terça-feira, 8 de outubro de 2024

Austeridade e popularidade

Fernando Haddad
Por Paulo Kliass, no site Vermelho:


A proximidade do processo das eleições municipais acabou por deixar um pouco à margem nos grandes meios de comunicação o debate a respeito da perda de popularidade do presidente Lula e da avaliação de seu governo. É compreensível que a emergência e a polarização do pleito nas mais de 5.700 cidades terminem por colocar essa questão em segundo plano na agenda política. No entanto, como haverá segundo turno em menos de 100 destes locais, é provável que o debate a respeito da contradição entre a realidade exibida pelas estatísticas oficiais de economia e a popularidade em queda passe a merecer mais espaço na imprensa.

A dúvida que se coloca é a respeito de quais são as razões que poderiam explicar a incapacidade de as pesquisas de opinião pública captarem algum sentimento mais efetivo de melhora da percepção da maioria da população quanto aos aspectos supostamente positivos da política econômica comandada por Fernando Haddad. Afinal, os números de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 2023 superaram – e muito! – as expectativas apresentadas pela Pesquisa Focus encomendada pelo Banco Central (BC). O problema é que ali são representadas as opiniões de apenas 171 presidentes e dirigentes de empresas do financismo, todos eles criteriosa e rigorosamente selecionados para responder ao questionário do órgão encarregado pela fiscalização e pela regulamentação do próprio sistema financeiro. O resultado é um misto de torcida uniformizada com chantagem contra propostas que possam contrariar os interesses do setor.

No começo do ano passado, esse pessoal dizia que o PIB não iria crescer mais do que 0,8% ao longo dos 12 meses. Como sempre, a nata da banca privada confundia mais uma vez seus desejos contra o governo que havia derrotado o candidato apoiado por eles nas eleições de outubro de 2022 com algum lampejo de análise objetiva da realidade econômica. Com isso, eles foram mais uma vez desmoralizados com a divulgação do resultado oficial do IBGE, que registrou um crescimento de 2,9% no PIB para o ano passado. Um dos fatores que contribuíram para esse quadro foram as despesas públicas e os investimentos estatais garantidos pela negociação da PEC da Transição, quando o novo governo conseguiu recursos orçamentários para executar parte de seus compromissos anunciados durante a campanha eleitoral. Ou seja, exatamente o oposto da austeridade fiscal burra e cega que os representantes da banca propõem o tempo todo.

Haddad: insistência cega na austeridade fiscal

Para o ano atual há uma tendência de manutenção do mesmo ritmo de elevação do PIB. Ao longo dos meses o governo e os próprios representantes do assim chamado “mercado” foram elevando suas projeções. Nos primeiros meses, estes últimos projetavam uma elevação de apenas 1,60% para o final do presente ano. Mas o povo da Faria Lima terminou por aceitar a realidade e reajustou suas projeções. Atualmente, o próprio Ministério da Fazenda refez seus cálculos e passou a trabalhar com uma expectativa de 3,2% para o encerramento de 2024. Para tentar surfar nessa onda de boas novidades para o chefe, o pessoal da área da economia tenta emplacar a narrativa de que tais resultados só estão surgindo por conta da rigidez com que Haddad vem tratando a questão da austeridade fiscal. Ocorre que a verdade é bem oposta: essa melhoria está ocorrendo apesar das regras da austeridade.

Na área do emprego as informações divulgadas pelos órgãos governamentais também apresentam um quadro interessante. Confirma-se uma tendência de redução do desemprego, que atingiu seu nível histórico mais baixo segundo os dados do IBGE. No segundo trimestre deste ano a chamada taxa de desocupação atingiu 6,8% do total da população economicamente ativa (PEA). Trata-se da menor taxa jamais registrada para esse período nos últimos 10 anos. Ocorre que há problemas associados à metodologia utilizada pelo órgão. O questionário pergunta se o indivíduo procurou emprego durante os últimos 30 dias. Como há muita gente desempregada por um período mais longo de tempo e que desistiu de procurar um posto de trabalho, geralmente os dados são subdimensionados.

Inflação e precariedade no emprego: popularidade de Lula em baixa

Esse é o fenômeno que gera um contingente conhecido como “população desalentada”. Afinal, procurar emprego, particularmente em cidades com características metropolitanas, custa dinheiro. E as pessoas terminam desistindo depois de muitas tentativas infrutíferas. Esta é a razão pela qual os indicadores de entidades como o DIEESE, por exemplo, apontam taxas de desemprego bem mais elevadas do que a oficial. Na pesquisa que a entidade mantida pelo movimento sindical realiza para o DF, por exemplo, o desemprego se aproxima de 15% da PEA.

Além disso, os dados do IBGE apontam um crescimento da informalidade nas posições ocupadas. As sucessivas mudanças introduzidas na legislação trabalhista nos governos Temer e Bolsonaro, com vistas a retirar direitos dos assalariados, mascaram a realidade do mercado de trabalho. As pessoas estão empregadas, mas em condições de elevada precariedade e, por vezes, recebendo até mesmo uma remuneração mensal inferior a um salário mínimo. Esse fato pode ser captado também pelo contingente da população subutilizada. São 18,5 milhões de pessoas que gostariam de trabalhar mais horas do que estão conseguindo atualmente em sua jornada laboral.

Outro aspecto que poderia eventualmente contribuir para melhorar a avaliação do governo refere-se à redução da taxa de crescimento dos preços. Em 2022, o IPCA registrou um acumulado de 5,6%. Em 2023, a inflação oficial registrou 4,6%. Atualmente, o acumulado de 12 meses até agosto aponta 4,2% e uma projeção para encerramento do ano em um patamar ainda mais elevado. Por outro lado, a desagregação dos preços em grupos aponta para crescimento acima da média em itens de maior sensibilidade, tais como alimentação (4,59%), transportes (4,53%), saúde (5,70%), despesas pessoais (4,45%) e educação (6,91%). Isso significa que todo o esforço realizado pelo arrocho monetário não tem conseguido reduzir de forma significativa a inflação para a meta claramente irrealizável de 3% ao ano. Por isso teria sido fundamental o Conselho Monetário Nacional (CMN) ter se rendido às evidências da realidade e ter promovido uma alteração na meta oficial para o crescimento dos preços. Mas Fernando Haddad se opôs radicalmente a tal inciativa.

Povo não come PIB!

Ora, tudo leva crer que a combinação oferecida por um crescimento não expressivo do PIB e uma inflação persistente em setores que mais pesam no bolso da população de baixa renda não tem logrado arrefecer o descontentamento com a situação de dificuldades vivenciadas nos setores da base de nossa pirâmide da desigualdade. Afinal, ao longo da última década, o crescimento do Produto Interno foi pífio. Entre 2015 e 2024 registrou-se um índice acumulado de 5,7% – o que corresponde a pouco mais de 0,5% por ano. Para se ter uma ideia da ordem de grandeza, o crescimento populacional observado ao longo dos mesmos 10 anos foi de 4,4%. Na verdade, foi uma década de semi-estagnação da economia de forma geral. Ou seja, por mais que neste mesmo intervalo de tempo tenha havido 6 anos entre Temer e Bolsonaro, o fato é que existe um limite de aceitação de situações de infortúnio por parte da maioria da população.

O resultado do primeiro turno das eleições municipais pode ser analisado também por essa ótica. Como dizia a querida e saudosa mestra, a professora e economista Maria Conceição Tavares, o povo não come PIB. Isso significa que, com toda a certeza, as políticas de austeridade fiscal e de arrocho monetário levadas a cabo pela área econômica não têm contribuído para que o eleitorado avalie de forma positiva ou compreensiva o governo. Pelo contrário, o que as pesquisas de opinião têm demonstrado é uma insatisfação com o desempenho de Lula e de seu governo.

Lula precisa redefinir os rumos de seu governo

Estamos nos aproximando da metade de seu terceiro mandato. Ainda existe tempo para que o Presidente opere uma mudança de linha e de rota com vistas a recuperar a credibilidade da maioria da população e prepare as forças progressistas para o grande embate eleitoral que deverá ocorrer em 2026. Caso ele opte pela manutenção do “mais do mesmo” no que se refere à condução da política econômica pautada pela austeridade fiscal é bem provável que assistamos a um aumento das dificuldades políticas para sua própria reeleição. Afinal, a experiência tem comprovado que os resultados sociais e políticos provocados pela combinação austericida de juros elevados com estrangulamento orçamentário só beneficia os setores do parasitismo financeiro.

Para recuperar as bases de uma popularidade de seu segundo mandato, quando encerrou o governo com índices superiores a 80%, Lula precisará realizar mudanças que podem até desagradar parte das elites do financismo. Mas quem decide as eleições são as dezenas de milhões de cidadãos que aguardam os efeitos positivos de um governo desenvolvimentista e comprometido com programas sociais voltados à maioria.

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