e o seu conselho, com 77 membros, reúne partidos e movimentos sociais. Mesmo nos EUA, a PBS possui um conselho independente com 27 membros e congrega 354 retransmissoras. Já a APT, segunda maior rede pública do país, tem um orçamento de US$ 2 bilhões e retransmite a sua programação para 356 emissoras locais.

No Brasil, o modelo público nunca vingou. A única iniciativa mais ousada neste campo ocorreu no governo de Getúlio Vargas com a criação da Rádio Nacional, que teve expressiva audiência. O espectro eletromagnético, um bem público e finito, tornou-se um bem privado dos barões da mídia, autênticos “latifundiários do ar”. No caso da TV, o setor privado detém cerca de 80% das emissoras, 90% da audiência e 95% das receitas publicitárias. Principal veículo de comunicação de massas, sua influência na sociedade é arrasadora. Censo do Ibope de 2005 revelou que 93,1% dos domicílios no país tinham aparelhos de televisão, número superior aos lares com geladeiras. Apontou ainda que 81% dos brasileiros assistem TV diariamente, passando 3,9 horas diárias, em média, presos às telinhas.

Fruto do ascenso democrático, o artigo 223 da Constituição de 1988 fixou a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. Na prática, porém, nunca houve investimento nos setores não comerciais. Nos anos do neoliberalismo, ainda houve o desmanche do pouco que existia. Em 1995, com a aprovação da Lei da TV a Cabo, as redes privadas foram obrigadas a reservar cinco canais estaduais para o uso do Executivo, Legislativo, Judiciário, um canal comunitário e outro universitário. Mesmo assim, eles padecem da falta de recursos e foram excluídos da TV aberta. “O espaço conquistado está esvaziado, falido, pouco qualificado ou mesmo reproduzindo a lógica mercantil das grandes emissoras” [5].

Só após sofrer brutal bombardeio midiático na eleição de 2006, o presidente Lula decidiu investir na construção de uma rede pública nacional de televisão e rádio. A criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que gerencia a TV Brasil, oito emissoras de rádio e uma agência noticiosa, sinalizou uma mudança de postura do governo. Inaugurada em dezembro de 2007, a TV Brasil dá os primeiros passos na construção de uma emissora sem fins lucrativos. Seu conselho curador é presidido pelo economista Luiz Gonzaga Belluzzo; já sua ouvidoria, dirigida pelo jornalista Laurindo Lalo Leal Filho, é um mecanismo de fiscalização da sociedade. Ela também constrói a sua própria rede nacional, fortalecendo as estruturas de 95 emissoras estaduais.

Exatamente por seu papel democratizante, a EBC sofre o cerco dos donos da mídia e ainda corre riscos. Tudo é feito para limitar o seu alcance e asfixiar seu financiamento. Antes mesmo de ser lançada, ela foi alvo de intensa oposição. A Folha de S.Paulo, por exemplo, publicou uma série de artigos para desqualificá-la e seu editorial arrematou: “Lula e o PT querem deixar sua marca particular no telecoronelismo criando um canal do Executivo; a proposta é descabida” [6]. Os ataques visaram confundir os conceitos entre rede estatal e pública, e contaram com a descarada ajuda do ministro Hélio Costa, ex-funcionário da TV Globo e porta-voz dos radiodifusores [7].

A EBC é uma conquista das forças progressistas na luta contra a ditadura midiática. Ela deve ser fortalecida e aperfeiçoada. Isto não a exime dos problemas, que decorrem da sua própria origem conflituosa no interior do governo e de impasses no seu projeto editorial, entre outras lacunas. Os seus recursos são escassos, menos de 5% na comparação com a receita da Rede Globo, e a TV Brasil sequer é transmitida em canal aberto. Seu conselho curador, indicado pelo presidente Lula, não contempla a diversidade dos movimentos sociais. Estes e outros problemas comprometem a sua autonomia de gestão e de financiamento, marcas que distinguem a rede pública da estatal, e dificultam que ela tenha maior visibilidade na sociedade. Mudanças são necessários e urgentes.

As propostas unitárias apresentadas pelos movimentos sociais no 1º Fórum de TVs Públicas, em maio de 2007, continuam atuais: instalação de um “conselho representativo, plural e autônomo, com maioria da sociedade civil, como instância decisória”; “igualdade de participação e respeito à diversidade (regional, mulheres, negros) no seu conselho”; “fomento à produção independente, ampliando a presença desses conteúdos na sua grade de programação”; maior disponibilidade de “verbas do orçamento público no seu financiamento e proibição da publicidade comercial, mas garantido as produções compartilhadas, o apoio cultural e a publicidade institucional”; “que os canais públicos, que hoje são garantidos pela Lei do Cabo, estejam em sinal aberto”.

2- Revisar os critérios das concessões

Desde o início das transmissões de rádio, em 1922, e de televisão, nos anos 1950, o processo de concessão de outorgas às emissoras sempre foi influenciado pelo poder econômico dos donos da mídia e por suas relações promíscuas com o Estado. Concedidas sem qualquer critério objetivo, as outorgas beneficiaram os mesmos grupos empresariais, o que reforçou a propriedade cruzada e a concentração no setor. Nesta longa trajetória monopolista, as redes privadas desrespeitaram as tímidas legislações existentes. Na prática, os barões da mídia exercem uma autêntica ditadura midiática, ficando acima das leis, das normas constitucionais e do próprio Estado de Direito.

A Constituição de 1988, por exemplo, proíbe a formação dos monopólios, exige a produção de conteúdos regionais, obriga que as emissoras tenham finalidades educativas, culturais e artísticas e determina que elas expressem a diversidade de pensamento na sociedade. Como nunca foram regulamentados, estes princípios progressistas viraram letra morta. O atual processo de outorga e de renovação das concessões, com prazo de 15 anos para as TVs e de dez anos para as rádios, é uma verdadeira caixa-preta. A sociedade não exerce qualquer controle sobre este bem público. O Congresso Nacional, que a partir da Constituição de 1988 virou co-responsável pelas concessões e renovações, não cumpre seu papel, submetendo-se à pressão e chantagem dos barões da mídia.

Qualquer questionamento a estas distorções é tachado como “atentado à liberdade de imprensa” pela mídia hegemônica. Ela omite que vários países exercem o direito democrático, inclusive, de não renovar concessões que ferem sua legislação. Até os EUA, nação badalada pela mídia servil, controlam os seus meios de comunicação de massas. A Administração Federal de Comunicações (FCC) cancelou 141 concessões de rádio e TV entre 1934 e 1987. Em 40 desses casos, ela nem esperou que expirasse o prazo da concessão. Já o governo britânico revogou a licença da OneTV, em agosto de 2006; da StarDate, em novembro de 2006; e do canal de televendas Auctionword, em dezembro de 2006. A Espanha revogou, em julho de 2005, a concessão da TV Católica. E a França cancelou a licença da TF1, em dezembro de 2005, por ela ter negado o Holocausto.

Na defesa da democracia e da autêntica liberdade de expressão, o país necessita ser mais rigoroso na análise das concessões e renovações das outorgas. É preciso exigir o cumprimento das normas constitucionais e das leis vigentes. Várias redes privadas desrespeitam o limite mínimo de tempo de 5% para o jornalismo e máximo de 25% para a publicidade. Ainda veiculam merchandising, o comercial disfarçado, o que vetado pelo Código de Defesa do Consumidor. A maioria não exibe o conteúdo educativo exigido pelo Constituição; quando exibe é em horários de baixa audiência. O lobby da mídia também sabotou a classificação indicativa, medida essencial para o resguardo do Estatuto da Criança e dos Adolescentes. Num desrespeito à legislação, várias emissoras de rádio e televisão são dirigidas por “laranjas” de políticos com mandato.

Diante destes e outros abusos, é inadmissível que as outorgas e renovações sejam dadas de forma automática, sem consulta à sociedade. Em vários países existem ouvidorias públicas para receber críticas e analisar as concessões; muitos promovem audiências sobre o tema. Em casos extremos, diante do desrespeito às leis, vários governos simplesmente revogam as concessões. A não renovação é um ato democrático, como admite a União Internacional das Telecomunicações (UIT), que “reconhece em toda sua amplitude o direito soberano de cada Estado de regulamentar o setor, devido à importância crescente das telecomunicações na salvaguarda da paz e do desenvolvimento econômico e social” [8].

3- Rever os critérios da publicidade oficial

A publicidade é a principal fonte de recursos da mídia hegemônica. O faturamento com anúncios publicitários, que superou R$ 21,4 bilhões em 2008, garante os investimentos neste setor de alta tecnologia e os lucros dos empresários, reforçando os impérios midiáticos. Nada é dado de graça, como costuma tergiversar a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert) para se contrapor ao controle público. A exibição “gratuita” do conteúdo é paga pela publicidade e os altos custos de produção e veiculação são repassados ao preço da mercadoria. Além de seduzir o consumidor, o anúncio cumpre o papel ideológico de “vender” um estilo de vida, individualista e consumista.

Para o sociólogo Pedro Hurtado, “a publicidade, à margem da sua finalidade comercial, é pura e dura propaganda do modo de vida e de pensamento inerente à ideologia social predominante na atualidade: o consumismo-capitalismo. A publicidade não apenas vende produtos, mas também impõe um modo de vida, valores morais e culturais, códigos simbólicos e, em definitivo, uma ideologia... O consumismo é uma forma de pensar segundo a qual o sentido da vida consiste em comprar objetos e serviços. Esta forma de pensar se converte na principal ideologia que sustenta o sistema capitalista” [9].

Se a correlação de forças na sociedade não possibilita, ainda, adotar medidas mais rigorosas de controle da publicidade comercial, o atual estágio das lutas sociais no país já permite, ao menos, rediscutir os critérios de distribuição das verbas publicitárias dos governos. Afinal, este dinheiro é oriundo dos tributos da sociedade. O montante de recursos é expressivo e serve para “alimentar cobras”. Os barões da mídia que abocanham estes recursos públicos são os mesmos que pregam golpes, desestabilizam governos, criminalizam as lutas dos trabalhadores e idolatram o “deus-mercado”. A publicidade oficial reforça a monopolização do setor, quando poderia servir para estimular a diversidade e pluralidade informativas numa sociedade mais democrática.

De forma discreta, o governo Lula promoveu algumas mudanças nesta área. Ele descentralizou a distribuição das verbas oficiais. “Os comerciais do Palácio do Planalto atingiram no ano passado 5.297 veículos de comunicação. O número representa uma alta de 961% sobre os 499 meios que recebiam dinheiro para divulgar propaganda do governo Lula em 2003, quando o petista tomou posse”, resmungou a Folha [10]. A descentralização da publicidade oficial diminuiu o montante abocanhado por poucos barões da mídia. Irritados, eles agora criticam a rotulada “bolsa-mídia de Lula”, afirmando que ela serve para “alimentar a rede chapa-branca do governo” [11].

Apesar da gritaria, a administração direta e indireta é uma das maiores anunciantes do país. Os gastos publicitários dos governos FHC e Lula oscilaram entre R$ 900 milhões e R$ 1,2 bilhão. O pico de FHC foi em 2001, com R$ 1,114 bilhão em anúncios; em 2008, o governo Lula investiu R$ 1,027 bilhão. Isto sem contabilizar os custos da produção dos comerciais e os gastos com os patrocínios nas áreas de esporte, cultura e outras – que atingiu R$ 918 milhões em 2008. A soma de publicidade e patrocínio injetou quase R$ 2 bilhões na mídia. Na comparação com a iniciativa privada, o maior anunciante em 2008 foi a Casas Bahia, com R$ 3,2 bilhões; o segundo lugar ficou com a Unilever, dona das marcas Kibon, Omo, Dove e Rexona, que gastou R$ 1,75 bilhão.

Quase a totalidade da publicidade oficial engorda os bolsos dos barões da mídia. O governo Lula nunca teve a coragem para investir em veículos alternativos e estes estão à míngua. Até a revista Carta Capital, que adota uma linha jornalística mais independente, sofre com esta tibieza, como crítica Mino Carta [12]. A desculpa usada pelo governo é que ele adota critérios mercadológicos, medidos pela audiência e tiragens. Com esta postura aparentemente “neutra”, o governo reforça a monopolização do setor. É urgente redefinir os critérios para a publicidade oficial. Países como a Itália e a França adotam normas legais para incentivar a diversidade e pluralidade informativas, barateando os custos de impressão e garantindo cotas de publicidade para veículos alternativos.

O Fórum de Mídia Livre defende o estabelecimento de critérios democráticos e transparentes de distribuição dos recursos oficiais, e não apenas a partir da reprodução da lógica mercadológica. “O Estado não vende mercadoria, presta serviço publico. O critério de veiculação não deve ser o da circulação, pois este está ligado à lógica da audiência como mercadoria. A mídia comercial vende audiência, isto é, circulação ou pontos de Ibope, remunerando seus fatores de produção em função da receita que o anunciante lhe proporciona devido ao público que pode atingir. Ora, o Estado não precisa se subordinar a tais critérios. O Estado não vende nada, apenas presta contas, logo pode e deve chegar ao cidadão através de muitos canais pelos quais o cidadão se informa”, explica Marcos Dantas, professor da PUC/RJ e integrante da coordenação do movimento [13].

4- Estimular a radiodifusão comunitária

A radiodifusão comunitária é recente no país e já demonstrou o seu potencial prático na luta pela democratização das comunicações. Ela dá voz a quem não tem voz. Permite que as comunidades “excluídas” expressem seus anseios e reivindicações, divulguem suas criações culturais, prestem serviços à população. Essa experiência no Brasil surgiu no início dos anos 1980, ainda na fase sombria da ditadura militar, e só foi reconhecida legalmente em 1998 – na Bolívia, as rádios comunitárias surgiram na década de 1950 no bojo das greves dos mineiros; já no Chile, elas contribuíram para as vitórias da Unidade Popular, a coalizão socialista de Salvador Allende.

Temendo a sua concorrência, a radiodifusão comunitária é alvo da fúria da mídia hegemônica. Já os governos, sob pressão dos empresários, investem para criminalizá-la. O governo Lula foi até mais realista do que o rei, batendo recorde de perseguição. Segundo pesquisa da Abraço, de 2002 a 2007, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Polícia Federal fecharam mais de 15 mil rádios comunitárias. “Também foram abertos mais de 20 mil processos e cerca de 5 mil militantes foram condenados judicialmente por tentar exercer o direito de livre expressão”. O atual ministro das Comunicações, Helio Costa, dono da rádio Sucesso FM, de Barbacena (MG), vetou todos os projetos de avanço neste setor e “recrudesceu o fechamento das emissoras” [14].

Além da repressão, tudo é feito para inviabilizar a legalização da radiodifusão comunitária. A burocracia é infernal, com inúmeros obstáculos administrativos. Estudo feito pelo Sistema de Controle de Radiodifusão, em novembro de 2006, apontou a existência de 13.595 pedidos de rádios comunitárias acumulados no Ministério das Comunicações – três vezes mais do que os 4.400 verificados no início de 2003. José Sóter, dirigente da Abraço, critica os burocratas do ministério, “subservientes à Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e aos interesses dos monopólios da comunicação, e a falta de gente que esteja comprometida com a efetivação do serviço de radiodifusão comunitária como política pública de comunicação” [15].

Estudo recente, no qual foram pesquisadas 2.205 rádios comunitárias autorizadas pelo Ministério das Comunicações (80,44% do total das legalizadas), ainda aponta para outro grave perigo: o de que estas concessões sejam utilizadas como moeda de barganha, servindo a políticos fisiológicos e credos religiosos. A pesquisa indica que “a maioria das rádios comunitárias funciona no país de forma ‘irregular’ porque não se logrou ser devidamente autorizada; e, entre a minoria autorizada, mais da metade opera de forma ilegal. Entre as 2.205 rádios pesquisadas, foi possível identificar vínculos políticos em 1.106 – ou 50,2% delas... Há, também, um número considerável de rádios com vínculos religiosos: 120 delas, ou 5,4% do total”. Este deformação revelaria a existência de um “coronelismo eletrônico de novo tipo, envolvendo as outorgas de rádios comunitárias” [16].

Para complicar ainda mais o quadro, o setor passa por um processo de mutação tecnológica para sua digitalização. O Ministério das Comunicações, dominado pelos barões da mídia, já anunciou que prefere o padrão digital dos EUA, o IBOC. Várias rádios foram autorizadas a realizar testes com o novo padrão, criando um fato consumado – sem qualquer consulta à sociedade. Além de ser propriedade de uma única empresa, que cobrará elevados royalties, essa tecnologia ocupa o espectro de forma predatória, fechando espaços para as transmissões. Ele inclusive avança sobre fatias de freqüências ocupadas pelo sistema analógico. Ao encarecer os equipamentos e restringir as transmissões, esse padrão de digitalização poderá asfixiar a radiodifusão comunitária no país.

Ao invés de ser criminalizada, a radiodifusão comunitária deveria ser incentivada pelos poderes públicos. Diante do golpismo da ditadura midiática, ela é uma arma contra-hegemônica decisiva na defesa da democracia. O Estado deveria baratear seus equipamentos e promover oficinas para capacitar os radiodifusores. Mudanças na legislação deveriam garantir o aumento do número de freqüências das emissoras e ampliar o limite da área e o potencial de seu alcance – hoje restrito a um quilometro. A urgente criação de um sistema brasileiro de rádio digital serviria para evitar a monopolização do setor. Além disso, o poder público deveria garantir os meios de sustentação financeira destes veículos, investindo na construção de conteúdos de qualidade e plurais, e criar barreiras para coibir sua apropriação por setores fisiológicos e para garantir o seu caráter laico.

Para agilizar a legalização das rádios, a FNDC propõe medidas simples, como a descentralização dos processos de concessão, redução dos prazos de tramitação e zoneamento da radiofreqüência para definir o canal e a potência para cada localidade. Já a Amarc defende mudanças urgentes no marco regulatório. Entre outros pontos, ela propõe que “as comunidades organizadas e entidades sem fins lucrativos tenham direito a usar a tecnologia de radiodifusão disponível, tanto analógica como digital”; que “os meios comunitários tenham assegurada a sua sustentabilidade econômica, independência e desenvolvimento”, por meio de patrocínios e publicidade oficial; e a criação “de fundos públicos para assegurar o seu desenvolvimento” e de “políticas públicas que desonerem ou reduzam o pagamento de taxas e impostos, incluindo o uso de espectros” [17].

5- Investir na inclusão digital

Criada nos EUA para fins militares e impulsionada pelos circuitos financeiros do capitalismo, a internet tem transformado o mundo das comunicações. Os mais otimistas chegam a falar numa “revolução”, que permitiria a democratização da produção de conteúdos e da sua difusão. Outros, mais cautelosos, apontam que a tendência monopolista do capital já se faz sentir na centralização dos portais da internet, além do que o capital imporá formas de controle. O projeto do senador tucano Eduardo Azeredo, já batizado de AI-5 digital, confirma este perigo, a exemplo do ataques desferidos pelo presidente-terrorista George Bush e pelo fascistóide Nicolas Sarkozy na França.

Independentemente das tendências futuras, a internet já provoca enormes abalos no setor. Vários jornais e revistas perderam tiragens, faliram ou viraram online. A própria linguagem da televisão é afetada por esta nova forma de comunicação, mais ágil e interativa. Muitos protestos políticos, a partir da manifestação contra a globalização neoliberal que paralisou Seattle em 1999, já são convocados por sítios e blogs progressistas. Manipulações da mídia hegemônica são desnudadas na internet. De 1999 a 2006, mais de 47 milhões de blogs entraram no ar. Neles circulam 1,2 milhão de novos artigos por dia, ou 50 mil por hora, escritos por cerca de 35 milhões de pessoas.

Entusiasta da internet, Bernardo Kucinski afirma que ela “é a maior revolução nas comunicações desde a invenção de Gutenberg. Não admira que tenha reaberto uma nova era de encantamento do ser humano com a comunicação e com a arte de escrever... Na articulação das ONGs e dos movimentos sociais, a internet tem tido papel decisivo, recuperando com grande vantagem o antigo papel atribuído por Lênin à imprensa como ‘organizadora do movimento operário’. Na era da globalização, ela se tornou uma organizadora da cidadania, como expressa o Fórum Social Mundial. Este certamente não teria existido sem a internet. Ela também deu viabilidade técnica ao exercício da democracia direta e acesso direto do cidadão aos serviços do Estado” [18].

Esta “essência libertária”, porém, pode ser castrada pela exclusão digital, alerta Sérgio Amadeu, outro entusiasta da internet. “Quanto custa se conectar à sociedade da informação? Para acessar a internet, a rede mundial de computadores, é preciso pagar mensalmente um provedor de acesso e o gasto com a conta telefônica. Além disso, é preciso ter um computador que custa mais de mil reais. Em um país com quase um terço da sociedade abaixo da linha da pobreza, gastar algo em torno de 40 reais por mês pelo uso mínimo de conexão e conta telefônica é impossível para a maioria da população. Essa é a nova face da exclusão social”, explica didaticamente [19].

Para superar este gargalo, ambos concordam que o Estado deve ter papel pró-ativo. Não dá para deixar esta tecnologia nas mãos “invisíveis” do deus-mercado. Entre outras medidas, é urgente regular o setor para universalizar o acesso à internet, visando a sua gratuidade. O preço da banda larga no país é dos mais altos no mundo devido à desregulamentação das telecomunicações [20]. É preciso também uma política mais ofensiva para baratear os aparelhos, inclusive superando a “ditadura de Bill Gates” através do software livre. Segundo a PNAD de 2004, somente 16,6% das residências brasileiras tinham computadores. Dados do Ibope de 2007 revelaram que apenas 14,1 milhões dos lares tinham acesso à internet. “Devemos elevar a questão da inclusão digital e da alfabetização tecnológica à condição de política pública”, defende Sérgio Amadeu.

6- A urgência do novo marco regulatório

Estas e outras mudanças colocam a urgência de um novo marco regulatório para o setor. A atual legislação é ultrapassada, datada de 1962, carregada de vícios e não dá respostas aos vertiginosos avanços tecnológicos na área. Além de coibir os monopólios e regulamentar outros princípios da Constituição de 1988, como o que garante o respeito à pluralidade de opiniões, a nova legislação deve enfrentar os desafios do futuro. O processo de convergência digital, no qual as corporações multinacionais avançam sobre a mídia, torna este debate ainda mais atual. Hoje é preciso impor regras para evitar a desnacionalização do setor e para garantir a produção e a cultura nacionais.

Apesar das restrições do padrão japonês adotado pelo governo, a nova legislação deve regular a implantação da TV e da rádio digital, protegendo o conteúdo nacional e explorando seu potencial na promoção da diversidade e da inclusão social. Ela não pode depender do resultado da disputa entre as operadoras de telefonia e os barões da mídia. “No bojo da convergência tecnológica, o instinto de sobrevivência dos radiodifusores e a ânsia pela entrada no mercado do conteúdo audiovisual das chamadas teles deverão ser a força motriz da mudança na legislação... É preciso garantir que o campo não seja ocupado apenas pela polarização radiodifusores x teles, mas pelo conjunto dos atores que tem propostas para a reformulação legal”, alerta Jonas Valente [21).

O novo marco regulatório deve fixar políticas públicas que garantam o acesso da população aos avanços tecnológicos. O Brasil ainda está muito atrasado neste campo, seja no acesso à internet, às salas de exibição de cinema ou mesmo à telefonia. “Em 1997, o numero de telefones por 100 habitantes era de 11,7%; em 2004, passou para 29%. Apesar de a telefonia chegar praticamente a todos os 5.484 municípios, nos 5 mil mais pobres ela é a mesma de antes da privatização; 11% ou 7,5 milhões de linhas... Assim, grandes parcelas da população estão excluídas dos avanços tecnológicos. Esse quadro, já amplamente diagnosticado pelo governo Lula, impõe a necessidade de um novo modelo institucional”, que garanta o “adequado equilíbrio entre os sistemas privado, público e estatal” e evite “a concentração da propriedade”, propõe Israel Bayma [22].

A nova legislação também deveria fixar mecanismos democráticos de controle social dos meios de comunicação. Ignacio Ramonet, diretor do jornal Le Monde Diplomatique, defende a criação de observatórios de mídia nas escolas e espaços públicos para monitorar o que é divulgado. “A informação, como os alimentos, está contaminada. Envenena o espírito, polui nossos cérebros, nos manipula, nos intoxica, tenta instilar em nosso inconsciente idéias que não são nossas”. Daí a urgência de um “quinto poder” fiscalizador [23]. No mesmo rumo, é preciso reativar o Conselho de Comunicação Social, previsto na Constituição, mas que está esvaziado. Há ainda a proposta dos sindicatos de jornalistas da criação dos conselhos de redação, como instrumento de luta da categoria e também como contraponto à manipulação, à censura e à pressão dos donos da mídia.

Como conclui Marcos Dantas, a comunicação passa por aceleradas mudanças. Em curto espaço de tempo, nada será como antes neste setor. A televisão, por exemplo, “não será apenas esta que temos: aberta, unidirecional, oferecida por grandes grupos empresariais e sustentadas pela grande publicidade. A TV poderá ser também local ou comunitária, via internet”. O rumo das mudanças dependerá da correlação de forças na sociedade e da construção de um novo marco regulatório e legal. “Na verdade, o capitalismo desenvolveu essas tecnologias e vai moldando os seus usos, ao seu gosto. Nada impede, porém, que o povo trabalhador possa disputá-las, delas se apropriar e a elas dar novos e mais democráticos rumos” [24].


NOTAS

1- James Görgen. “Como domar essa tal de mídia?”. Cartilha nº 1 da FNDC.

2- Caderno da 1ª Conferência Nacional de Comunicação. Diretório Nacional do PT, abril de 2008.

3- “O PCdoB e a luta pela democratização da mídia”. Resolução da 8ª reunião do Comitê Central, outubro de 2007.

4- Laurindo Lalo Leal Filho. Vozes de Londres. Memórias brasileiras da BBC. Edusp, SP, 2008.

5- Valério Cruz Brittos e Rafael Cavalcanti Barreto. “O potencial democrático e sua redução à mercadoria”. Observatório da Imprensa, 14/10/08.

6- “Aparelho na TV”. Editorial da Folha de S.Paulo, 19/03/07.

7- “TV do Executivo: uma ação contra o Fórum de TVs Públicas”. Intervozes, março de 2007.

8- Ernesto Carmona. “Salvador Allende se revolve na tumba”. Correio da Cidadania, 12/07/07.

9- Pedro Hurtado. “Prohibir la publicidad en los medios de comunicación de masas”. Rebelion, 20/12/08.

10- Fernando Rodrigues. “Propaganda de Lula chega a 5.297 veículos”. Folha de S.Paulo, 31/05/09.

11- Fernando de Barros e Silva. “O bolsa-mídia de Lula”. Folha de S.Paulo, 01/06/09.

12- Mino Carta. “A vitória de Lula é a derrota da mídia”. Entrevista para o sítio Fazendo Media, 03/11/06.

13- Jonas Valente. “Fórum lança manifesto em defesa do fortalecimento da mídia livre”. Observatório do Direito à Comunicação, 24/10/08.

14- Gustavo Gindre. “Os rumos do Ministério das Comunicações”. Fazendo Media, 27/11/06.

15- Laura Schenkel. “Governo acumula 14 mil pedidos de abertura de rádios comunitárias”. Boletim da FNDC, 09/12/06.

16- Venício A. de Lima e Cristiano Aguiar Lopes. “Rádios Comunitárias: coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)”.

17- “Audiência discute padrão para rádio e televisão comunitária”. Agência Adital, 27/10/09.

18- Bernardo Kucinski. Jornalismo na era virtual. Editoras Perseu Abramo e Unesp, SP, 2005.

19- Sérgio Amadeu da Silveira. Exclusão digital. Editora Perseu Abramo, SP, 2005.

20- Elvira Lobato. “Disputa de teles distorce preço da internet”. Folha de S.Paulo, 17/08/08.

21- Jonas Valente. “Lei Geral é a bola da vez, afirmam especialista do setor”. Carta Maior, 23/03/07.

22- Israel Bayma. “Uma proposta para a construção democrática da lei geral de comunicação eletrônica”. 02/08/06.

23- Ignacio Ramonet. “O quinto poder”. Caminhos para uma comunicação democrática. Jornal Le Monde Diplomatique, SP, 2007.

24- Marcos Dantas. Uma agenda democrática para as comunicações brasileiras. Cadernos da Fisenge, RJ, 2008.

- Extraído do quinto e último capítulo do livro "A ditadura da mídia", publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir seu exemplar, entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico - livro@vermelho.org.br

sábado, 30 de janeiro de 2010

A mídia diante de Collor, FHC e Lula (12)

Esta opção de classe, neoliberal, vingou na primeira eleição direta para presidente pós-ditadura, em novembro de 1989. Temendo a vitória de Lula, o operário que se projetou nas greves contra o regime militar, a mídia cumpriu o papel de unificadora das elites, até então divididas entre vários postulantes. Ela fabricou a candidatura do “caçador de marajás”, Fernando Collor. A revista Veja e os jornalões deram várias capas ao inexpressivo oligarca nordestino e os meios de comunicação de massas trataram de difundir a sua imagem. Como dono da afiliada da TV Globo em Alagoas, Collor teve tratamento privilegiado na emissora, que massificou o mito do “caçador de marajás”.

Apesar de todo o marketing, Lula ainda chegou ao segundo turno, o que causou pânico na mídia. “As rotinas de fechamento nos jornais foram modificadas, assim como suas cadeias de comando. Os quadros de confiança afastaram jornalistas com alguma espinha dorsal e passaram a dirigir e fechar as páginas políticas como questão estratégica” [15]. A mídia inclusive divulgou grosseiras provocações, como a do seqüestro do empresário Abílio Dinis na véspera do segundo turno. Um seqüestrador surgiu nos telejornais com a camiseta do PT e depois foi comprovado que a polícia o forçou a colocar a roupa. O golpe fatal, porém, foi dado pelo Jornal Nacional da TV Globo, que fraudou a edição do último debate da televisão e reverteu a tendência de vitória de Lula.

Pouco tempo depois, quando Fernando Collor afundou na lama e colocou em perigo a aplicação do receituário neoliberal, a mídia não vacilou em descartá-lo, engrossando o coro das ruas pelo seu impeachment. Habilidosa, ela tratou de ofuscar os efeitos destrutivos do neoliberalismo e de limitar a campanha ao slogan da “ética na política” – logo ela que sempre se aliou aos políticos patrimonialistas. Na eleição seguinte, em 1994, novamente a mídia estava unida na campanha do “príncipe de Sorbonne”, o ex-ministro FHC. Segundo denúncia de Bernardo Kucinski, houve um “alinhamento natural dos proprietários dos grandes jornais com Fernando Henrique, tornando desnecessária a compra direta de jornalistas, como havia ocorrido na campanha de Collor”.

Sua campanha foi planejada com base nas técnicas publicitárias mais modernas, com a assessoria de James Carville, marqueteiro de Bill Clinton. Tudo foi feito para desqualificar o operário Lula, “analfabeto e despreparado”, e para fixar a imagem de FHC como “o pai do Real”, o responsável pelo fim da inflação. A imprensa sequer repercutiu as confissões do ministro Rubens Ricupero ao repórter da TV Globo, Carlos Monforte, que foram captadas por antenas parabólicas: “Eu não tenho escrúpulo. O que é bom a gente fatura, o que é ruim, a gente esconde”. A mídia também não teve qualquer escrúpulo para pavimentar as duas vitórias eleitorais do neoliberal FHC.

Durante seus dois mandatos, a mídia defendeu militantemente todas as medidas de desmonte do Estado, da nação e do trabalho. Ela apoiou as privatizações criminosas, a libertinagem financeira, a desnacionalização da economia e a flexibilização das leis trabalhistas. Demonstrando seu total oportunismo no tratamento da “ética na política”, ela não deu qualquer destaque às denúncias de corrupção contra o governo FHC, como na compra de votos para a sua reeleição ou no bilionário socorro aos banqueiros. Todas estas manipulações, porém, não evitaram o crescente desgaste do seu serviçal, que deixou o governo como um dos presidentes mais detestados da história do país.

Governo Lula e o ódio de classe

Diante da fadiga do “pensamento único” neoliberal e da iminente vitória de Lula, a mídia refinou sua tática. Na campanha presidencial de 2002, ela criou um clima de terrorismo para enquadrar o futuro governante. O “risco-Lula”, o retorno da inflação e a explosão do dólar foram manchetes nos jornais, revistas e emissoras de TV. Somente quando o candidato assinou a famosa “carta ao povo brasileiro”, comprometendo-se a não “romper contratos” e a não alterar a ortodoxa política macroeconômica, é que o terrorismo midiático foi abrandado. No seu livro autobiográfico, o ex-ministro Antonio Palocci confessa que consultou João Roberto Marinho, um dos herdeiros do império, para redigir a versão final da carta e para “tranqüilizar o mercado financeiro” [16].

Apesar do pacto firmado com o capital financeiro, que frustrou muitas expectativas de mudança, a mídia não deu folga ao governo Lula. Prevaleceu seu crônico ódio de classe. Ela nunca tolerou um operário no Palácio do Planalto; um novo bloco de forças políticas, oriundo das lutas sociais, no poder. “Esses veículos e seus homens de confiança nas redações simplesmente não aceitavam a idéia de que Lula vencera as eleições. Qualquer motivo servia não apenas para criticá-lo, mas para tentar desqualificá-lo, numa escalada que independia dos fatos, tratamento bem diferente da cordialidade que a maior parte da imprensa revelara para com o governo anterior” [17].

Quando surgiu a primeira brecha, a mídia partiu para o ataque. Em maio de 2005, Veja mostrou Maurício Marinho, chefe de um departamento da Empresa Brasileira de Correios, recebendo R$ 3 mil de suborno. A partir daí, iniciou-se a onda de denúncias contra o governo. A revista editou 15 capas sucessivas sobre corrupção. A maioria das denúncias não foi comprovada, como a que envolveu o filho do presidente em irregularidades ou as capas sobre os dólares provenientes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e de Cuba para as campanhas do PT. No seu ódio visceral, ela acusou “a quadrilha que avançou sobre o dinheiro público no governo Lula, naquele que vem se revelando o maior e mais audacioso esquema de corrupção da história”.

Durante longos 17 meses, a mídia “sangrou” o presidente Lula, visando desgastá-lo com vistas à sucessão em outubro de 2006. Alguns veículos mais afoitos, como a Veja e o Estadão, chegaram a sugerir o seu impeachment e depois recuaram temendo a revolta das ruas. Tudo foi usado para debilitar o governo. O colunista Clóvis Rossi, da Folha, jogou seu passado no lixo e encontrou “as digitais do PT” no assassinato do brasileiro Jean Charles em Londres, em setembro de 2005. Até mesmo uma manifestação estudantil contra o golpismo das elites, em Porto Alegre (RS), foi transmitida nas TVs como “protesto de neocaras-pintadas de verde-e-amarelo” contra o governo.

A imprensa explorou ao máximo o chamado “escândalo político midiático” (EPM), fenômeno estudado pelo sociólogo estadunidense John Thompson [18]. “Muitas das mais importantes crises políticas do mundo contemporâneo, desde a metade do século passado, têm como origem um escândalo político midiático. Isso é verdade no Japão, na Itália, na Inglaterra, Estados Unidos, Argentina e também no Brasil. Nosso exemplo mais significativo, embora pouco estudado e lembrado como tal, talvez seja o EPM que levou Getúlio Vargas ao suicídio em 1954... A crise política que o país viveu desde maio de 2005 certamente se enquadra nas características de um EPM” [19].

Para Venício de Lima, antes mesmo das denúncias dos Correios, “o enquadramento da cobertura que a grande mídia fez, tanto do governo Lula como do PT, expressava a ‘presunção de culpa’, que, ao longo dos meses seguintes, foi se consolidando por meio de uma narrativa própria e pela omissão e/ou saliência de fatos importantes”. A presunção da inocência está inscrita no artigo 5º da Constituição: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A obediência a esse princípio, dever de qualquer veículo, nunca foi respeitada. A mídia abusou do poder de “fazer e desfazer reputações” e de ditar a agenda política. Desprezando a Constituição e a ética jornalística, ela exacerbou no seu papel golpista de “partido da direita”.

A manipulação atingiu o seu ápice na campanha sucessória de 2006. Estudos independentes, do Observatório Brasileiro de Mídia e do Laboratório de Pesquisas do Iuperj, comprovaram que a cobertura eleitoral foi totalmente distorcida. “O presidente Lula teve os maiores percentuais de reportagens negativas, sempre superiores a 50%... Mesmo com a indicação de derrota apontada nas pesquisas, o candidato do PSDB teve mais matérias positivas do que negativas” [20]. Apesar do bombardeio midiático, o carismático Lula manteve altos índices de popularidade e, segundo todas as sondagens, venceria com folga já no primeiro turno. Novamente, a TV Globo entrou em cena para forçar o segundo turno, num dos golpes mais rasteiros da história do jornalismo.

Às vésperas do pleito, Edmilson Bruno, delegado da Polícia Federal, vazou ilegalmente fotos do dinheiro apreendido para a compra de dossiê que incriminava o PSDB na aquisição fraudulenta de ambulâncias na gestão FHC. Em conversa gravada, ele ordenou que as fotos fossem exibidas no Jornal Nacional de 29 de setembro. A TV Globo não só omitiu a gravação como escondeu a queda do avião da Gol, no mesmo dia, para não ofuscar seu factóide. Duas reportagens da Carta Capital, redigidas pelo experiente jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, desvendaram “a trama que levou ao segundo turno” [21]. Apesar deste golpe sujo, os eleitores garantiram a reeleição do presidente Lula, numa histórica e desnorteante derrota da mídia manipuladora e prepotente [22].

Ilusão e pragmatismo diante da mídia

O comportamento da mídia diante do governo Lula, principalmente no processo eleitoral, serviu ao menos para alertar os atuais ocupantes do Palácio do Planalto sobre o nocivo papel dos meios de comunicação, concentrados e com forte poder de manipulação. Durante o primeiro mandato, o governo adotou uma postura acovardada diante dos donos da mídia. Além do pacto com o capital financeiro, Lula parece ter firmado outro com a ditadura midiática. Houve um misto de ilusão e pragmatismo. Um influente ministro do presidente Lula chegou a afirmar que tinha a “TV Globo nas mãos” – pouco depois foi defenestrado pela família Marinho. O Palácio do Planalto procurou cultivar relações amigáveis com a mídia, apostando na sua neutralidade. Pura ilusão!

Numa ação pragmática, o governo cedeu em quase tudo aos barões da mídia. Seus três ministros das Comunicações, em especial Hélio Costa, tiveram a benção dos empresários. Nenhuma medida efetiva de democratização do setor foi implantada. O projeto de classificação indicativa para menores foi abortado após milionária campanha contra a “censura” das empresas. “As emissoras de televisão no Brasil, concessionárias de um serviço público (é sempre bom lembrar), não admitem qualquer tipo de regras. Trabalham no vácuo legal e pretendem continuar assim... É inadmissível que algo tão delicado, como a exposição de crianças e jovens a cenas incompatíveis com os respectivos desenvolvimentos físico e mental, fique a critério exclusivo dos empresários da mídia” [23].

Outro projeto fritado foi o da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual, que visava retirar das mãos do deus-mercado a exclusividade na produção cultural. “A Ancinav deveria abranger toda a cadeia produtiva do audiovisual, inclusive as intocáveis redes de TV. A Globo, que iniciou o atual milênio atingindo 98% dos municípios brasileiros e recebendo sozinha verba publicitária maior do que todas as outras emissoras juntas – chegou a abocanhar 68% das verbas –, comandou a reação ao projeto, movendo campanha nacional. Em emissoras de rádio, jornais e na TV, seus astros de novela protestaram contra o ‘absurdo intervencionismo’” [24]. O governo Lula também recuou na criação do Conselho Federal de Jornalismo, antiga proposta da Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), que foi “massacrada pela mídia antes mesmo de entrar em pauta” [25].

A cedência maior, porém, ocorreu com a adoção do modelo japonês de televisão digital (ISDB), anunciada três meses antes da eleição de 2006. Foi um baita presente para a TV Globo e que não teve qualquer retribuição na cobertura eleitoral. Outra prova do misto de ilusão e pragmatismo. O governo simplesmente rifou seu projeto do Sistema Brasileiro de TV Digital, que se baseava nos princípios da democratização da comunicação, diversidade e inclusão cultural e desenvolvimento da indústria nacional, e que implicou em investimentos de R$ 50 milhões e na montagem de 22 consórcios de universidades, envolvendo 1.500 pesquisadores. Ao optar pelo ISDB, o governo Lula adotou um padrão digital caro e excludente, que serve principalmente à Rede Globo [26].

O jornalista Bernardo Kucinski, que trabalhou no Palácio do Planalto naquele período, faz um balanço bastante ácido das relações estabelecidas com a mídia. Para ele, o governo Lula não entendeu o papel deste poderoso setor na atualidade. Apesar do governo manter “religiosamente seu acordo estratégico com o capital financeiro, que é o setor dominante hoje do capitalismo”, a imprensa nunca perdoou sua origem social. Diante desta hostilidade, foi “equivocada a política do governo Lula, a começar por não atribuir à comunicação e às relações com a mídia o mesmo peso estratégico que atribuiu às suas relações com a banca internacional” [27]. Kucinski critica, inclusive, a corrosão do sistema estatal de comunicação, através da Radiobrás.

No segundo mandato, talvez incomodado com as manipulações, o governo Lula passou a adotar algumas medidas, ainda que tímidas, para encarar esta questão estratégica. A criação da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), que gerencia a TV Brasil, representa um importante passo na construção de uma rede pública no país, superando a exclusividade do modelo privado importado dos EUA. O presidente também tem encarado as polêmicas com a mídia, como quando afirmou à revista Piauí que a leitura dos jornais lhe dá “azia”. A decisão de convocar a Conferência Nacional de Comunicação, desafiando os poderosos do setor, caminha neste rumo. Pela primeira vez na história, a sociedade será chamada a discutir a concentração e manipulação da mídia.


NOTAS

15- Bernardo Kucinski. A síndrome da antena parabólica. Editora Perseu Abramo, SP, 1998.

16- Antonio Palocci. Sobre formigas e cigarras. Editora Objetiva, SP, 2007.

17- Ricardo Kotscho. Do golpe ao Planalto. Editora Companhia das Letras, SP, 2006.

18- J. B. Thompson. O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Editora Vozes, RJ, 2002.

19- Venício A. de Lima. Mídia: crise política e poder no Brasil. Editora Perseu Abramo, SP, 2006.

20- Kjeld Jakobsen. “A cobertura da mídia imprensa aos candidatos nas eleições presidenciais de 2006”. Venício A. de Lima (org.). A mídia nas eleições de 2006. Editora Perseu Abramo, SP, 2006.

21- Raimundo Rodrigues Pereira. “A trama que levou ao segundo turno”. Revista Carta Capital, 18/10/06; “Contribuições ao dossiê da mídia”, Carta Capital, 25/10/06.

22- Renato Rovai. “As muitas derrotas da mídia comercial tradicional”. Venício A. de Lima (org.). A mídia nas eleições de 2006. Editora Perseu Abramo, SP, 2006.

23- Laurindo Lalo Leal Filho. “O poder da TV”. Agência Carta Maior, 24/11/08.

24- “Mídia poderosa”. Retrato do Brasil, Editora Manifesto, MG, 2006.

25- Raquel Paulino, Pedro Venceslau e James Cimino. “Crônica de (mais) uma derrota anunciada”. Revista Imprensa, agosto de 2006.

26- Mais detalhes no artigo “TV digital: dormindo com o inimigo”, na página ?????

27- Bernardo Kucinski. “Por que o governo Lula perdeu a batalha da comunicação”. Agência Carta Maior, 24/06/08.


- Extraído do quarto capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir seu exemplar, entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Do golpe militar às Diretas-Já (11)

O golpe militar de 1964 serviu aos interesses – ideológicos, políticos e empresariais – dos barões da mídia. Com exceção da Última Hora, os principais jornais, revistas, emissoras de TV e rádio participaram da conspiração que derrubou João Goulart. O editorial da Folha de S.Paulo de 17 de fevereiro de 2009, que usou o neologismo “ditabranda” para qualificar a sanguinária ditadura, ajudou a reavivar esta história sinistra – além de resultar num manifesto de repúdio com 8 mil adesões de intelectuais e na perda de mais de 2 mil assinantes. Afinal, não foi apenas a Folha que clamou pelo golpe. Vários livros documentaram a participação ativa da mídia, inclusive listando veículos e jornalistas a serviço dos golpistas [9]. Os editoriais da época escancararam essa postura ilegal.

“Graças à decisão e heroísmo das Forças Armadas, o Brasil livrou-se do governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo a rumos contrários à sua vocação e tradições... Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares”, comemorou o jornal O Globo. “Desde ontem se instalou no país a verdadeira legalidade... A legalidade está conosco e não com o caudilho aliado dos comunistas”, afirmou, descaradamente, o Jornal do Brasil. “Escorraçado, amordaçado e acovardado, deixou o poder como imperativo de legítima vontade popular o Sr. João Belchior Marques Goulart, infame líder dos comunos-carreiristas-negocistas-sindicalistas”, disparou o fascistóide Carlos Lacerda na Tribuna da Imprensa.

Na sequência, alguns veículos ingeriram seu próprio veneno e sentiram a fúria dos fascistas, que prenderam, mataram, cassaram mandatos e impuseram a censura. Lacerda, que ambicionava ser presidente, foi escorraçado pelos generais. Já o Estadão, com a sua linha liberal-conservadora, discordou do rumo estatizante do regime e teve várias edições censuradas. Este não foi o caso do grupo Frias, que tornou a Folha da Tarde “uma filial da Operação Bandeirantes”, a temida Oban, e no jornal de maior “tiragem” do país devido ao grande número de “tiras” (policiais) na sua redação [10]. Também não foi o caso da Rede Globo, que ergueu seu império graças ao irrestrito apoio à ditadura [11].

Até quando a ditadura já dava sinais de fraqueza, a TV Globo insistiu em salvá-la. Nas eleições de 1982, a corporação de Roberto Marinho montou um esquema, através da empresa Proconsult, para fraudar a apuração dos votos e evitar a vitória do recém-anistiado Leonel Brizola. A fraude foi denunciada por Homero Sanchez, ex-diretor de pesquisas da própria emissora. Ela também tentou desqualificar todos os principais líderes da oposição à ditadura. Numa entrevista ao jornal The New York Times, Roberto Marinho confessou: “Em um determinado momento, me convenci que o Sr. Leonel Brizola era um mau governador... Passei a considerar o Sr. Brizola daninho e perigoso e lutei contra ele. Realmente, usei todas as possibilidades para derrotá-lo”.

A manipulação mais grosseira, que popularizou o refrão “O povo não é bobo, fora Rede Globo”, ocorreu na campanha pelas Diretas-Já. Até duas semanas antes da votação da emenda Dante de Oliveira, que instituía a eleição direta para presidente, ela omitiu a mobilização que contagiava milhões de brasileiros. Ela recusou até matéria paga com chamadas para o comício em Curitiba (PR). Já o ato na capital paulista, que reuniu 300 mil de pessoas em 25 de janeiro de 1984, foi apresentado pelo âncora da emissora como “festa em São Paulo; a cidade comemora seus 430 anos”. “O Jornal Nacional sonegou ao público o fato – notório, na época – de que o ato fazia parte da campanha nacional por eleições diretas. Sonegou que essa campanha era liderada publicamente pelos principais expoentes da oposição” [12]. Um verdadeiro crime!

Das greves à histeria na Constituinte

Alguns veículos perceberam o naufrágio da ditadura militar e jogaram papel positivo na luta pela redemocratização. O caso mais curioso foi o da Folha, que até usou suas capas para convocar os comícios das Diretas-Já. O grupo Frias, que apoiara os generais “linha dura”, mudou de lado por oportunismo político e “mercadológico” [13]. Apesar destas nuances, nenhum barão da mídia abdicou de sua visão de classe. Jornalões e emissoras de TV e rádio nunca vacilaram diante das lutas dos trabalhadores, procurando criminalizar suas greves e satanizar suas lideranças. Numa das massivas assembléias em Vila Euclides, em maio de 1980, os metalúrgicos do ABC paulista destruíram câmeras e veículos da TV Globo, indignados com as suas recorrentes manipulações.

Esta opção de classe ficou visível durante os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, em 1987/1988. Meticulosa pesquisa de Francisco Fonseca, da Fundação Getúlio Vargas, prova que os quatro principais diários do país (Jornal do Brasil, O Globo, Estadão e Folha) uniformizaram os seus ataques aos direitos trabalhistas. “Através dos editoriais, que definem a linha editorial e ideológica de cada veículo, a grande imprensa operou nos debates constituintes, sobretudo nos temas que se referiam aos direitos sociais... Alguns dos direitos propostos, como a diminuição da jornada de trabalho, a ampliação da licença-maternidade, a licença-paternidade e o aumento do valor da hora extra, foram tratados como catastróficos à produção” [14].

“A Constituinte embarcou em um caminho de distribuição de benefícios sociais cujo produto só pode ser um e único: a redução da taxa de investimentos, com o conseqüente atraso econômico”, afirmou o editorial terrorista do JB (28/02/88). “Concessões feitas em total descompasso com os efeitos não prejudicarão apenas os trabalhadores, [mas também] a estabilidade institucional”, ameaçou o golpista O Globo (15/11/87). O Estadão, com sua linha liberal-conservadora, pregou a supremacia do deus-mercado, afirmando que tais direitos “acarretariam pernicioso desestímulo aos melhores” (18/06/87). Já a Folha atacou a “demagogia”, inclusive nas propostas do adicional de férias, aviso prévio aos demitidos e limite de seis horas nos turnos ininterruptos (08/07/88).

Além de rejeitar qualquer avanço trabalhista, a mídia bombardeou o direito de greve e procurou fragilizar o sindicalismo. “A liberdade de greve é um abuso conceitual”, atacou o JB (07/07/88). A Folha exagerou ao dizer que as propostas dos constituintes estimulariam o “direito irrestrito de greve... [com] artigos condenáveis” (15/07/88). Já O Globo, no editorial “A porta da anarquia”, afirmou que este direito “significa a porta aberta à desordem e ao caos” (17/08/88). E o Estadão explicitou sua aversão às greves, principalmente no setor público. “São exércitos de empregados que agem com todas as regalias e mordomias de funcionários públicos, promovendo greves que ganham, hoje, aspectos nitidamente políticos e ideológicos, que levam à violência” (19/11/88).

Diante da ascensão das forças democráticas nos anos de 1980 e das conquistas da “Constituição-cidadã”, segundo a célebre definição do deputado Ulisses Guimarães, a mídia percebeu os riscos na origem e deu seu grito de guerra. “A hora é dos liberais acordarem, porque depois será tarde... Os liberais brasileiros têm diante de si uma ingente tarefa; se não se organizarem para combater o populismo estatizante (...), o Brasil corre o risco de regredir”, alertou o Estadão. “Não há outro caminho senão o de todos nos unirmos pondo acima de superadas divergências ideológicas ou de futuras disputas eleitorais os supremos objetivos da nação”, clamou o golpista Roberto Marinho.


NOTAS

9- Renê Armand Dreifuss. 1964: A conquista do estado. Editora Vozes, RJ, 1981.

10- Beatriz Kushnir. Cães de guarda. Boitempo Editorial, SP, 2004.

11- Valério Brittos e César Bolaño. Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. Editora Paulus, SP, 2005.

12- Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl. Videologias. Boitempo Editorial, SP, 2004.

13- Armando Sartori. “Oportunismo mercadológico”. Revista Retrato do Brasil, setembro de 2006.

14- Francisco Fonseca. “O conservadorismo patronal da grande imprensa brasileira”. Dezembro de 2002.

- Extraído do quarto capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir seu exemplar, entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Histórias da manipulação da mídia (10)

“O Sr. Getúlio Vargas, Senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. Carlos Lacerda, dono do jornal golpista Tribuna da Imprensa (01/05/1950).


“Sim, eu uso o poder [da Rede Globo], mas eu sempre faço isso patrioticamente”.
Roberto Marinho, proprietário do maior conglomerado midiático do Brasil.


Desde a sua origem, a chamada grande imprensa se aliou às forças mais reacionárias da política brasileira. Ela nunca escondeu o seu ódio aos movimentos sociais, seja aos camponeses em luta por um pedaço de terra ou aos operários em greve por melhores salários e condições de trabalho. Diante dos governos progressistas, mesmo os mais tímidos, ela conspirou e pregou golpes. Com raras exceções, ela deu apoio às ditaduras mais arbitrárias e sanguinárias. Através de expedientes sujos, como o denuncismo vazio, chantageou o poder público para obter concessões e subsídios. O discurso da “liberdade de imprensa” sempre serviu aos propósitos ilícitos dos barões da mídia.

Como sintetiza o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, um dos primeiros a alertar para o perigo do golpe militar de 1964, a mídia hegemônica protagonizou todas as iniciativas de desestabilização política dos governos de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart. “A grande imprensa levou Getúlio ao suicídio, com base em nada; quase impediu Juscelino de tomar posse, com base em nada; levou Jânio Quadros à renúncia, aproveitando-se da maluquice dele, com base em nada; tentou impedir a posse de Goulart, com base em nada. A grande imprensa, em países em desenvolvimento, é a grande porca das instituições” [1].

Elitista e golpista já na origem

Os poucos jornais burgueses que se consolidaram, tornando-se porta-vozes da elite nativa, nunca esconderam sua opção de classe. O Jornal do Brasil, fundado em abril de 1891, dois meses após a promulgação da primeira Constituição republicana, publicou vários artigos pregando o retorno à monarquia. Devido ao seu conservadorismo, a sede do jornal foi atacada por grupos armados e os redatores abandonaram seus postos. Já O Estado de S.Paulo, criado em 1875, até defendeu algumas idéias progressistas na sua origem, como a abolição da escravatura, com a “indenização aos proprietários”. Desde o início, porém, o jornal foi um ardoroso inimigo das lutas sociais.

Na revolta de Canudos (1893-1897), o Estadão publicou artigo de Olavo Bilac saudando o cruel massacre dos camponeses. “Enfim, arrasada a cidadela maldita! Enfim, dominado o antro negro, cavado no centro do adusto sertão, onde o profeta das longas barbas sujas concentrava sua força diabólica” [2]. Não poupou papel no ataque às primeiras greves operárias, satanizando os líderes anarquistas. Em 1932, ele insuflou a oligarquia cafeeira paulista num fracassado levante militar. Sob o comando de Júlio Mesquita, o jornal foi participante ativo das conspirações que levaram ao suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, e ao golpe militar que derrubou João Goulart em 1964.

A Folha de S.Paulo nasceu em 1962 da fusão de três jornais – as Folhas da Manhã, da Tarde e da Noite. A Folha da Manhã, fundada em 1921, fez oposição cerrada à chamada revolução de 1930. Tanto que em 24 de outubro daquele ano, a multidão que festejava a deposição de Washington Luís destruiu as máquinas de escrever e os móveis da redação deste jornal. O grupo, dominado pela oligarquia paulista, não deu tréguas para Getúlio Vargas e, já como Folha de S.Paulo, sob o comando de Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira, clamou pelo golpe. Na sequência, deu apoio à “linha dura” dos generais e cedeu suas peruas para levar presos políticos à tortura [3].

A trajetória do primeiro império midiático do Brasil, os Diários Associados, foi mais pragmática. Assis Chateaubriand apoiou “a revolução de 1930, mas apenas no que ela tinha de conservadora – um nacionalismo com cores fascistas... Logo depois da rápida aproximação, ele aderiu ao bloco conservador. Primeiro, ligou-se aos interesses britânicos; depois, aos norte-americanos. Fez campanha contra a criação da Petrobras. Dizia que ‘a exploração dos recursos naturais do país por estatais brasileiras era coisa de comunista’ e que o lema ‘O petróleo é nosso’ era um ‘chavão soviético’” [4]. Chatô apoiou o golpe de 1964 e lançou a campanha “ouro para o bem do Brasil” para legitimar a ditadura e, de forma oportunista, para salvar seu império que afundava na crise.

Os Diários Associados, através de dezenas de jornais e rádios e da primeira emissora de televisão do país, a TV Tupi, criada em 1950, adotaram o estilo do “jornalismo marrom”, criado nos EUA no final do século 19 por Handolph Hearst e Joseph Pulitzer. Através de artigos sensacionalistas, Chatô pressionou governos e empresários, arrancando benesses públicas e anúncios publicitários [5]. Seu império midiático foi erguido com base na corrupção ativa. “Chatô fez tudo isso usando estritamente o dinheiro dos outros e os favores do Estado. Ele foi amigo de todos os presidentes: sentia-se dono do Brasil, ou o ‘rei’, como prefere Fernando Morais em sua biografia de Chatô, talvez para enfatizar as arbitrariedades e o absolutismo desse barão da imprensa tupiniquim” [6].

Anarquistas, comunistas e Última Hora

No conturbado período histórico que antecedeu o golpe de 1964, a imprensa ainda não havia se consolidado como poderosa indústria monopolista. Na tardia formação do capitalismo nacional, o jovem movimento operário e sindical investiu na luta de idéias e construiu veículos próprios. Os anarquistas, hegemônicos nesta fase, editaram jornais com expressiva tiragem, concorrendo com os veículos burgueses. Estudos apontam a existência de mais de 500 jornais operários desde o surgimento das primeiras oficinas até a revolução de 1930. O primeiro deles foi o Jornal dos Tipógrafos, criado no Rio de Janeiro, em 1858, como decorrência da primeira greve no país.

Com a crise do anarquismo e a fundação do Partido Comunista, em 1922, “a imprensa anarquista perde espaço e o seu lugar é assumido pela imprensa comunista. Esta será a principal ferramenta de disputa ideológica e política com a nova burguesia industrial e as velhas oligarquias”, explica Vito Giannotti. “Em 1946, os comunistas tinham, em quase todos os estados, vários jornais. Oito eram diários: Tribuna Popular (RJ), Jornal do Povo (PE), Hoje (SP), Momento (BA), Democrata (CE), Folha do Povo (PE), Tribuna Gaúcha e Folha Capixaba... Nos subúrbios da capital, no Rio de Janeiro, era comum encontrar brigadas de comunistas vendendo a Tribuna Popular. Entre eles estavam comunistas ilustres, como Oscar Niemeyer, Gregório Bezerra e Graciliano Ramos” [7]. Foi a segunda maior rede de jornais diários do país, superada apenas pelos Diários Associados.

A imprensa anarquista e comunista, porém, foi sempre barbaramente perseguida. Jornalistas e gráficos de esquerda foram presos e assassinados e seus jornais foram empastelados. Para conter o avanço das idéias socialistas, o governo autoritário do general Eurico Gaspar Dutra cassou, em 7 de maio de 1947, o registro legal do Partido Comunista do Brasil – que teve curtos suspiros de vida legal neste período da história. Em 10 de maio de 1948, também cassou o mandato de todos os parlamentares comunistas – um senador, 14 deputados federais e 46 deputados estaduais. Seus jornais foram fechados e 15% dos sindicatos reconhecidos oficialmente sofreram intervenção.

Além destes veículos anticapitalistas, um jornal disputou a hegemonia neste período com as suas idéias nacionalistas – a Última Hora. Criado em 1951 por Samuel Wainer, um judeu nascido na Bessarábia (região situada entre a Romênia e a Ucrânia), o jornal inovou com reportagens vivas, diagramação criativa e um time qualificado de jornalistas. Ele cresceu rapidamente e montou sua rede nacional, com edições em várias capitais. Getúlio Vargas, acossado pela imprensa golpista, investiu pesado neste veículo, reunindo o apoio de empresários nacionalistas, como o banqueiro Walter Moreira Sales e os industriais Francisco Matarazzo e Ricardo Jafet. Instituições estatais, como o Banco do Brasil, também participaram do consórcio que financiou a Última Hora.

A “oligarquia da grande imprensa”, como atacava Wainer, não deu trégua ao concorrente. Chatô, Roberto Marinho e Carlos Lacerda, dono da golpista Tribuna de Imprensa, usaram o artigo 160 da Constituição, que proibia estrangeiros de serem donos de jornais, para exigir o fechamento da Última Hora. Em 1953, eles arrancaram a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a origem e o financiamento do jornal. Wainer se defendeu num documento intitulado “O livro branco da imprensa amarela”, mas chegou a ser preso. O suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, levou multidões às ruas e fez a Última Hora vender 700 mil exemplares. Na seqüência, o jornal deu irrestrito apoio a João Goulart até sua deposição em 1964.

Uma das primeiras ações dos generais golpistas foi cassar os direitos políticos de Samuel Wainer, que se exilou na Europa. Outros veículos nacionalistas e de esquerda, como A Classe Operária, fundado em 1925, também foram fechados. O regime militar uniformizou a imprensa brasileira. Somente a mídia conservadora, de direita, pôde prosperar. Nos primeiros anos da brutal ditadura, prevaleceu o clima da “paz dos cemitérios”. A liberdade de expressão, e não a falsa “liberdade de imprensa” dos empresários do setor, foi suprimida com truculência. Aos poucos, organizações e jornalistas progressistas reuniram força e coragem para erguer a heróica imprensa alternativa, com jornais como O Pasquim, Opinião e Movimento [8].


NOTAS

1- “Wanderley Guilherme dos Santos analisa a crise”. Entrevista para Maurício Dias. Revista Carta Capital, 17/06/05.

2- Maria de Lourdes Eleutério. “A imprensa a serviço do progresso”. História da imprensa no Brasil. Editora Contexto, SP, 2008.

3- Ler o artigo “A morte do ‘democrata’ Octavio Frias”, na página ??? deste livro.

4- “Meias verdades”. Retrato do Brasil. Editora Manifesto, MG, 2006.

5- Ana Maria de Abreu Laurenza. “Batalhas em letra de fôrma: Chatô, Wainer e Lacerda. História da imprensa no Brasil. Editora Contexto, SP, 2008.

6- Bernardo Kucinski. “Chatô: o poder da chantagem”. Revista Teoria&Debate, março/abril de 1995.

7- Vito Giannotti. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. Editora Mauad, RJ, 2007.

8- José Carlos Ruy. “Alternativos: imprensa de resistência”. Revista Princípios, agosto de 2007.


- Extraído do quarto capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Quem desejar adquirir o livro, entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O coronelismo eletrônico no Brasil (9)

A ausência de regras contrárias à monopolização decorre da influência da mídia, que agenda a pauta política, sataniza os adversários e atemoriza os críticos, e também da promiscuidade nas relações com o poder público. Na lógica patrimonialista vigente no país, instituiu-se um tipo coronelismo eletrônico que atrela setores do Executivo e Legislativo às redes de comunicação. Apesar de a Constituição proibir quem estiver no “exercício de mandato eletivo” de ocupar funções de diretor ou gerente de empresa concessionária de rádio e TV, esta distorção se alastrou no país, tornando ainda mais difícil o regramento do setor. A mídia está incrustada no poder.

O finado Antônio Carlos Magalhães, ministro das Comunicações do governo José Sarney, foi um poderoso empresário do setor. A TV Bahia, retransmissora da TV Globo, não era, formalmente, do senador ACM, mas a gerente da emissora era Arlete Maron, mulher do parlamentar, e os seus filhos e netos detêm o grosso das ações da empresa [12]. O próprio ex-presidente José Sarney é forte na área de comunicação. Ele não é dono da TV Mirante, também afiliada da Rede Globo, mas os seus três filhos são sócios da empresa. Mesmo o ministro das Comunicações do governo Lula, Hélio Costa, tem vínculos com o setor, como acionista de canais de rádio e televisão em Barbacena, interior de Minas Gerais, e como ex-funcionário graduado da TV Globo.

“O vínculo entre radiodifusão e política é um fenômeno fortemente arraigado na cultura e prática política brasileira que perpassa os tempos da ditadura e os tempos da democracia” [13]. Nos dias finais do regime militar, o general João Batista Figueiredo assinou 91 decretos de concessões de canais de radiodifusão. Já José Sarney, o primeiro presidente civil pós-ditadura, bancou 1.028 outorgas. Dos agraciados, 92,3% (84 constituintes) retribuíram sua “gentileza” aprovando o presidencialismo e 90,1% (82) votaram na ampliação do mandato para cinco anos. “Na era FHC, foram autorizadas 1.848 licenças de RTV, repetidoras de televisão, sendo que 268 para entidades ou empresas controladas por 87 políticos, todos favoráveis à emenda da reeleição” [14].

Esta relação promíscua persiste até hoje. Pesquisa realizada em 2005 comprova que 40 geradoras filiadas à TV Globo (39,6% do total), 128 de todas as emissoras de TV (36,6%) e 1.765 de todas as retransmissoras de televisão do país (18,03%) eram controladas, direta ou indiretamente, por políticos. Outro estudo revela que um terço dos senadores e mais de 10% dos deputados federais eleitos para o quadriênio 2007-2010 controlam concessões de radiodifusão. Dos 76 deputados da atual Comissão de Ciência e Tecnologia, que discute os projetos do setor, 16 participam direta ou indiretamente do capital de alguma empresa da área de comunicação. Foi constituída, inclusive, uma Frente Parlamentar da Radiodifusão, que é composta por 171 deputados e 15 senadores.

Através deste poderoso lobby, os “barões da mídia” conseguem novas concessões, reforçando as teias da propriedade cruzada, além de fartos subsídios dos poderes públicos. No reinado de FHC, iludidas com a paridade dólar-real e animadas com o pretenso potencial da TV paga, as empresas do setor foram beneficiadas pelos recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Na seqüência, quase todas afundaram na crise, principalmente a TV Globo. Já no governo Lula, elas tentaram emplacar um programa especial do BNDES, o Pró-Mídia, que foi barrado pelo ex-presidente do órgão, Carlos Lessa – não por acaso, um dos alvos prediletos das emissoras de TV e dos jornalões [15]. Apesar da derrota parcial, as poderosas empresas do setor continuam mamando nos cofres do Estado, apesar do discurso contra os “gastos públicos” [16].

Os desafios da convergência digital

Como se nota, há no Brasil uma autêntica ditadura da mídia, com longa história de concentração, ramificações em todos os recantos da República e enorme capacidade de atuação. Este poder, no entanto, não é imbatível. Ele sofre crescentes questionamentos da sociedade e também padece de inúmeras contradições internas. Os avanços tecnológicos no setor, com o processo acelerado de convergência digital, afetam o status quo nesta área estratégica. Sem maior alarde, está em curso no submundo do capital um violento confronto entre as empresas de radiodifusão, “nacionais”, e as poderosas operadoras de telefonia, a maioria de capital estrangeiro.

“O duelo entre as emissoras de tevê e as operadoras de telefonia pela supremacia no futuro das comunicações se assemelha a uma briga entre Davi e Golias... As redes televisivas simbolizam um modelo posto em xeque pelos avanços tecnológicos. Juntas, elas movimentaram cerca de R$ 19 bilhões em 2006, cinco vezes menos que as telefônicas, cuja receita passa dos R$ 100 bilhões. Enquanto as emissoras mantêm a estrutura familiar de controle, enfrentam enormes dificuldades para captar dinheiro e assistem à chegada de novos competidores, como a internet, as operadoras pertencem a grandes grupos nacionais e estrangeiros, negociam ações nas bolsas de valores e obtêm linhas volumosas de crédito do BNDES e no mercado financeiro” [17].

Para contrabalançar o poder econômico das operadoras de telefonia, as empresas de radiodifusão contam com enorme capacidade de pressão política. A “bancada da comunicação” no parlamento é numerosa e ativa. Além disso, as redes nacionais de mídia têm presença assegurada no Palácio do Planalto, através do próprio ministro das Comunicações, e exercem forte poder de influência sobre a chamada opinião pública. Diante do poderio econômico das multinacionais, uma parcela das empresas nacionais de radiodifusão também já se associa ao capital estrangeiro, acelerando o perigoso processo de desnacionalização do setor estratégico das comunicações.

“Inabalável até a virada do século, a hegemonia exercida pelas cinco redes nacionais de televisão e seus grupos afiliados encontrou um adversário de peso viabilizado pela digitalização do setor... A entrada em cena dos grandes conglomerados mundiais de comunicação e telecomunicações, proporcionada pela alteração constitucional que permitiu o controle total ou parcial de setores por sócios estrangeiros, junto com o surgimento de novas mídias, vem transformando substancialmente o modelo de financiamento do mercado de comunicações. De uma hora para outra, as mídias tradicionais passaram a dividir o bolo publicitário com operadores de TVs pagas, provedores de internet e até guias e listas”. Em seis anos, a soma da verba investida em internet e na TV paga saltou de 1,69% para 5,07%, superando as rádios e aproximando-se das revistas [18].

Esta briga de titãs deve definir o futuro da mídia brasileira. O que está em jogo é quem comandará o lucrativo negócio das comunicações quando estiver concluído o processo de digitalização. Em poucos anos, não haverá muita diferença entre TV aberta ou a cabo, telefones fixos ou celulares e terminais de computadores. Prevendo este enorme potencial de lucros, as operadoras estrangeiras de telefonia querem produzir e distribuir conteúdos audiovisuais. Já as empresas de radiodifusão, que tanto atacaram a Constituição e pregaram a internacionalização da economia, agora afirmam que o texto constitucional proíbe a invasão das teles. O seu discurso nacionalista, em defesa da cultura brasileira, evidentemente soa falso, mas o temor com a desnacionalização é procedente.

Esta batalha está sendo travada a cada instante. Ela, inclusive, está na raiz da própria convocação da Conferência Nacional de Comunicação. Teles e empresas de radiodifusão tentarão resolver as suas pendengas, inclusive com a possibilidade de inusitadas alianças. A preocupação de ambas, porém, nada tem a ver com a urgência da democratização dos meios de comunicação. Para o capital, o que importa é o lucro. Caso as forças organizadas da sociedade, os movimentos sociais e os partidos de esquerda, não interfiram nesta contenda, teles e radiodifusores apenas dividirão o botim, reforçando a concentração e o poder de manipulação da ditadura midiática.


NOTAS


12- Leandro Fortes. “O poder que emana da tela”. Revista Carta Capital, 14/03/07.

13- Venício A. de Lima e Cristiano Aguiar Lopes. “Rádios Comunitárias: coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)”. Revista Carta Capital, agosto de 2007.

14- Israel Fernando Bayma. “A concentração da propriedade dos meios de comunicação e o coronelismo eletrônico no Brasil”. Texto da assessoria técnica da bancada do PT, 27/11/01.

15- Tânia Caliari. “O negócio da notícia”. Revista Retrato do Brasil, setembro de 2006.

16- Hamilton Octavio de Souza. “Dinheiro público para a concentração privada”. Jornal Brasil de Fato, 07/07/07.

17- Ana Paula Sousa e Sérgio Lírio. “O ringe está pronto”. Revista Carta Capital, 14/03/07.

18- James Görgen. “Apontamentos sobre a regulação dos sistemas e mercados de comunicação no Brasil”. Democracia e regulação dos meios de comunicação de massa. Editora Fundação Getúlio Vargas, SP, 2008.


- Extraído do terceiro capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir seu exemplar, entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Desnacionalização da mídia no Brasil (8)

Na fase mais recente, sob a égide do neoliberalismo, outro perigo passou a rondar os meios de comunicação – o da sua total desnacionalização. Desde a aprovação da Emenda Constitucional 36/2002 e de sua regulamentação pela Lei 10.610, de dezembro de 2002, o capital estrangeiro foi autorizado a adquirir até 30% das ações das empresas do ramo. Já a Lei da TV a Cabo permite o ingresso do capital externo em até 49% e as normas que regem a telefonia fixa e celular e a TV paga em MMDS (via microondas) e em DTH (satélite) não fixam qualquer proteção ao mercado interno. Esta invasão ameaça a produção cultural brasileira, torna a mídia mais vulnerável às manipulações das corporações mundiais e tende a agravar ainda mais a concentração no setor.

Na prática, a desnacionalização já está em curso e relativiza o discurso nacionalista das empresas de radiodifusão, que afirmam temer as operadoras de telefonia no processo da digitalização. “A Globo negociou a venda da Net Serviços (a operadora do grupo) à Telmex, de propriedade do homem mais rico da América, o mexicano Carlos Slim Helu. Helu é dono, no Brasil, da empresa de telefonia celular Claro, da Embratel e da antiga AT&T Latin... A Telmex passa a controlar diretamente 37,5% das ações da Net Serviços e, indiretamente, através da GB, mais 24,99%. Ou seja, ainda que não tenha formalmente o controle da Net Serviços, a Telmex fica com 62,49% das ações ordinárias (com direito a voto) da Net Serviços. E a Globo apenas com 24,99%” [10].

O mesmo já ocorre em outras empresas do setor. Em julho de 2004, a Abril anunciou a venda de 13,8% de suas ações para a Capital International, gestora de fundos de investimentos dos EUA. Já em maio de 2006, ela comunicou “a sociedade com o grupo de mídia sul-africano Naspers, que passa a ter 30% do capital do grupo, adquirido por US$ 422 milhões... É o maior investimento no exterior feito pela Naspers. O negócio tem o respaldo na emenda constitucional de 2002... O acordo envolve a holding Abril S/A, integrada pela Editora Abril, as editoras Ática e Scipione e a TVA”. Vale registrar que a Naspers foi erguida durante o regime de apartheid na África do Sul; três dos seus executivos governaram o país nos períodos mais sangrentos do racismo.

A desnacionalização também atinge a publicidade. Em 1989, entre as dez maiores agências do país, somente quatro eram multinacionais. Em 2004, apenas duas delas continuavam nas mãos de empresas nacionais. Já no setor de TVs por assinatura, a invasão já está quase completa. Em maio de 2006, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) aprovou a compra da operadora de televisão por satélite (DTH) DirecTV, da Hughes Eletronics Corporation, por outra operadora de DTH, a Sky, uma associação entre a News Corporation e a Rede Globo. Com essa fusão, o novo grupo passou a controlar 77% do mercado brasileiro de TVs pagas.

Ausência de legislação reguladora

O processo de concentração da mídia no Brasil, um dos mais vertiginosos do planeta, só vingou devido à total fragilidade da legislação sobre o setor. Desde as normas que iniciaram a regulação da radiodifusão na década de 1930 (decretos 20.047/1931 e 21.111/1932), passando pelo Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962 (Lei nº. 4.137), até a Lei da TV a Cabo de 1995 (Lei nº 8.977), nunca houve barreiras à monopolização. Os “barões da mídia”, cada vez mais poderosos economicamente e influentes politicamente, sabotaram todas as medidas reguladoras. Sob o falso pretexto da “liberdade de imprensa”, eles praticaram a “liberdade dos monopólios”.

Resultado do avanço das lutas democráticas, a Constituição de 1988 até fixou normas para evitar tais distorções. O parágrafo quinto do artigo 220 fixou que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. O parágrafo segundo do artigo 221 definiu como princípio das emissoras de rádio e TV “a promoção da cultura nacional e regional e o estímulo à produção independente”. O artigo 222 determinou que “a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão é privativa de brasileiros natos ou naturalizados”. O artigo 223 fixou “o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal” e o artigo 224 instituiu o Conselho de Comunicação Social para fiscalizar a aplicação destes preceitos.

A Constituinte foi palco de encarniçadas disputas. A “bancada da comunicação”, composta por concessionários de radiodifusão e formada por 146 parlamentares (26,1% dos 559 constituintes), fez de tudo para evitar mudanças no setor. No outro extremo, os movimentos sociais e partidos progressistas fincaram a bandeira da democratização da mídia. A Frente Nacional de Luta por Políticas Democráticas de Comunicação apresentou emenda popular, em 1987, com uma proposta avançada de redação para o capítulo da Comunicação Social. Prova do caráter estratégico desta batalha, os cinco capítulos sobre o tema foram os últimos a serem acordados, mas ficaram com redações genéricas, dependentes de futura regulamentação.

“A Constituição de 1988 estabeleceu uma situação singular em relação à institucionalidade dos sistemas de comunicação: consolidou os privilégios dos grandes grupos instalados no país, mas também deixou lacunas que dependem da legislação ordinária, abrindo a possibilidade de profundas transformações na organização do sistema de comunicação. No entanto, a correlação de forças que assegurou esses privilégios e travou os avanços da Constituição não se alterou e permanece desfavorável. Em alguns aspectos, a situação atual é ainda mais desfavorável em decorrência da conjuntura aberta pela eleição de Collor de Mello para a Presidência”, registrou, na época, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) [11].

Se fossem aplicados, os preceitos constitucionais poderiam até coibir a concentração e evitar a desnacionalização. Mas nenhum deles foi regulamentado e, portanto, nunca foram aplicados. No reinado entreguista de FHC, uma emenda ainda adulterou a Constituição, permitindo o ingresso de multinacionais. Além disso, a Lei Geral de Telecomunicações e a criação da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) consolidaram a separação entre os serviços de radiodifusão e de telecomunicações, garantindo a privatização do setor e inviabilizando qualquer regulação. Já o Conselho de Comunicação Social só foi instalado em 2002, mas seu funcionamento é precário.


NOTAS

10- Gustavo Gindre. “Globo: discurso nacionalista, negócios nem tanto”. Observatório da Imprensa, 21/01/06.

11- “Proposta dos jornalistas à sociedade civil”. Federação Nacional dos Jornalistas, 1991.

- Extraído do terceiro capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir seu exemplar, entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Os latifundiários da mídia no Brasil (7)

“O sistema brasileiro de mídia, além de historicamente concentrado, é controlado por poucos grupos familiares, é vinculado às elites políticas locais e regionais, revela um avanço sem precedentes das igrejas e é hegemonizado por um único grupo, as Organizações Globo”. Venício A. de Lima, autor do livro “Mídia: crise política e poder no Brasil”


“Temos uma pequena televisão, uma das menores, talvez, da Rede Globo. E por motivos políticos. Se não fôssemos políticos, não teríamos necessidade de ter meios de comunicação”. Senador José Sarney.


O processo de concentração dos meios de comunicação no Brasil teve suas marcas distintivas e resultou numa mídia altamente elitista e impermeável, ligada às oligarquias familiares e às forças políticas de direita e que sempre usurpou das benesses públicas, numa espécie de “coronelismo eletrônico”. Desde o nascimento do primeiro jornal, o Correio Braziliense, publicado em 1808 e redigido em Londres devido à censura do império português, os veículos de comunicação foram sendo incorporados à lógica monopolista do capital, causando já em meados do século passado a extinção da “figura mítica do jornalismo”, descrita no clássico de Nelson Werneck Sodré [1].

Diferentemente da Europa, que investiu num sistema público de radiodifusão, o Brasil copiou o modelo privado dos EUA, mas sem as ressalvas legais vigentes neste país desde 1943, que coibiram os monopólios e que só foram extintas no reinado neoliberal de Bush. A ausência de legislações reguladoras e a relação promíscua com o Estado permitiram um tipo sui generis de concentração com a chamada propriedade cruzada, na qual os “donos da mídia” garantem a posse de diferentes meios – jornais, revistas, rádios, televisão, internet. No Brasil, o modelo privado e a propriedade cruzada resultaram numa mídia extremamente concentrada e historicamente antidemocrática.

De Chateaubriand a Marinho

Até meados do século passado, ainda prevalecia certa diversidade na artesanal mídia impressa do país. Levantamento do Departamento Nacional de Estatísticas, de 1931, registrou a existência de 2.959 jornais e revistas – sendo 524 no Rio Janeiro e 702 em São Paulo. Não havia veículos de expressão nacional num território de dimensões continentais. Os jornais pertenciam às pequenas empresas. No início da rádio, nos anos 1920, a pulverização também predominou. Aos poucos, aproveitando-se da ausência de normas restritivas à propriedade cruzada, alguns donos de jornais adquiriram rádios e montaram departamentos de publicidade. “Na proporção e no ritmo em que se desenvolvem as relações capitalistas, desenvolveu-se a empresa jornalística”, explica Sodré.

A ascensão dos Diários Associados marca o colapso da fase concorrencial. Assis Chateaubriand será o primeiro barão da mídia no país. Ele ingressa no setor com a compra do pequeno O Jornal do Rio de Janeiro, em 1924. Utilizando-se das brechas legais e com seus métodos agressivos da chantagem e do jornalismo denuncista, ele rapidamente prosperou. Em 1959, Chatô já era dono do maior império jornalístico da América Latina, com 40 jornais e revistas, mais de 20 estações de rádio, uma dezena de emissoras de televisão, uma agência de notícias e outra de publicidade – “além de um castelo na Normandia, nove fazendas espalhadas por quatro estados, de indústrias químicas e laboratórios farmacêuticos”, segundo balanço do Atlas da Fundação Getúlio Vargas.

A ausência de “herdeiros legítimos” e, principalmente, o golpe militar de 1964 abalaram o poder dos Diários Associados [2]. Chatô é desbancado pelas Organizações Globo, que passam a deter a total hegemonia até os dias atuais. Irineu Marinho também estreou num pequeno jornal, A Noite, fundado em 1911. A partir dos anos 20, o grupo estendeu os seus tentáculos às rádios. Mas a sua ascensão ocorre, de fato, com a criação da TV Globo, em 1965. Ela é beneficiada pela ditadura militar, que ergue toda a estrutura de telecomunicações para garantir a “segurança nacional”. O regime militar também foi cúmplice de várias negociatas do grupo, como na obscura associação com a multinacional estadunidense Time-Life, o que era proibido pela legislação em vigor [3].

A ditadura cristaliza a concentração da mídia. “O projeto de integração nacional, perseguido pelo regime militar, adquiriu materialidade nas redes de televisão e encontrou sua melhor tradução no modelo constituído pela Rede Globo. Ao longo de quase quatro décadas, enquanto expandiam-se país adentro, com a patriótica missão que lhes foi atribuída, as redes de tevê aberta forjaram um mapa do Brasil baseado nos interesses políticos e comerciais privados dos seus proprietários... O resultado foi a criação de um Brasil refém das grandes empresas da mídia, imunes a qualquer forma de controle público, comandados de forma vertical e sustentados em alianças regionais que reproduzem e amplificam idéias, concepções e valores para 170 milhões de habitantes” [4].

No mesmo período, outro grupo fincou os alicerces do seu império. Victor Civita, filho de italianos, nascido nos EUA, muda-se para o Brasil em 1949 trazendo na sua bagagem um sinistro acordo com a empresa Disney. Em 1950, ele lança as tiras do Pato Donald e logo desbanca todos os concorrentes no mercado das revistas infantis. Na sequência, ele ingressa no lucrativo negócio das fotonovelas e investe na segmentação com revistas de moda, automóveis, turismo e outras. “Fiel à sua intuição para as oportunidades inéditas, Civita decidiu que São Paulo seria sua sede. ‘Era onde estava o dinheiro’, dizia”, relata um texto bajulatório [5]. Após consolidar seu império, que inclui a maior distribuidora em bancas, o Grupo Abril lança a revista Veja em 1968.

Além destes, outros veículos se projetaram, como o jornal O Estado de S.Paulo. Criado em 1875, com o nome de Província de S.Paulo, ele é fruto “da aliança entre as elites rurais e a burguesia ascendente” e nunca escondeu seu perfil conservador [6]. O jornal do clã Mesquita será o porta-voz da elite paulista desde o fracassado levante militar da oligarquia cafeeira em 1932. A Folha, fundada em 1921 e durante décadas um jornal provinciano, só ganhará fama após o golpe militar de 64. Comprado em 1962 por Carlos Caldeira e Octávio Frias de Oliveira, metido em negócios obscuros, como a Rodoviária Júlio Prestes, na capital paulista, o grupo vai prosperar na ditadura. A Folha da Tarde será o jornal de maior tiragem do país graças ao número de tiras (policiais) na sua redação [7].

Quadro atual da monopolização

A ausência de uma legislação proibitiva da propriedade cruzada, o desrespeito à Constituição e às tímidas leis reguladoras, o respaldo da ditadura militar, as relações promiscuas com o Estado e a própria lógica monopolista do capitalismo, entre outros fatores, explicam a brutal concentração da mídia. Na década passada, nove famílias dominavam o setor: Marinho (Globo), Abravanel (SBT), Saad (Bandeirantes), Bloch (Manchete), Civita (Abril), Mesquita (Estado), Frias (Folha), Levy (Gazeta) e Nascimento e Silva (Jornal do Brasil). Hoje são apenas cinco, já que as famílias Bloch, Levy e Nascimento faliram e o clã Mesquita atravessa uma grave crise financeira.

Na original classificação de Daniel Herz, fundador do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), quatro “times” operam na mídia nacional. O “primeiro time” é composto pelos “cabeças-de-rede”, geradores de programação nacional, incluindo as principais emissoras de TV, a Editora Abril e os jornais Estadão e Folha. O “segundo time” inclui grupos regionais e nacionais com certo alcance, como o Jornal do Brasil e a RBS do Rio Grande do Sul. O “terceiro time” é formado por emissoras regionais afiliadas às redes nacionais de TV; já o “quarto time” inclui milhares de pequenas e frágeis empresas de comunicação [8]. Na fase recente, também despontaram algumas emissoras de origem religiosa, como a TV Record, da Igreja Universal.

As Organizações Globo, porém, ainda preservam avassaladora hegemonia no setor, como atesta o mais recente relatório do projeto “Donos da Mídia”: “São 35 grupos afiliados que controlam, ao todo, 340 veículos. Sua influência é forte não apenas no setor de TV. A relação com empresas em todos os Estados permite que o conteúdo gerado pelos 69 veículos próprios do grupo carioca seja distribuído por um sistema que inclui 33 jornais, 52 rádios AM, 76 rádios FM, 11 rádios OC, 105 emissoras de TV, 27 revistas e 17 canais e nove operadoras de TV paga. Além disso, a penetração de sua rede é reforçada por um sistema que inclui 3.305 retransmissoras” [9].

Disputando o segundo lugar entre as redes nacionais encontra-se a SBT. “A rede controlada pelo Sistema Brasileiro de Televisão, do empresário Sílvio Santos, foi criada a partir do espólio da extinta Rede Tupi, fundada por Assis Chateaubriand na década de 1950. O primeiro canal no Rio de Janeiro, chamado TVS, foi assumido pelo grupo já em 1976, mas apenas em 1981 o governo militar entregou as concessões que permitiram a formação da rede nacional. Em pouco tempo, o SBT tornou-se a segunda maior rede de TV do país, título que divide hoje com a Rede Record. O SBT possui relação com 195 veículos no Brasil, tendo 37 grupos afiliados. A distribuição da programação para todo o país é garantida por suas 1.441 retransmissoras”.

Já a Rede Record, que hoje está vinculada à Igreja Universal do Reino de Deus, “entrou no ar em 1953. De lá para cá, sua história foi de altos e baixos (sucessos, crises, incêndios), mas a partir da década de 1990 a emissora inicia um processo de reformulação de sua programação. Atualmente, ela já é considerada a vice-líder em audiência em todo o país, apesar de ser a quarta em número de afiliados. Para alcançar a vice-liderança vale destacar a expansão territorial, os investimentos em produções próprias (novelas, reality shows), em esporte e em jornalismo de qualidade... São 30 grupos afiliados à Rede Record, controlando direta e indiretamente 142 veículos. O seu sinal está presente em todo o Brasil por meio de 870 retransmissoras”.

Além destas redes, o projeto “Donos da Mídia” dá destaque ao império da família Civita. “Desde sua fundação, em 1950, a Abril vem se mantendo como a primeira empresa do mercado editorial do Brasil. O grupo emprega hoje 7.440 pessoas e é composto pelas seguintes empresas: Editora Abril (revistas), Abril Digital, MTV, FIZ TV e Canal Ideal (TVs segmentadas), TVA (parceria estratégica com a Telefônica), além das Editoras Ática e Scipione... Sete das dez revistas mais lidas no país são da Abril, sendo a Veja a quarta maior revista semanal de informação do mundo e a maior fora dos Estados Unidos. A Abril também detém a liderança do mercado brasileiro de livros escolares”, além de monopolizar o sistema de distribuição das publicações em bancas.


NOTAS

1- Nelson Werneck Sodré. História da imprensa no Brasil. Editora Maud, RJ, 2007, 4ª edição.

2- Ana Maria Laurenza. “Batalhas em letra de forma: Chatô, Wainer e Lacerda”. História da imprensa no Brasil. Ana Luiza Martins e Tânia de Luca (orgs.). Editora Contexto, SP, 2008.

3- Valério Brittos e César Bolãno (orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. Editora Paulus, SP, 2005.

4- “Quem são os donos”. Relatório do Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação. Revista Carta Capital, 06/03/02.

5- Thomaz Souto Corrêa. “A era das revistas de consumo”. História da Imprensa no Brasil, 2008.

6- Maria de Lourdes Eleutério. “Imprensa a serviço do progresso”. História da Imprensa no Brasil, 2008.

7- Beatriz Kushnir. Cães de guarda – Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Boitempo Editorial, São Paulo, 2004.

8- Luiz Egypto. “Quem são os donos da mídia no Brasil”. Observatório da Imprensa, 24/04/02.

9- O projeto “donos da mídia” monitora do setor e foi idealizado pelo jornalista Daniel Herz. As informações são sempre atualizadas. Consultar o endereço: www.donosdamidia.com.br


- Extraído do terceiro capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir seu exemplar, entrar em contato com Eliana Ada no endereço eletrônico – livro@vermelho.org.br