Reproduzo artigo do professor Venício Lima, publicado no Observatório da Imprensa:
A aprovação, no último 19 de outubro, do Projeto de Indicação nº 72.10, que propõe a criação do Conselho Estadual de Comunicação Social (CECS) pela Assembléia Legislativa do Ceará (e que ainda depende da sanção do governador do estado), detonou o último ciclo de inverdades e desinformação relativas às liberdades de expressão e de imprensa no país.
Nos últimos meses, esta tem sido a estratégia da grande mídia e de seus aliados – desta vez, inclusive, a OAB nacional – que, sem divulgar texto e/ou discutir o mérito das propostas, trata de satanizar qualquer tentativa do Estado e da cidadania de exercer seu direito de cobrar dos concessionários do serviço público de radiodifusão o simples cumprimento de normas e princípios já inscritos na Constituição de 1988.
Origem
Ao contrário do que se alardeia, os Conselhos de Comunicação não são uma invenção da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). A idéia surgiu formalmente em encontro nacional de jornalistas promovido pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), com o objetivo de discutir propostas a serem apresentadas no processo constituinte, em 1986. Lá se vão, portanto, mais de 24 anos.
Posteriormente, a idéia fez parte de Emenda Popular apresentada ao Congresso Constituinte, subscrita, além da Fenaj, pela Central Única dos Trabalhadores, pela Central Geral dos Trabalhadores, pela Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior, pela Federação das Associações de Servidores das Universidades do Brasil, pela União Nacional dos Estudantes, pela Federação Brasileira de Trabalhadores em Telecomunicações, pela Associação dos Empregados da Embratel, pela Federação Nacional dos Engenheiros, pela Federação Nacional dos Arquitetos e pela Federação Nacional dos Médicos. Além disso, assinaram a Emenda Popular os então líderes do PT Luiz Inácio Lula da Silva; do PDT, Brandão Monteiro; do PCB, Roberto Freire; do PC do B, Haroldo Lima, e do PSB, Beth Azize.
A proposta original – que tinha como modelo a Federal Communications Commission (FCC) americana – foi objeto de controvérsia ao longo de todo o processo constituinte e acabou reduzida à versão finalmente aprovada como artigo 224 da Constituição, que diz:
Art. 224. Para os efeitos do disposto neste capítulo [Capítulo V, "Da Comunicação Social", do Título VIII "Da Ordem Social"], o Congresso Nacional instituirá, como seu órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social, na forma da lei.
Em 30 de dezembro de 1991, o então presidente Fernando Collor sancionou a lei nº 8389, cujo projeto original foi de autoria do jornalista, professor e senador Pompeu de Souza (PMDB-DF), já falecido, que instituiu o Conselho de Comunicação Social (CCS).
Apesar disso, resistências articuladas pelos mesmos interesses que ainda hoje se opõem à iniciativa fizeram que sua instalação fosse postergada por mais de onze anos, até 2002. Instalado, o CCS funcionou durante quatro anos e desde dezembro de 2006 não mais se reuniu.
Conselhos municipais e estaduais
Desde que a Constituição de 1988 foi promulgada, várias iniciativas de criação de conselhos semelhantes ao CCS surgiram tanto em nível municipal como estadual. O primeiro Conselho Municipal de Comunicação (CMC) foi criado na Prefeitura Municipal de Porto Alegre por meio do decreto nº 9426, assinado pelo então prefeito Olívio Dutra, em 5 de maio de 1989.
Uma pesquisa realizada pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), em 2009, indica que também a cidade de Goiânia (GO) chegou a ter um CMC instalado. Juiz de Fora (MG) e Anápolis (GO) prevêem a criação destes conselhos.
Em nível estadual, algumas constituições ou leis orgânicas contemplam a criação dos Conselhos Estaduais de Comunicação Social (CECS). É o caso de Minas Gerais, Bahia, Alagoas, Paraíba, Pará, Amapá, Amazonas e Goiás. No estado do Rio de Janeiro existe uma lei que trata do assunto (lei nº 4.849/2006) e, em São Paulo, o decreto nº 42.209, de 15 de setembro de 1997, também prevê a criação de um CECS (ver "Conselhos de Comunicação são ignorados", revista MídiaComDemocracia, pág. 8).
No Distrito Federal, a Lei Orgânica aprovada em 8 de junho de 1993 prevê:
Art. 261. O Poder Público manterá o Conselho de Comunicação Social do Distrito Federal, integrado por representantes de entidades da sociedade civil e órgãos governamentais vinculados ao Poder Executivo, conforme previsto em legislação complementar.
Parágrafo único. O Conselho de Comunicação Social do Distrito Federal dará assessoramento ao Poder Executivo na formulação e acompanhamento da política regional de comunicação social.
Na campanha eleitoral de 1994, por iniciativa do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal, o assunto foi discutido em debate com os candidatos a governador e todos se comprometeram a cumprir o que já constava da Lei Orgânica. O candidato Cristóvam Buarque, depois governador (1995-1998), comprometeu-se, se eleito, a enviar projeto neste sentido à Câmara Distrital em até 90 dias após sua posse. O projeto não foi enviado e, até hoje, não existe CECS no Distrito Federal.
Em resumo: apesar de estar na Constituição da República e em várias constituições e leis orgânicas estaduais e municipais, não existe um único Conselho de Comunicação funcionando no país.
Por que será?
Prática democrática
Como se pode constatar, a idéia dos Conselhos de Comunicação não surgiu na 1ª Confecom e a iniciativa cearense não é sequer a primeira. Trata-se de norma constitucional.
Para não tornar este artigo demasiadamente longo, omito a transcrição do texto da Lei nº 8389/1991, que institui o Conselho de Comunicação Social previsto no artigo 224 da Constituição, e do Projeto de Indicação nº 72.10, aprovado pela Assembléia Legislativa do Ceará. Convido, no entanto, o eventual leitor(a) a comparar os dois textos com o capítulo "Da Comunicação Social" da Constituição de 1988.
Quem se der ao trabalho verá que a grande mídia e seus aliados, ao satanizarem a iniciativa cearense, tentam, ainda uma vez mais, evitar a prática democrática legítima da cidadania que participa diretamente na gestão da coisa pública e defende seus interesses, prevista na Constituição de 1988. No caso, interesses em relação aos concessionários do serviço público de radiodifusão.
Nada mais, nada menos do que isso.
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terça-feira, 2 de novembro de 2010
Fúria da mídia contra os Kirchner
Reproduzo artigo de Mário Augusto Jakobskind, publicado no sítio Direto da Redação:
A Argentina e a América Latina estão de luto com a perda de Néstor Kirchner, o líder político que acabou com a impunidade de assassinos e torturadores da época da ditadura e conseguiu enfrentar a herança maldita do neoliberalismo de Menem e da terra arrasada dos militares que tomaram o país com o golpe de 1976. Néstor Kirchner fez o que pôde nas circunstâncias em que encontrou o país.
A mídia de mercado, na Argentina bastante vinculada ao setor dos produtores rurais, nunca aceitou Néstor, da mesma forma que a atual Presidente Cristina Fernández Kirchner, esta sobretudo pelo fato de sancionar a lei dos meios de comunicação, amplamente discutida pela sociedade argentina e aprovada pelo Congresso.
Os proprietários dos jornais Clarín e La Nación estavam em guerra com Néstor e Cristina, o mesmo acontecendo com os demais jornalões e telejornalões da Argentina e de outros países da América Latina. Diariamente, a mídia hegemônica brasileira também demoniza os Kirchner com mentiras primárias.
Teve até uma jornalista argentina que escreveu um livro afirmando que Néstor tinha dado um soco em Cristina que a fez cair, ao se desentenderem durante uma crise fabricada pelos produtores rurais. Jornais brasileiros – O Globo, por exemplo –, passando pelos de sempre, deram destaque ao fato sem o menor fundamento, claro, que se insere no contexto da queima de imagem do casal.
É o que se pode denominar de baixo jornalismo. Este gênero encontra muito espaço na mídia de mercado, que nos últimos tempos aqui no Brasil está agindo como um partido político de direita. Com a morte de Néstor, os mesmos jornais que o combatiam seguem agora desqualificando Cristina Kirchner. A presidente argentina é apresentada como uma mera marionete de Néstor, como se ela nem sequer pensasse.
Analistas de sempre e o noticiário de um modo geral demonstram grande preconceito pelo fato de ser ela uma mulher. É visível pelo tipo de colocações que são feitas. É inegável que a morte de Nestor Kirchner terá consequências na política argentina, mas daí a se afirmar, como fazem os analistas da mídia de mercado, que Cristina desde já vai entregar os pontos ou não terá condições de governar sem o marido, é realmente desqualificá-la.
Cristina em vários momentos, inclusive como senadora, demonstrou ter vida própria e posições de destaque, o que não pode ser negado ou esquecido nas análises políticas sobre a Argentina. O tempo dará a resposta aos que hoje, de forma preconceituosa, colocam em dúvida se Cristina continuará a levar adiante a proposta do peronismo sem a influência perniciosa dos setores conservadores.
Possivelmente Cristina continuará enfrentando a ira dos barões da mídia, que não se conformam com o fato de os meios de comunicação estarem agora sujeitos a uma legislação democrática, amplamente discutida pelos movimentos sociais argentinos.
Antes do conflito com os produtores rurais, que queriam manter vantagens econômicas prejudiciais aos interesses da maioria do povo argentino e foram barrados pelo governo, ou mesmo antes da apresentação da legislação sobre os meios de comunicação, a então senadora Cristina chegou a ser apresentada por alguns veículos de imprensa como uma figura de destaque e mesmo com certa ascendência política sobre o então Presidente Nestor Kirchner.
Mas depois, Cristina passou a ser linchada pela mídia de mercado de forma visivelmente preconceituosa. Prevaleceu a cultura machista de que a mulher não tem luz própria. Trata-se de um preconceito secular que ainda se arrasta em alguns setores conservadores, mas pouco a pouco, felizmente, vem sendo superado.
A eleição presidencial no Brasil, por sinal, contribuiu nesse sentido, embora também os setores conservadores procurassem em suas campanhas apresentar a provável sucessora de Lula apenas como uma política fabricada pelo Presidente e sem vida própria. E na internet, o preconceito contra Dilma Rousseff seguiu a mesma linha machista e de baixo nível.
Alea jacta est. Nesta noite de domingo (31) quando esta reflexão estiver no ar, brasileiras e brasileiros saberão quem foi escolhido para governar o país por quatro anos a partir de 1 de janeiro de 2011. Os institutos de pesquisa DataFolha, Sensus, Ibope. Vox Populi apresentaram percentuais em favor da candidata Dilma Rousseff variando entre 10 e 14 pontos.
Se falharem em suas previsões ficarão queimados para sempre, só lhes restando fechar as portas e pedir desculpas públicas. Mas será que diante de tamanha diferença ainda há condições de alguma surpresa? Como eleição se decide mesmo na contagem do último voto resta aos mortais aguardar o desenrolar dos acontecimentos.
Em tempo: nem bem algumas assembleias legislativas colocaram na mesa de discussão a criação de um Conselho Estadual de Comunicação, no Estado do Rio apresentada pelo deputado Paulo Ramos (PDT), a mídia de mercado começou uma grita apoplética, como sempre misturando o conceito de liberdade de imprensa com liberdade de empresa. Até porque não está em jogo, como “informam” os jornalões e telejornalões, a liberdade de imprensa.
Está na hora de a sociedade brasileira colocar como prioritário para debate a questão dos meios de comunicação, pois sem a democratização do setor, o país continuará sob o domínio absoluto dos barões da mídia que não aceitam nenhum tipo de debate ou muito menos perder privilégios que na prática afetam o respeito ao direito humano da informação.
Em tempo 2: nem vale a pena perder tempo em analisar o debate da TV Globo, na última sexta-feira, mas só destacar que foi uma cópia mal feita do que fazem as TVs nos Estados Unidos. E cá entre nós, as câmaras manipularam as imagens favorecendo visivelmente ao candidato da casa, ou seja, Serra. E que indecisos foram os perguntadores? Um deles aplaudiu Serra.
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A Argentina e a América Latina estão de luto com a perda de Néstor Kirchner, o líder político que acabou com a impunidade de assassinos e torturadores da época da ditadura e conseguiu enfrentar a herança maldita do neoliberalismo de Menem e da terra arrasada dos militares que tomaram o país com o golpe de 1976. Néstor Kirchner fez o que pôde nas circunstâncias em que encontrou o país.
A mídia de mercado, na Argentina bastante vinculada ao setor dos produtores rurais, nunca aceitou Néstor, da mesma forma que a atual Presidente Cristina Fernández Kirchner, esta sobretudo pelo fato de sancionar a lei dos meios de comunicação, amplamente discutida pela sociedade argentina e aprovada pelo Congresso.
Os proprietários dos jornais Clarín e La Nación estavam em guerra com Néstor e Cristina, o mesmo acontecendo com os demais jornalões e telejornalões da Argentina e de outros países da América Latina. Diariamente, a mídia hegemônica brasileira também demoniza os Kirchner com mentiras primárias.
Teve até uma jornalista argentina que escreveu um livro afirmando que Néstor tinha dado um soco em Cristina que a fez cair, ao se desentenderem durante uma crise fabricada pelos produtores rurais. Jornais brasileiros – O Globo, por exemplo –, passando pelos de sempre, deram destaque ao fato sem o menor fundamento, claro, que se insere no contexto da queima de imagem do casal.
É o que se pode denominar de baixo jornalismo. Este gênero encontra muito espaço na mídia de mercado, que nos últimos tempos aqui no Brasil está agindo como um partido político de direita. Com a morte de Néstor, os mesmos jornais que o combatiam seguem agora desqualificando Cristina Kirchner. A presidente argentina é apresentada como uma mera marionete de Néstor, como se ela nem sequer pensasse.
Analistas de sempre e o noticiário de um modo geral demonstram grande preconceito pelo fato de ser ela uma mulher. É visível pelo tipo de colocações que são feitas. É inegável que a morte de Nestor Kirchner terá consequências na política argentina, mas daí a se afirmar, como fazem os analistas da mídia de mercado, que Cristina desde já vai entregar os pontos ou não terá condições de governar sem o marido, é realmente desqualificá-la.
Cristina em vários momentos, inclusive como senadora, demonstrou ter vida própria e posições de destaque, o que não pode ser negado ou esquecido nas análises políticas sobre a Argentina. O tempo dará a resposta aos que hoje, de forma preconceituosa, colocam em dúvida se Cristina continuará a levar adiante a proposta do peronismo sem a influência perniciosa dos setores conservadores.
Possivelmente Cristina continuará enfrentando a ira dos barões da mídia, que não se conformam com o fato de os meios de comunicação estarem agora sujeitos a uma legislação democrática, amplamente discutida pelos movimentos sociais argentinos.
Antes do conflito com os produtores rurais, que queriam manter vantagens econômicas prejudiciais aos interesses da maioria do povo argentino e foram barrados pelo governo, ou mesmo antes da apresentação da legislação sobre os meios de comunicação, a então senadora Cristina chegou a ser apresentada por alguns veículos de imprensa como uma figura de destaque e mesmo com certa ascendência política sobre o então Presidente Nestor Kirchner.
Mas depois, Cristina passou a ser linchada pela mídia de mercado de forma visivelmente preconceituosa. Prevaleceu a cultura machista de que a mulher não tem luz própria. Trata-se de um preconceito secular que ainda se arrasta em alguns setores conservadores, mas pouco a pouco, felizmente, vem sendo superado.
A eleição presidencial no Brasil, por sinal, contribuiu nesse sentido, embora também os setores conservadores procurassem em suas campanhas apresentar a provável sucessora de Lula apenas como uma política fabricada pelo Presidente e sem vida própria. E na internet, o preconceito contra Dilma Rousseff seguiu a mesma linha machista e de baixo nível.
Alea jacta est. Nesta noite de domingo (31) quando esta reflexão estiver no ar, brasileiras e brasileiros saberão quem foi escolhido para governar o país por quatro anos a partir de 1 de janeiro de 2011. Os institutos de pesquisa DataFolha, Sensus, Ibope. Vox Populi apresentaram percentuais em favor da candidata Dilma Rousseff variando entre 10 e 14 pontos.
Se falharem em suas previsões ficarão queimados para sempre, só lhes restando fechar as portas e pedir desculpas públicas. Mas será que diante de tamanha diferença ainda há condições de alguma surpresa? Como eleição se decide mesmo na contagem do último voto resta aos mortais aguardar o desenrolar dos acontecimentos.
Em tempo: nem bem algumas assembleias legislativas colocaram na mesa de discussão a criação de um Conselho Estadual de Comunicação, no Estado do Rio apresentada pelo deputado Paulo Ramos (PDT), a mídia de mercado começou uma grita apoplética, como sempre misturando o conceito de liberdade de imprensa com liberdade de empresa. Até porque não está em jogo, como “informam” os jornalões e telejornalões, a liberdade de imprensa.
Está na hora de a sociedade brasileira colocar como prioritário para debate a questão dos meios de comunicação, pois sem a democratização do setor, o país continuará sob o domínio absoluto dos barões da mídia que não aceitam nenhum tipo de debate ou muito menos perder privilégios que na prática afetam o respeito ao direito humano da informação.
Em tempo 2: nem vale a pena perder tempo em analisar o debate da TV Globo, na última sexta-feira, mas só destacar que foi uma cópia mal feita do que fazem as TVs nos Estados Unidos. E cá entre nós, as câmaras manipularam as imagens favorecendo visivelmente ao candidato da casa, ou seja, Serra. E que indecisos foram os perguntadores? Um deles aplaudiu Serra.
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Os desafios para a presidente Dilma
Reproduzo artigo do teólogo Leonardo Boff, publicado no sítio da Adital:
Celebramos alegremente a vitória de Dilma Rousseff. E não deixamos de folgar também pela derrota de José Serra que não mereceu ganhar esta eleição dado o nivel indecente de sua campanha, embora os excessos tenham ocorrido nos dois lados. Os bispos conservadores que, à revelia da CNBB, se colocaram fora do jogo democrático e que manipularam a questão da descriminalização do aborto, mobilizando até o Papa em Roma, bem como os pastores evangélicos raivosamente partidizados, sairam desmoralizados.
Post festum, cabe uma reflexão distanciada do que poderá ser o governo de Dilma Rousseff. Esposamos a tese daqueles analistas que viram no governo Lula uma transição de paradigma: de um Estado privatizante, inspirado nos dogmas neoliberais para um Estado republicano que colocou o social em seu centro para atender as demandas da população mais destituída. Toda transição possui um lado de continuidade e outro de ruptura. A continuidade foi a manutenção do projeto macroeconômico para fornecer a base para a estabilidade política e exorcizar os fantasmas do sistema. E a ruptura foi a inauguração de substantivas políticas sociais destinadas à integração de milhões de brasileiros pobres, bem representadas pela Bolsa Familia entre outras.
Não se pode negar que, em parte, esta transição ocorreu pois, efetivamente, Lula incluiu socialmente uma França inteira dentro de uma situação de decência. Mas desde o começo, analistas apontavam a inadequação entre projeto econômico e o projeto social. Enquanto aquele recebe do Estado alguns bilhões de reais por ano, em forma de juros, este, o social, tem que se contentar com bem menos.
Não obtante esta disparidade, o fosso entre ricos e pobres diminuiu o que granjeou para Lula extraordinária aceitação.
Agora se coloca a questão: a Presidente aprofundará a transição, deslocando o acento em favor do social onde estão as maiorias ou manterá a equação que preserva o econômico, de viés monetarista, com as contradições denunciadas pelos movimentos sociais e pelo melhor da inteligentzia brasileira?
Estimo que, Dilma deu sinais de que vai se vergar para o lado do social-popular. Mas alguns problemas novos como aquecimento global devem ser impreterivelmente enfrentados. Vejo que a novel Presidente compreendeu a relevância da agenda ambiental, introduzida pela candidata Marina Silva. O PAC (Projeto de Aceleração do Crescimento) deve incorporar a nova consciência de que não seria responsável continuar as obras desconsiderando estes novos dados. E ainda no horizonte se anuncia nova crise econômica, pois os EUA resolveram exportar sua crise, desvalorizando o dólar e nos prejudicando sensivelmente.
Dilma Rousseff marcará seu governo com identidade própria se realizar mais fortemente a agenda que elegeu Lula: a ética e as reformas estruturais. A ética somente será resgatada se houver total transparência nas práticas políticas e não se repita a mercantilização das relações partidárias (“mensalão”).
As reformas estruturais é a dívida que o governo Lula nos deixou. Não teve condições, por falta de base parlamentar segura, de fazer nenhuma das reformas prometidas: a política, a fiscal e a agrária. Se quiser resgatar o perfil originário do PT, Dilma deverá implementar uma reforma política. Será dificil, devido os interesses corporativos dos partidos, em grande parte, vazios de ideologia e famintos de benefícios. A reforma fiscal deve estabelecer uma equidade mínima entre os contribuintes, pois até agora poupava os ricos e onerava pesadamente os assalariados. A reforma agrária não é satisfeita apenas com assentamentos. Deve ser integral e popular levando democracia para o campo e aliviando a favelização das cidades.
Estimo que o mais importante é o salto de consciência que a Presidente deve dar, caso tomar a sério as consequências funestas e até letais da situação mudada da Terra em crise sócio-ecológica. O Brasil será chave na adaptação e no mitigamento pelo fato de deter os principais fatores ecológicos que podem equilibrar o sistema-Terra. Ele poderá ser a primeira potência mundial nos trópicos, não imperial mas cordial e corresponsável pelo destino comum. Esse pacote de questões constitui um desafio da maior gravidade, que a novel Presidente irá enfrentar. Ela possui competência e coragem para estar à altura destes reptos. Que não lhe falte a iluminação e a força do Espírito Criador.
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Celebramos alegremente a vitória de Dilma Rousseff. E não deixamos de folgar também pela derrota de José Serra que não mereceu ganhar esta eleição dado o nivel indecente de sua campanha, embora os excessos tenham ocorrido nos dois lados. Os bispos conservadores que, à revelia da CNBB, se colocaram fora do jogo democrático e que manipularam a questão da descriminalização do aborto, mobilizando até o Papa em Roma, bem como os pastores evangélicos raivosamente partidizados, sairam desmoralizados.
Post festum, cabe uma reflexão distanciada do que poderá ser o governo de Dilma Rousseff. Esposamos a tese daqueles analistas que viram no governo Lula uma transição de paradigma: de um Estado privatizante, inspirado nos dogmas neoliberais para um Estado republicano que colocou o social em seu centro para atender as demandas da população mais destituída. Toda transição possui um lado de continuidade e outro de ruptura. A continuidade foi a manutenção do projeto macroeconômico para fornecer a base para a estabilidade política e exorcizar os fantasmas do sistema. E a ruptura foi a inauguração de substantivas políticas sociais destinadas à integração de milhões de brasileiros pobres, bem representadas pela Bolsa Familia entre outras.
Não se pode negar que, em parte, esta transição ocorreu pois, efetivamente, Lula incluiu socialmente uma França inteira dentro de uma situação de decência. Mas desde o começo, analistas apontavam a inadequação entre projeto econômico e o projeto social. Enquanto aquele recebe do Estado alguns bilhões de reais por ano, em forma de juros, este, o social, tem que se contentar com bem menos.
Não obtante esta disparidade, o fosso entre ricos e pobres diminuiu o que granjeou para Lula extraordinária aceitação.
Agora se coloca a questão: a Presidente aprofundará a transição, deslocando o acento em favor do social onde estão as maiorias ou manterá a equação que preserva o econômico, de viés monetarista, com as contradições denunciadas pelos movimentos sociais e pelo melhor da inteligentzia brasileira?
Estimo que, Dilma deu sinais de que vai se vergar para o lado do social-popular. Mas alguns problemas novos como aquecimento global devem ser impreterivelmente enfrentados. Vejo que a novel Presidente compreendeu a relevância da agenda ambiental, introduzida pela candidata Marina Silva. O PAC (Projeto de Aceleração do Crescimento) deve incorporar a nova consciência de que não seria responsável continuar as obras desconsiderando estes novos dados. E ainda no horizonte se anuncia nova crise econômica, pois os EUA resolveram exportar sua crise, desvalorizando o dólar e nos prejudicando sensivelmente.
Dilma Rousseff marcará seu governo com identidade própria se realizar mais fortemente a agenda que elegeu Lula: a ética e as reformas estruturais. A ética somente será resgatada se houver total transparência nas práticas políticas e não se repita a mercantilização das relações partidárias (“mensalão”).
As reformas estruturais é a dívida que o governo Lula nos deixou. Não teve condições, por falta de base parlamentar segura, de fazer nenhuma das reformas prometidas: a política, a fiscal e a agrária. Se quiser resgatar o perfil originário do PT, Dilma deverá implementar uma reforma política. Será dificil, devido os interesses corporativos dos partidos, em grande parte, vazios de ideologia e famintos de benefícios. A reforma fiscal deve estabelecer uma equidade mínima entre os contribuintes, pois até agora poupava os ricos e onerava pesadamente os assalariados. A reforma agrária não é satisfeita apenas com assentamentos. Deve ser integral e popular levando democracia para o campo e aliviando a favelização das cidades.
Estimo que o mais importante é o salto de consciência que a Presidente deve dar, caso tomar a sério as consequências funestas e até letais da situação mudada da Terra em crise sócio-ecológica. O Brasil será chave na adaptação e no mitigamento pelo fato de deter os principais fatores ecológicos que podem equilibrar o sistema-Terra. Ele poderá ser a primeira potência mundial nos trópicos, não imperial mas cordial e corresponsável pelo destino comum. Esse pacote de questões constitui um desafio da maior gravidade, que a novel Presidente irá enfrentar. Ela possui competência e coragem para estar à altura destes reptos. Que não lhe falte a iluminação e a força do Espírito Criador.
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Breve história de uma candidatura
Reproduzo artigo de Antonio Lassance, publicado no sítio Carta Maior:
Dilma é uma nova personagem que entra em cena na história brasileira. Consagrada por quase 56 milhões de votos, 12 milhões a mais que seu adversário, é uma figura distinta, em todos os sentidos; uma novidade e, ao mesmo tempo, uma velha conhecida.
Boa parte do que se tem veiculado sobre a presidente eleita na mídia tradicional desconhece quem é a Dilma, sua capacidade e seu estilo de trabalho. O que até não seria tão grave, se não viesse acompanhado por um profundo desconhecimento sobre o que são o presidencialismo e a Presidência no Brasil. Há um misto de desinformação, má informação e deformação contra alguém que, em plena democracia, continua sendo acusada, como ocorria na ditadura, pelo que fez e pelo que não fez, pelo que é e pelo que não é.
Dilma vem de uma imensa legião de brasileiros muito bem retratados no livro clássico de Éder Sader, “Quando novos personagens entraram em cena” (de 1988). Ela representa um novo momento em que um sujeito coletivo ganha o rosto de uma personagem. Foi assim com Lula, rosto do sujeito coletivo das greves do ABC e das mobilizações contra a ditadura; rosto que adquiriu outras feições quando deputado constituinte em 1986; depois quando candidato em 1989, sua primeira campanha presidencial; e quando finalmente foi eleito e reeleito (2002 e 2006).
Dilma é de uma das três matrizes identificadas por Sader como representativas do pensamento de esquerda no país. Nem da matriz sindicalista, nem das comunidades eclesiais de base da igreja Católica, mas egressa da matriz da esquerda clandestina, que enfrentou as armas e a tortura dos porões da ditadura.
A mais nova personagem desse sujeito coletivo representa uma longa trajetória de lutas sociais e a ainda breve trajetória de grandes mudanças proporcionadas pelo atual governo. Independentemente de sua matriz original, Dilma foi transformada por duas experiências cruciais: a do governo Lula e a da campanha eleitoral. Ambas certamente alteraram profundamente as feições da futura presidenta, o suficiente para que pudesse enfrentar, sobreviver e sair-se vitoriosa de ataques do tipo que já abateu figuras supostamente muito mais experientes do que ela - e que poderiam ter sido as escolhas preferenciais do PT para 2010.
Dilma é uma novidade em termos de seu perfil. O PT sempre acalentou o sonho de consumo de realizar a fórmula propugnada há muito por Carlos Matus. Especialista em planejamento estratégico e com grande ênfase em gestão presidencial, Matus foi assessor de Salvador Allende (Chile, 1965-1970). Visitou o Brasil várias vezes, teve livros publicados pelo IPEA (graças ao empenho de pesquisadores como Ronaldo Garcia) e circulava muito entre o movimento sindical. Matus enfatizava a importância de se combinar desenvoltura política com habilidade técnico-gerencial. Sua criatura abstrata era o dirigente tecnopolítico. Lula, que conheceu Matus pessoalmente, soube usar desse modelo em seu governo, ao combinar sua maestria política - reconhecida até por seus oponentes - com escolhas de alto padrão técnico, como foi o caso de Dilma.
A opção do presidente Lula por Dilma criou a chance de se ter uma presidenta que fosse um quadro tecnopolítico por excelência. A tarefa que se colocava então era a de turbinar tal escolha com um treinamento intensivo, para cumprir um requisito bastante diverso: o da excelência decisória.
Advindo da própria intuição do presidente, os argumentos em torno da excelência decisória foram reforçados, desde 2003, com a visita, ao Brasil e ao Palácio do Planalto, de um especialista em presidências, Richard Neustadt. O autor de “Poder presidencial e os presidentes modernos” estava visivelmente empolgado com o governo Lula, que mal tinha começado e enfrentava sérias dificuldades em seu primeiro ano. Neustadt, do alto de seus 84 anos e com a experiência de quem acompanhou de perto os governos Roosevelt, Truman e Kennedy, acreditava profeticamente que Lula poderia ter para o Brasil a importância que Franklin Roosevelt teve para os Estados Unidos. Contudo, sua audiência palaciana, grata com tal simpatia, mas cética de suas reais possibilidades (que ainda não podiam ser de fato vislumbras), apreciou particularmente uma das teses clássicas de Neustadt: a de que um presidente não precisa ser especialista em nenhuma área, especificamente. Mais do que qualquer outra coisa, ele precisa ser um especialista em presidência da República. Um exímio operador do poder presidencial.
Neste aspecto, Dilma passou por um treinamento intensivo, ou laboratório, se preferirem, que não poderia ocorrer em lugar melhor a não ser na Casa Civil da Presidência da República, ou seja, na estrutura responsável por demandar, digerir e encaminhar os atos presidenciais para deliberação. Por trás das assinaturas de um presidente se escondem processos de decisão política com meandros que Dilma conhece em detalhes.
A experiência na Casa Civil dá a exata dimensão entre o que um presidente quer e o que ele pode; a medida sobre até onde vai o seu poder, que não é imperial, e o que depende de se contar com maioria disciplinada no Congresso - uma das regras do presidencialismo de coalizão. Enquanto isso, uma das comentaristas que transformaram o comentário político no Brasil numa espécie de colunismo social dos Três Poderes avalia que um dos problemas da presidenta eleita é o de que ela tem uma base congressual maior que a do presidente Lula (!)
Aprende-se na Casa Civil que a capacidade e a velocidade de implementação de políticas públicas dependem da natureza de nosso federalismo e do padrão de nossa burocracia. Dilma conhece cada milímetro da Esplanada e esquadrinhou, com o PAC, cada milímetro do País. Na Casa Civil, se é treinado o tempo todo para saber que nenhuma decisão é correta se for tomada da forma errada e em hora certa incerta.
Um presidente deve saber exatamente em que ponto da estrada deve pisar no freio e quando pode afundar o pé no acelerador. No final de 2003, foram apresentados a Lula resultados de uma pesquisa de opinião que atestava: as pessoas entendiam o momento de arrumar a casa e estavam pacientes com relação às mudanças prometidas. A conclusão oferecida pelos analistas da pesquisa era: o povo não está com pressa. O presidente, que pisou no freio por todo o ano de 2003, retrucou, simples e direto : “o povo não tá com pressa, mas eu tô”. Dilma qualificou-se dentro da Casa Civil para ser uma especialista em presidência ao tornar-se também uma especialista em “timing”.
Dilma, "pela primeira vez na história do País", permitirá que o Brasil tenha uma sequência democrática de governos que cumprem o ciclo de construtores de regimes e gerenciadores de regime, uma noção comum na literatura sobre presidências.
Há presidentes que são construtores de regimes e outros que são seus gestores. Uns constróem uma maneira particular de fazer política e uma orientação diversa da ação do Estado, representando uma coalizão majoritária que desaloja uma antiga coalizão, em decadência. Por sua vez, os gestores de regimes têm como tarefa manter sua coalizão unida, avançar na realização das políticas públicas que cimentam a coesão de suas bases e oferecer respostas a seus eleitores, na forma de ações governamentais. São os gestores de regime que desvelam o legado do presidente anterior e desdobram suas realizações.
No Brasil, se pode dizer que esse ciclo foi cumprido apenas em três épocas: no início da República, entre Campos Sales (verdadeiro construtor do regime da República Velha) e Rodrigues Alves; na Era Vargas, quando Getúlio foi, primeiro (1930-1945) construtor de um novo regime e, depois, ele próprio, continuador de sua construção pregressa, começando em 1950, tragicamente interrompida em 1954. Finalmente, no período dos governos da ditadura militar (1964-1984). Na República Velha, o Brasil tinha um regime pouco representativo (oligárquico e não democrático). A construção do regime varguista ocorreu sobretudo a partir de uma ditadura, a do Estado Novo. O mesmo vale para os 20 anos da ditadura de 64.
Dilma é a primeira experiência democrática brasileira de gestão de um novo regime político e de suas políticas públicas. Todas as demais fracassaram sem deixar sucessores: Juscelino, Jango, Sarney, FHC.
Gerenciar um regime, em parte, é continuar o que tem sido feito, mas apenas em parte. Em grande medida, um presidente de continuidade é um desbravador e um desdobrador. Não é alguém que fará a pintura de uma casa já construída. É quem pega o leme no meio da viagem e precisa conduzir a embarcação adiante, até completar-se o ciclo.
O regime estruturado pelo presidente Lula suplantou a montagem minimalista do tucanato. FHC apostou todos os esforços na estabilidade macroeconômica e supôs que, daí, os resultados para o crescimento econômico e para a melhoria das condições sociais viriam naturalmente. Não vieram, e isso explica seu declínio.
A coalizão encabeçada por Lula e seu novo regime basearam-se na combinação de estabilidade econômica com esforços decididos e simultâneos de aceleração do crescimento e redução drástica das desigualdades. Duas coisas que, na mentalidade do regime anterior, estavam fora da governabilidade do Executivo federal e deveriam ser subproduto da estabilidade.
A campanha possibilitou a todos, em especial à presidenta eleita, a percepção clara da importância da mobilização e do contato popular. Principalmente a campanha de segundo turno. Ficou claro que, deixada à sua própria sorte, Dilma e Lula seriam derrotados pelas forças do atraso.
Os relatos de quem a acompanhou na campanha são repletos de histórias sobre como o semblante e a disposição da candidata eram energizados pelo contato popular. Algo que vai na mesma linha do que o presidente Lula não se cansa de repetir: as viagens pelo país garantem o contato com o povo, e isso revigora um presidente.
A estrutura de qualquer presidência da República é tradicionalmente montada para afastar a “autoridade” daqueles que o elegeram. A presidência diariamente se esforça para assoberbar o presidente com papéis, para manter suas portas fechadas, para isolá-lo do barulho das ruas.
Diante disso, se o presidente se acomoda, se ele não se insurgir contra uma rotina ritualizada, se ele não fugir do Palácio, ele se tornará um presidente cada vez menos popular. É preciso romper os limites do palácio de cristal (outra imagem muito conhecida criada por Matus), a redoma que tem a boa intenção de proteger o presidente de tudo, mas que acaba por afastá-lo, inclusive, daquilo que há de melhor.
As viagens pelas quais o presidente foi tantas vezes criticado, mesmo quando percorria seu próprio país e visitava as localidades mais pobres, permitiram que ele visse claramente as mudanças em curso e os problemas que engavetavam suas decisões. Mas, principalmente, as viagens recarregavam suas baterias com uma energia que não é gerada em despachos, em reuniões ministeriais e em negociações com o Congresso - ao contrário, essas a exaurem.
Pelo pouco que se viu das primeira horas após o resultado das eleições, pode-se antever também outra novidade: ao contrário de presidentes anteriores, Dilma não contará com aquela fase de “lua de mel”, os primeiros 100 dias em que oposição e imprensa dão um desconto para o presidente que entra, antes de abrir fogo com todas as suas baterias. Mesmo informado do discurso de paz e da mão estendida, a oposição fez declaração de guerra. O candidato derrotado - aquele que sacralizou a baixaria - deu ao conservadorismo mais abominável o qualificativo de “delimitação de campo”. E avisou: “isso não é o fim. Isso é apenas o começo”. A frase queimada no calor da derrota exala uma fumaça com forte cheiro de terceiro turno.
Neste sentido, mesmo com toda a agressividade, a oposição se coloca em desvantagem. Ao contrário de Dilma, que aprendeu muito em pouco tempo, a oposição demonstra que nada aprendeu em 8 anos de sucessivas derrotas. Consegue considerar-se campeã moral de uma guerra na qual se desmoralizou. Seu diagnóstico é o de que quem errou foi o povo. “Não foi dessa vez”, que se traduz em “o povo um dia aprende”. Suas lideranças se fecharam em copas e se arvoram bastiões dos velhos tempos; tempos que não voltam mais, principalmente porque cada vez menos gente sente saudades deles.
Ao longo da campanha, uma das formas mais utilizadas de se manifestar apoio a Dilma foi estampar sua foto de militante clandestina presa pela ditadura. As pessoas mostravam sua adesão a um rosto que simbolizava uma identidade coletiva. Enquanto essa coletividade estiver unida em torno de Dilma, a oposição estará condenada a repetir: “não foi dessa vez”. No que depender de seu preparo, a presidenta eleita teve, ao longo da vida, as melhores dentre todas as escolas.
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Dilma é uma nova personagem que entra em cena na história brasileira. Consagrada por quase 56 milhões de votos, 12 milhões a mais que seu adversário, é uma figura distinta, em todos os sentidos; uma novidade e, ao mesmo tempo, uma velha conhecida.
Boa parte do que se tem veiculado sobre a presidente eleita na mídia tradicional desconhece quem é a Dilma, sua capacidade e seu estilo de trabalho. O que até não seria tão grave, se não viesse acompanhado por um profundo desconhecimento sobre o que são o presidencialismo e a Presidência no Brasil. Há um misto de desinformação, má informação e deformação contra alguém que, em plena democracia, continua sendo acusada, como ocorria na ditadura, pelo que fez e pelo que não fez, pelo que é e pelo que não é.
Dilma vem de uma imensa legião de brasileiros muito bem retratados no livro clássico de Éder Sader, “Quando novos personagens entraram em cena” (de 1988). Ela representa um novo momento em que um sujeito coletivo ganha o rosto de uma personagem. Foi assim com Lula, rosto do sujeito coletivo das greves do ABC e das mobilizações contra a ditadura; rosto que adquiriu outras feições quando deputado constituinte em 1986; depois quando candidato em 1989, sua primeira campanha presidencial; e quando finalmente foi eleito e reeleito (2002 e 2006).
Dilma é de uma das três matrizes identificadas por Sader como representativas do pensamento de esquerda no país. Nem da matriz sindicalista, nem das comunidades eclesiais de base da igreja Católica, mas egressa da matriz da esquerda clandestina, que enfrentou as armas e a tortura dos porões da ditadura.
A mais nova personagem desse sujeito coletivo representa uma longa trajetória de lutas sociais e a ainda breve trajetória de grandes mudanças proporcionadas pelo atual governo. Independentemente de sua matriz original, Dilma foi transformada por duas experiências cruciais: a do governo Lula e a da campanha eleitoral. Ambas certamente alteraram profundamente as feições da futura presidenta, o suficiente para que pudesse enfrentar, sobreviver e sair-se vitoriosa de ataques do tipo que já abateu figuras supostamente muito mais experientes do que ela - e que poderiam ter sido as escolhas preferenciais do PT para 2010.
Dilma é uma novidade em termos de seu perfil. O PT sempre acalentou o sonho de consumo de realizar a fórmula propugnada há muito por Carlos Matus. Especialista em planejamento estratégico e com grande ênfase em gestão presidencial, Matus foi assessor de Salvador Allende (Chile, 1965-1970). Visitou o Brasil várias vezes, teve livros publicados pelo IPEA (graças ao empenho de pesquisadores como Ronaldo Garcia) e circulava muito entre o movimento sindical. Matus enfatizava a importância de se combinar desenvoltura política com habilidade técnico-gerencial. Sua criatura abstrata era o dirigente tecnopolítico. Lula, que conheceu Matus pessoalmente, soube usar desse modelo em seu governo, ao combinar sua maestria política - reconhecida até por seus oponentes - com escolhas de alto padrão técnico, como foi o caso de Dilma.
A opção do presidente Lula por Dilma criou a chance de se ter uma presidenta que fosse um quadro tecnopolítico por excelência. A tarefa que se colocava então era a de turbinar tal escolha com um treinamento intensivo, para cumprir um requisito bastante diverso: o da excelência decisória.
Advindo da própria intuição do presidente, os argumentos em torno da excelência decisória foram reforçados, desde 2003, com a visita, ao Brasil e ao Palácio do Planalto, de um especialista em presidências, Richard Neustadt. O autor de “Poder presidencial e os presidentes modernos” estava visivelmente empolgado com o governo Lula, que mal tinha começado e enfrentava sérias dificuldades em seu primeiro ano. Neustadt, do alto de seus 84 anos e com a experiência de quem acompanhou de perto os governos Roosevelt, Truman e Kennedy, acreditava profeticamente que Lula poderia ter para o Brasil a importância que Franklin Roosevelt teve para os Estados Unidos. Contudo, sua audiência palaciana, grata com tal simpatia, mas cética de suas reais possibilidades (que ainda não podiam ser de fato vislumbras), apreciou particularmente uma das teses clássicas de Neustadt: a de que um presidente não precisa ser especialista em nenhuma área, especificamente. Mais do que qualquer outra coisa, ele precisa ser um especialista em presidência da República. Um exímio operador do poder presidencial.
Neste aspecto, Dilma passou por um treinamento intensivo, ou laboratório, se preferirem, que não poderia ocorrer em lugar melhor a não ser na Casa Civil da Presidência da República, ou seja, na estrutura responsável por demandar, digerir e encaminhar os atos presidenciais para deliberação. Por trás das assinaturas de um presidente se escondem processos de decisão política com meandros que Dilma conhece em detalhes.
A experiência na Casa Civil dá a exata dimensão entre o que um presidente quer e o que ele pode; a medida sobre até onde vai o seu poder, que não é imperial, e o que depende de se contar com maioria disciplinada no Congresso - uma das regras do presidencialismo de coalizão. Enquanto isso, uma das comentaristas que transformaram o comentário político no Brasil numa espécie de colunismo social dos Três Poderes avalia que um dos problemas da presidenta eleita é o de que ela tem uma base congressual maior que a do presidente Lula (!)
Aprende-se na Casa Civil que a capacidade e a velocidade de implementação de políticas públicas dependem da natureza de nosso federalismo e do padrão de nossa burocracia. Dilma conhece cada milímetro da Esplanada e esquadrinhou, com o PAC, cada milímetro do País. Na Casa Civil, se é treinado o tempo todo para saber que nenhuma decisão é correta se for tomada da forma errada e em hora certa incerta.
Um presidente deve saber exatamente em que ponto da estrada deve pisar no freio e quando pode afundar o pé no acelerador. No final de 2003, foram apresentados a Lula resultados de uma pesquisa de opinião que atestava: as pessoas entendiam o momento de arrumar a casa e estavam pacientes com relação às mudanças prometidas. A conclusão oferecida pelos analistas da pesquisa era: o povo não está com pressa. O presidente, que pisou no freio por todo o ano de 2003, retrucou, simples e direto : “o povo não tá com pressa, mas eu tô”. Dilma qualificou-se dentro da Casa Civil para ser uma especialista em presidência ao tornar-se também uma especialista em “timing”.
Dilma, "pela primeira vez na história do País", permitirá que o Brasil tenha uma sequência democrática de governos que cumprem o ciclo de construtores de regimes e gerenciadores de regime, uma noção comum na literatura sobre presidências.
Há presidentes que são construtores de regimes e outros que são seus gestores. Uns constróem uma maneira particular de fazer política e uma orientação diversa da ação do Estado, representando uma coalizão majoritária que desaloja uma antiga coalizão, em decadência. Por sua vez, os gestores de regimes têm como tarefa manter sua coalizão unida, avançar na realização das políticas públicas que cimentam a coesão de suas bases e oferecer respostas a seus eleitores, na forma de ações governamentais. São os gestores de regime que desvelam o legado do presidente anterior e desdobram suas realizações.
No Brasil, se pode dizer que esse ciclo foi cumprido apenas em três épocas: no início da República, entre Campos Sales (verdadeiro construtor do regime da República Velha) e Rodrigues Alves; na Era Vargas, quando Getúlio foi, primeiro (1930-1945) construtor de um novo regime e, depois, ele próprio, continuador de sua construção pregressa, começando em 1950, tragicamente interrompida em 1954. Finalmente, no período dos governos da ditadura militar (1964-1984). Na República Velha, o Brasil tinha um regime pouco representativo (oligárquico e não democrático). A construção do regime varguista ocorreu sobretudo a partir de uma ditadura, a do Estado Novo. O mesmo vale para os 20 anos da ditadura de 64.
Dilma é a primeira experiência democrática brasileira de gestão de um novo regime político e de suas políticas públicas. Todas as demais fracassaram sem deixar sucessores: Juscelino, Jango, Sarney, FHC.
Gerenciar um regime, em parte, é continuar o que tem sido feito, mas apenas em parte. Em grande medida, um presidente de continuidade é um desbravador e um desdobrador. Não é alguém que fará a pintura de uma casa já construída. É quem pega o leme no meio da viagem e precisa conduzir a embarcação adiante, até completar-se o ciclo.
O regime estruturado pelo presidente Lula suplantou a montagem minimalista do tucanato. FHC apostou todos os esforços na estabilidade macroeconômica e supôs que, daí, os resultados para o crescimento econômico e para a melhoria das condições sociais viriam naturalmente. Não vieram, e isso explica seu declínio.
A coalizão encabeçada por Lula e seu novo regime basearam-se na combinação de estabilidade econômica com esforços decididos e simultâneos de aceleração do crescimento e redução drástica das desigualdades. Duas coisas que, na mentalidade do regime anterior, estavam fora da governabilidade do Executivo federal e deveriam ser subproduto da estabilidade.
A campanha possibilitou a todos, em especial à presidenta eleita, a percepção clara da importância da mobilização e do contato popular. Principalmente a campanha de segundo turno. Ficou claro que, deixada à sua própria sorte, Dilma e Lula seriam derrotados pelas forças do atraso.
Os relatos de quem a acompanhou na campanha são repletos de histórias sobre como o semblante e a disposição da candidata eram energizados pelo contato popular. Algo que vai na mesma linha do que o presidente Lula não se cansa de repetir: as viagens pelo país garantem o contato com o povo, e isso revigora um presidente.
A estrutura de qualquer presidência da República é tradicionalmente montada para afastar a “autoridade” daqueles que o elegeram. A presidência diariamente se esforça para assoberbar o presidente com papéis, para manter suas portas fechadas, para isolá-lo do barulho das ruas.
Diante disso, se o presidente se acomoda, se ele não se insurgir contra uma rotina ritualizada, se ele não fugir do Palácio, ele se tornará um presidente cada vez menos popular. É preciso romper os limites do palácio de cristal (outra imagem muito conhecida criada por Matus), a redoma que tem a boa intenção de proteger o presidente de tudo, mas que acaba por afastá-lo, inclusive, daquilo que há de melhor.
As viagens pelas quais o presidente foi tantas vezes criticado, mesmo quando percorria seu próprio país e visitava as localidades mais pobres, permitiram que ele visse claramente as mudanças em curso e os problemas que engavetavam suas decisões. Mas, principalmente, as viagens recarregavam suas baterias com uma energia que não é gerada em despachos, em reuniões ministeriais e em negociações com o Congresso - ao contrário, essas a exaurem.
Pelo pouco que se viu das primeira horas após o resultado das eleições, pode-se antever também outra novidade: ao contrário de presidentes anteriores, Dilma não contará com aquela fase de “lua de mel”, os primeiros 100 dias em que oposição e imprensa dão um desconto para o presidente que entra, antes de abrir fogo com todas as suas baterias. Mesmo informado do discurso de paz e da mão estendida, a oposição fez declaração de guerra. O candidato derrotado - aquele que sacralizou a baixaria - deu ao conservadorismo mais abominável o qualificativo de “delimitação de campo”. E avisou: “isso não é o fim. Isso é apenas o começo”. A frase queimada no calor da derrota exala uma fumaça com forte cheiro de terceiro turno.
Neste sentido, mesmo com toda a agressividade, a oposição se coloca em desvantagem. Ao contrário de Dilma, que aprendeu muito em pouco tempo, a oposição demonstra que nada aprendeu em 8 anos de sucessivas derrotas. Consegue considerar-se campeã moral de uma guerra na qual se desmoralizou. Seu diagnóstico é o de que quem errou foi o povo. “Não foi dessa vez”, que se traduz em “o povo um dia aprende”. Suas lideranças se fecharam em copas e se arvoram bastiões dos velhos tempos; tempos que não voltam mais, principalmente porque cada vez menos gente sente saudades deles.
Ao longo da campanha, uma das formas mais utilizadas de se manifestar apoio a Dilma foi estampar sua foto de militante clandestina presa pela ditadura. As pessoas mostravam sua adesão a um rosto que simbolizava uma identidade coletiva. Enquanto essa coletividade estiver unida em torno de Dilma, a oposição estará condenada a repetir: “não foi dessa vez”. No que depender de seu preparo, a presidenta eleita teve, ao longo da vida, as melhores dentre todas as escolas.
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