Muito se tem discutido sobre o papel da mídia no mundo contemporâneo, notadamente da segunda metade do século XX aos dias de hoje. Diversas disciplinas, como as ciências sociais, a história, a economia, a semiótica e obviamente a comunicação, entre outras, têm se debruçado sobre os impactos da “sociedade midiática” nas mais distintas áreas, sobretudo no “inconsciente coletivo”, tendo em vista a manipulação indutora de valores e comportamentos políticos, sociais, econômicos, estéticos etc.
Individualismo, consumismo, hedonismo, descrédito na ação política coletiva e nas doutrinas políticas, reforço da ideologia do “self made man”, ênfase no mundo privado (notadamente na carreira profissional e na circunscrição familiar/amizades da “vida social”) são algumas das características resultantes desse mundo atomizado, vigente em maior ou menor medida em todos os países, notadamente após a ascensão do neoliberalismo e o definhamento do socialismo soviético.
A partir da “revolução” digital dos anos 1990 novas questões vêm sendo levantadas, uma vez que as comunicações estariam passando por profundas transformações, apercebidas, contudo, de modo distinto: para alguns setores são vistas como potencialmente democráticas e para outros como controladoras e alienantes.
Para além da controvérsia, “redes sociais” (caso do facebook, por exemplo, que chegou ao incrível patamar de 1 bilhão de perfis, isto é, 1/7 da população humana), “convergência digital” e ampla disponibilidade de comunicação não têm alterado, de maneira significativa, a ação política coletiva das sociedades. Apenas mobilizações pontuais, pouco significativas tendo em vista a dimensão planetária das comunicações, têm sido observadas, o que se deve, aparentemente, embora não apenas, ao legado individualista e alienante da dominação midiática instaurada desde a metade do século passado.
No Brasil, onde a própria urbanização se confunde com a indústria midiática – o rádio e depois a televisão –, os meios de comunicação foram avançando sem regulação, isto é, como negócio privado sem responsabilização quanto a seus efeitos públicos, exceto quanto ao não enfrentamento dos regimes políticos dominantes. Particularmente o regime militar pós-1964 foi responsável pela verdadeira tragédia comunicacional que vive o país em pleno século XXI, na medida em que incentivou o sistema oligopólico em que vivemos – em nome da “integração nacional”, na verdade um projeto proto fascista –, ao lado da permissão para os empresários da comunicação tratarem a comunicação, ironicamente chamada de “social”, como mero negócio privado, desde que convergente aos objetivos do poder dominante, entre os quais a ovação ao regime militar e a alienação cultural.
O autoritarismo político, obtuso por excelência, permitiu e conviveu com a censura do mercado ao conceder e renovar as concessões a empresas de comunicação que, para se manterem, precisavam apenas adotar o servilismo ao regime. Em vários casos, sendo o mais significativo o da Rede Globo – emissora gestada no ventre do militarismo –, o servo foi mais realista do que o Rei, isto é, autocensura e adesão “ideológica” ao regime, com toda sorte de benefícios empresariais, deu contornos a uma corporação que se tornou a quinta maior empresa de comunicação, em faturamento, no mundo. Talvez mais importante, e ainda sem estudos suficientes a respeito, o papel das Organizações Globo na vida brasileira é de dimensão desconhecida, pois muito além da própria rede de televisão, na medida em que seus impactos são sentidos nos planos cultural e comportamental – tomados aqui em sentido gramsciano. O conglomerado das Organizações, como se sabe, inclui um sem número de emissoras de rádio (AM e FM), transmissoras e retransmissoras de televisão, jornais e revistas, indústria fonográfica, uma fundação (que leva o nome de seu patrono, Roberto Marinho) com capacidade de financiar e induzir a produção cultural – com as devidas deduções tributárias –, parcerias internacionais e um satélite próprio para seus negócios, entre outras atividades corporativas.
De certa forma, a vida cultural (criação de padrões estéticos em diversas áreas, notadamente com viés estadunidense, “integração” nacional a partir de parâmetros pré-determinados) e política (clara interferência em eleições e nos centros decisórios estatais) brasileiras se tornam incompreensíveis sem dimensionar o papel das Organizações Globo, que habilmente souberam se adequar tanto à ditadura como à democracia pós-1989. Por mais que partidos de oposição à ditadura e mesmo às Organizações Globo, casos do PT e do PDT, tivessem chegado ao poder após a redemocratização, jamais houve combate efetivo ao seu poder. A indigência comunicacional que experimentamos ainda hoje, com efeitos culturais – hegemônicos, portanto – mais profundos do que os de estirpe político/eleitoral, contribuiu para sedimentar um padrão comportamental do brasileiro médio cuja marca é a ideologia do “individualismo meritocrático” e a descrença nas transformações políticas coletivas.
Pois bem, a experiência, agora em seu terceiro governo, da gestão do PT no Governo Federal tem transformado parcialmente essas assertivas. Embora o não enfrentamento ao oligopólio midiático, a não colocação na agenda governamental de um marco regulatório da mídia e a não revisão das renovações das concessões representem, em outras palavras, a não democratização da informação e da comunicação – diferentemente de nossos vizinhos argentinos –, e consequentemente a manutenção de uma “democracia parcial”, marcando negativamente esses três governos, diversas políticas públicas sociais têm se desenvolvido e alterado a vida se milhões de brasileiros.
Observa-se, portanto, certa desconexão entre mudanças incrementais e não “radicais”, mas ainda assim inéditas e socialmente impactantes (casos de programas como o Bolsa Família no contexto do Sistema Único de Assistência Social, e de uma série de programas específicos nas áreas de habitação, energia, saúde, educação, crédito e outras) e a resistência elitista e conservadora da grande mídia comercial.
As grandes corporações midiáticas, que expressam os interesses materiais e ideológicos das classes médias e do capital, embora críticas às transformações coletivas promovidas pelas políticas públicas federais petistas, na medida em que vão em direção contrária ao mundo “dos melhores e dos mais capazes, venham de onde vierem” (mote histórico do jornal O Estado de São Paulo), as aceitaram por não confrontarem a estrutura de poder e a dinâmica das propriedades empresarial (o que inclui a própria mídia), agrária e mesmo do mercado financeiro.
A convivência entre reformas sociais – ordenadas – e statu quo se mantém, apesar do elitismo oposicionista dos meios de comunicação, uma vez que atuam como verdadeiros “aparelhos privados de hegemonia” e “intelectuais coletivos”: categorias gramscianas cada vez mais observáveis na cena político/midiática brasileira. Tal modus operandi coloca a mídia como organizadora das classes médias e do Capital Global, obstruindo e vetando políticas públicas tidas ou apercebidas “inaceitáveis”. O caso da chamada “mobilidade urbana” é notório, uma vez que sequer ascende à agenda o tema do privilegiamento, nas grandes metrópoles, das vias públicas ao transporte coletivo. A indústria automobilística, que financia campanhas de parlamentares e chefes de Executivos, que patrocina vigorosa e generosamente os meios de comunicação, e que adota estratégias de marketing extremamente agressivas, tem na mídia seu “intelectual coletivo” capaz de vetar qualquer mudança significativa nas políticas públicas urbanas. O mesmo ocorre quanto ao Estado, interessado nos tributos advindos da cadeia produtiva do automóvel, apesar de suas consequências nefastas. O mesmo se dá quanto ao mercado imobiliário, altamente especulativo, capaz de transformar as cidades em verdadeiras “selvas de pedras”, e ao mercado financeiro, capaz de sobrevier com os juros seguros da dívida interna e manter uma elite rentista.
A grande mídia comercial brasileira – composta por organizações complexas e gigantescas de emissoras de rádio e televisão, de jornais e revistas, de portais na internet com conteúdos diversos e lucrativos, entre outras atividades empresariais – veta e obstrui, por meios diversos, qualquer transformação significativa no que tange às políticas públicas. Apenas aceita, mesmo que a contragosto, mudanças incrementais.
Mas quando uma dada política contrária aos interesses midiáticos adentra à agenda governamental, há uma enorme mobilização no sentido de vetá-la ou, se não for possível, conformar, enquadrar o “desenho” desta política, isto é, a formulação e os objetivos do que se pretende alcançar, a ponto de torná-los inócuos ou minorados.
Toda essa mobilização conta com entrevistados “especialistas” que “autorizam” uma dada posição, com o aparato de manchetes, fotos, charges e matérias que expressam opinião que, por seu turno, se espraia sutilmente pelas coberturas. Embora o discurso midiático advogue, como uma cantilena, a separação entre coberturas jornalísticas e opinião, o que se vê fundamentalmente é uma mesma linhagem ideológico/editorial a corroborar o modus operandi dos “aparelhos privados de hegemonia”, como aludimos, uma vez que atuam com o objetivo de vetar e de propor políticas, sempre por caminhos distintos: ora ostensivos ora subliminares.
A própria aceitação do poder oligopólico da mídia demonstra a incapacidade política do Estado brasileiro em enfrentar tais poderes constituídos, o que o obriga a atuar nas margens e frestas da estrutura econômica e social brasileira. Daí o incrementalismo das políticas públicas desenvolvidas em pouco mais de uma década que, reitere-se, por mais importantes e significativas que sejam, são tímidas perante os recursos econômicos disponíveis e sobretudo perante as necessidades de milhões de brasileiros. Basta comparar os gastos sociais brasileiros com países similares para nos darmos conta do espaço que se tem para transformações profundas.
É claro que somente a “vontade política” dos governantes não é suficiente para alterar realidades historicamente constituídas. É necessário uma conjunção de fatores, tais como, além da vontade política, capacidade técnico/política de governar, reordenamento orçamentário, reforma política, mobilização e pressão social, entre outros fatores. Sem isso, o enfrentamento aos grandes poderes, notadamente da mídia, do latifúndio, do capital produtivo e financeiro especulativos (cada vez mais articulados), entre outros, será sempre protelado.
Os vetos e obstruções da mídia oligopólica a políticas públicas profundas e transformadoras só serão vencidos caso se enfrente seu próprio oligopólio, uma vez que a mídia é parte constitutiva do Sistema Político que, portanto, urge ser reformado.
Uma “janela de oportunidade” parece estar se abrindo quando, apesar da oposição vigorosa de grande parte da mídia ao atual governo federal, os índices de popularidade deste batem recorde de aprovação, desenhando, até agora, um cenário eleitoral relativamente tranquilo rumo a um quarto mandato petista (ao lado de grande coalizão contraditória). Mais ainda, as políticas públicas federais implementadas – Suas, Luz para Todos, Minha Casa, Minha Vida, vasta concessão de crédito, valorização do salário mínimo, aumento do poder de compra da cesta básica, programa de cisternas, entre outras – aparentemente ganharam estatuto de “políticas de Estado”, dada a legitimação que adquiriram. Isso vem provocando uma inédita desconexão entre o poder de audição da mídia e a realidade social da massa de trabalhadores pobres no Brasil. Desde o episódio do chamado “mensalão” essa desconexão vem se aprofundando, tornando o Governo Federal e seu principal partido de certa forma imunes aos ataques e campanhas da mídia, o que pode ser constatado nas eleições do ano passado quando, em meio ao massacre STF/Mídia no julgamento do “mensalão”, o PT saiu-se como o grande vencedor. Nesse sentido, aparentemente panfletos ideológicos, caso paradigmático da revista ‘Veja’, se circunscrevem num mesmo público, numericamente diminuto e com influência decrescente. Mesmo as Organizações Globo, embora ainda bastante poderosas, veem seu poder decrescer.
Políticas públicas transformadoras podem, portanto, se desenvolver, alterando a vida de milhões de brasileiros, se a “elite política dirigente” compreender essa desconexão e aproveitar a “janela de oportunidade” constituída pela conjunção de: apoio social (legitimidade) e político (notadamente eleitoral) da grande massa dos pobres, mesmo que fragmentada; decréscimo relativo do poder midiático; recuo das forças militares aos quartéis; conjuntura internacional favorável a reformas sociais; o fato de o Brasil ser considerado internacionalmente um caso de sucesso em termos de “reformas dentro da ordem” num cenário de potencialidades econômicas. Tudo isso aponta para uma nova correlação de forças em que, dentro e por meio das regras democráticas, possa haver o enfrentamento aos poderes, até então intocáveis, radicalizando a democracia por meio da ampla redistribuição da renda, da terra, da mídia e dos capitais especulativos, ao lado do aprofundamento da democracia participativa.
Oportunidades como a que estamos vivenciando podem passar, o que evidencia a necessidade de um projeto de nação estratégico capaz de consolidar avanços e estabelecer novas regras ao jogo democrático. Caso contrário, continuaremos pautados pela velha, elitista e conservadora grande mídia.
* Francisco Fonseca, cientista político e historiador, é professor de ciência política no curso de Administração Pública e Governo na FGV/SP. É autor de “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (São Paulo, Editora Hucitec, 2005) e organizador, em coautoria, do livro “Controle Social da Administração Pública – cenário, avanços e dilemas no Brasil” (São Paulo, Editora Unesp, 2010), entre outros livros e artigos.
1 comentários:
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