Por Gustavo Freire Barbosa, no site Outras Palavras:
“Por direito à alimentação entende-se o direito de todo o ser humano a ter um acesso regular a uma alimentação suficiente, adequada no plano nutricional e culturalmente aceitável, para ter uma vida sã e ativa”. É desta forma que a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO –, define o direito à alimentação, deixando claro que comer adequadamente abrange tanto a dimensão quantitativa – comer o suficiente para ficar em pé – como a qualitativa – consumir alimentos que não causem danos à saúde.
Os direitos humanos são geralmente definidos como a expressão do núcleo inegociável da dignidade humana, decorrendo tão somente do fato de seus portadores e portadoras se enquadrarem no gênero humano independente de nacionalidade, cor, gênero e orientação sexual. Basta, portanto, ser gente para que se possa reivindicá-los.
As lutas por direitos humanos se confundem com as conquistas civilizatórias que consagram seu reconhecimento em nível institucional. Não por menos, uma de suas características é exatamente a historicidade, ou o fato de serem reconhecidos na esteira das lutas históricas. Da liberdade de expressão ao direito à moradia. Da liberdade de associação ao próprio direito à alimentação.
O que dizer, então, da recente aprovação por comissão especial da Câmara dos Deputados de projeto de lei que libera ainda mais a utilização de agrotóxicos? Note-se que o fato de instituições como a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), a Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC), o Ministério Público Federal, o IBAMA, a ANVISA, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) e a ONU terem se posicionado categoricamente contra a aprovação do projeto não foi suficiente para sensibilizar os congressistas a zelar pelo direito humano à alimentação adequada, consagrado não apenas pelas Nações Unidas, mas também pela própria Constituição em seu artigo 6º.
A falta de controle no uso, produção e comercialização de agrotóxicos em nosso país não é novidade. Desde 2008 o Brasil ocupa o posto de líder mundial no consumo de agrotóxicos. O governo brasileiro também concede a redução de 60% do ICMS e a isenção total do PIS/COFINS e do IPI à produção e comércio de pesticidas. Há mais benefícios fiscais para agrotóxicos que para medicamentos. Tal frouxidão fez com que produtores de substâncias proibidas na União Europeia tenham escoado sua produção para o Brasil, considerado por especialistas o paraíso dos agrotóxicos.
Além da constitucionalização do direito à alimentação, há no Brasil a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), que aponta diretamente para a completa impossibilidade de que agrotóxicos sejam liberados no nível que se pretende. Como é possível, mesmo diante de tamanhas restrições institucionais, que um projeto como este esteja avançando rumo à sua provável aprovação?
Os lírios não nascem das leis, alertou Carlos Drummond de Andrade. Konrad Hesse, jurista alemão, concorda com Drummond. Segundo ele, as formas políticas se movem independentemente das formas jurídicas. Numa sociedade dividida em classes sociais, onde a produção da riqueza coletivamente produzida gravita em torno da exploração do trabalho alheio e de sua acumulação privada, não é a lei que vai mudar esta realidade.
Em Sobre a Questão Judaica, Marx questiona se o que desejamos de fato é a emancipação política, expressa pelo reconhecimento de direitos pelas vias legais, ou a emancipação humana, radical, concreta e efetiva. Ao trazer esta problemática, Marx – que reconhece a importância das conquistas institucionais, não as enxergando, contudo, como o teto das lutas políticas – expõe os limites e contradições das democracias liberais e do próprio modo de produção capitalista, que cria potenciais emancipatórios ao mesmo tempo em que impossibilita que sejam entregues.
No campo da alimentação, por exemplo, é possível identificar esta contradição com bastante clareza. Existe hoje tecnologia suficiente para alimentar, sem o uso de agrotóxicos, uma população consideravelmente superior à do planeta, promessa que não é atingida em razão dos frutos desta tecnologia estarem presos no cativeiro da sede predatória por lucro. O resultado disso é uma assustadora quantidade de pessoas ainda hoje morrendo de fome e padecendo dos males causados pelo consumo de agrotóxicos.
Evguiéni Pachukanis, jurista soviético morto nos processos de Moscou, afirma que o projeto de construir um edifício não pode ser considerado o edifício real, pois se o projeto não sair do papel não podemos afirmar que o edifício foi construído. Se a democracia é definida também como o respeito à constituição e este respeito é impossibilitado pelos propósitos da acumulação, será que realmente estamos numa democracia?
A resposta a tal pergunta nos leva mais uma vez à questão da emancipação política e da emancipação humana, da escolha entre aparência ou essência, fantasia ou realidade. “Não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempos de desordem sangrenta, de confusão inconsciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar”, nos ensinou Brecht.
É bom que não esqueçamos.
“Por direito à alimentação entende-se o direito de todo o ser humano a ter um acesso regular a uma alimentação suficiente, adequada no plano nutricional e culturalmente aceitável, para ter uma vida sã e ativa”. É desta forma que a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO –, define o direito à alimentação, deixando claro que comer adequadamente abrange tanto a dimensão quantitativa – comer o suficiente para ficar em pé – como a qualitativa – consumir alimentos que não causem danos à saúde.
Os direitos humanos são geralmente definidos como a expressão do núcleo inegociável da dignidade humana, decorrendo tão somente do fato de seus portadores e portadoras se enquadrarem no gênero humano independente de nacionalidade, cor, gênero e orientação sexual. Basta, portanto, ser gente para que se possa reivindicá-los.
As lutas por direitos humanos se confundem com as conquistas civilizatórias que consagram seu reconhecimento em nível institucional. Não por menos, uma de suas características é exatamente a historicidade, ou o fato de serem reconhecidos na esteira das lutas históricas. Da liberdade de expressão ao direito à moradia. Da liberdade de associação ao próprio direito à alimentação.
O que dizer, então, da recente aprovação por comissão especial da Câmara dos Deputados de projeto de lei que libera ainda mais a utilização de agrotóxicos? Note-se que o fato de instituições como a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), a Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC), o Ministério Público Federal, o IBAMA, a ANVISA, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) e a ONU terem se posicionado categoricamente contra a aprovação do projeto não foi suficiente para sensibilizar os congressistas a zelar pelo direito humano à alimentação adequada, consagrado não apenas pelas Nações Unidas, mas também pela própria Constituição em seu artigo 6º.
A falta de controle no uso, produção e comercialização de agrotóxicos em nosso país não é novidade. Desde 2008 o Brasil ocupa o posto de líder mundial no consumo de agrotóxicos. O governo brasileiro também concede a redução de 60% do ICMS e a isenção total do PIS/COFINS e do IPI à produção e comércio de pesticidas. Há mais benefícios fiscais para agrotóxicos que para medicamentos. Tal frouxidão fez com que produtores de substâncias proibidas na União Europeia tenham escoado sua produção para o Brasil, considerado por especialistas o paraíso dos agrotóxicos.
Além da constitucionalização do direito à alimentação, há no Brasil a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), que aponta diretamente para a completa impossibilidade de que agrotóxicos sejam liberados no nível que se pretende. Como é possível, mesmo diante de tamanhas restrições institucionais, que um projeto como este esteja avançando rumo à sua provável aprovação?
Os lírios não nascem das leis, alertou Carlos Drummond de Andrade. Konrad Hesse, jurista alemão, concorda com Drummond. Segundo ele, as formas políticas se movem independentemente das formas jurídicas. Numa sociedade dividida em classes sociais, onde a produção da riqueza coletivamente produzida gravita em torno da exploração do trabalho alheio e de sua acumulação privada, não é a lei que vai mudar esta realidade.
Em Sobre a Questão Judaica, Marx questiona se o que desejamos de fato é a emancipação política, expressa pelo reconhecimento de direitos pelas vias legais, ou a emancipação humana, radical, concreta e efetiva. Ao trazer esta problemática, Marx – que reconhece a importância das conquistas institucionais, não as enxergando, contudo, como o teto das lutas políticas – expõe os limites e contradições das democracias liberais e do próprio modo de produção capitalista, que cria potenciais emancipatórios ao mesmo tempo em que impossibilita que sejam entregues.
No campo da alimentação, por exemplo, é possível identificar esta contradição com bastante clareza. Existe hoje tecnologia suficiente para alimentar, sem o uso de agrotóxicos, uma população consideravelmente superior à do planeta, promessa que não é atingida em razão dos frutos desta tecnologia estarem presos no cativeiro da sede predatória por lucro. O resultado disso é uma assustadora quantidade de pessoas ainda hoje morrendo de fome e padecendo dos males causados pelo consumo de agrotóxicos.
Evguiéni Pachukanis, jurista soviético morto nos processos de Moscou, afirma que o projeto de construir um edifício não pode ser considerado o edifício real, pois se o projeto não sair do papel não podemos afirmar que o edifício foi construído. Se a democracia é definida também como o respeito à constituição e este respeito é impossibilitado pelos propósitos da acumulação, será que realmente estamos numa democracia?
A resposta a tal pergunta nos leva mais uma vez à questão da emancipação política e da emancipação humana, da escolha entre aparência ou essência, fantasia ou realidade. “Não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempos de desordem sangrenta, de confusão inconsciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar”, nos ensinou Brecht.
É bom que não esqueçamos.
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