“Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista.”
Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro
Em O passado não resolvido: golpe de 1964 e os antecedentes da questão agrária hoje, recentemente publicado no número 22 da revista Leituras de Economia Política, discutimos o que hoje entendemos como a manutenção de um padrão violento e concentrador de ocupação do território.
Aqui apresentamos uma versão resumida (e talvez um pouco atualizada) das temáticas que discutimos no artigo. A problemática, apesar das diferenças de escala, é a mesma: a violenta herança legada pelo não equacionamento da questão agrária, após séculos de desigualdade e opressão.
Há um padrão histórico de ocupação do território brasileiro, que finca suas raízes na Colônia, floresce no Império, viceja na República e ganha vigor com a Revolução de 1930 e a redemocratização de 1945.
O esforço de industrialização realizado a partir da Revolução de 1930 abre novas janelas para que se pense o futuro do Brasil, mas o esgotamento do fôlego do processo de substituição de importações colabora para o acirramento das contradições no campo, levando à consequente intensificação de reivindicações pela população rural.
A estas se somam as vozes de uma intelectualidade engajada nos dilemas que assombravam a continuidade do processo de desenvolvimento nacional e a possibilidade de algum protagonismo popular nessa trajetória.
O debate em torno da questão agrária é interrompido violentamente com o golpe de 1964 e a subsequente repressão dos pensadores críticos à proposta plutocrática defendida pelos militares e dos movimentos sociais ocupados dessa transformação, principais vítimas do autoritarismo.
A elaboração, em meio aos governos militares, do Estatuto da Terra, é marca clara deste movimento: sob aparente progresso institucional, preserva-se o poder dos grandes proprietários de terra, um dos braços da estratégia de modernização agrícola sem reforma agrária que marca as duas décadas seguintes.
De forma análoga à falha implementação da Lei de Terras (cuidadosamente descrita por Lígia Osório), as dificuldades de implementação revelam a seletividade da propriedade e do acesso à terra, no Brasil. Com cada aparente transformação institucional, damos um passo à frente para então darmos dois para trás.
Com o fim da ditadura militar e a redemocratização, a atmosfera parecia indicar a possibilidade de equacionamento da questão agrária. Esta possibilidade se converteu em uma Constituição que, no que concerne a esse dilema, contava com um conjunto de minúcias regulatórias que serviam de obstáculo à transformação efetiva. Seu resultado é um vazio legal que, somado à crise, mais uma vez agudiza as tensões sociais no campo.
Contemporaneamente, o que foi convencionalmente denominado de “revolução verde”, ou a “modernização dolorosa” do campo (posta nestes termos por Graziano da Silva), é clara a preponderância das determinações econômicas na articulação do movimento de ocupação e modernização do campo que reacende a disputa pelas terras não ocupadas.
Aumentos na produtividade da agricultura com largos subsídios do governo e intensificação dos conflitos entre grandes proprietários e a massa de despossuídos rurais nas fronteiras da ocupação se dão sob a máscara da defesa inatacável da propriedade privada enquanto princípio jurídico ordenador da sociedade.
A atuação estatal sobre estas questões nos remete à qualificação, feita por Marx, do problema da “igualdade de desiguais” – estruturas de poder econômico e político são mobilizadas contra pequenos proprietários e posseiros, num conflito em que as duas partes são entendidas e tratadas como equivalentes.
A capacidade de organização política dos trabalhadores rurais é suprimida persistentemente, ao passo que os latifundiários articulam-se em um bloco sólido, embebido da legitimidade política da nova república.
Não por acaso, o reconhecimento do contemporâneo boom de commodities enquanto escora fundamental do ciclo recente de crescimento (sob o rótulo convenientemente neutro de export-led growth) se dá concomitantemente à virulenta arrancada da bancada ruralista, força preponderante no Congresso mais conservador desde os tempos do golpe.
A questão agrária não foi, de forma alguma, resolvida, e ainda clama por resolução em meio aos contínuos conflitos violentos no campo, à gritante concentração da propriedade da terra, ao insustentável desflorestamento amazônico e à irresponsável possibilidade de especulação com terras, entre tantas outras manifestações perversas.
Nos séculos que conduziram à suposta modernização do campo, no Brasil, fomos capazes de empreender uma vasta gama de reformas que, efetivamente, mais preservaram do que transformaram as estruturas de poder, violência e opressão.
Mais do que isso – afeitos às fórmulas fáceis da oposição entre arcaico e moderno, abraçamos com contentamento essa bizarra modernidade, em que o passado não só volta sempre a nos assombrar como vive sobre o corpo de cada liderança rural assassinada, entre as páginas amareladas das fraudes nos cartórios, nas engrenagens incessantes do maquinário do agronegócio, na brutalidade das ações de reintegração de posse.
Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro
Em O passado não resolvido: golpe de 1964 e os antecedentes da questão agrária hoje, recentemente publicado no número 22 da revista Leituras de Economia Política, discutimos o que hoje entendemos como a manutenção de um padrão violento e concentrador de ocupação do território.
Aqui apresentamos uma versão resumida (e talvez um pouco atualizada) das temáticas que discutimos no artigo. A problemática, apesar das diferenças de escala, é a mesma: a violenta herança legada pelo não equacionamento da questão agrária, após séculos de desigualdade e opressão.
Há um padrão histórico de ocupação do território brasileiro, que finca suas raízes na Colônia, floresce no Império, viceja na República e ganha vigor com a Revolução de 1930 e a redemocratização de 1945.
O esforço de industrialização realizado a partir da Revolução de 1930 abre novas janelas para que se pense o futuro do Brasil, mas o esgotamento do fôlego do processo de substituição de importações colabora para o acirramento das contradições no campo, levando à consequente intensificação de reivindicações pela população rural.
A estas se somam as vozes de uma intelectualidade engajada nos dilemas que assombravam a continuidade do processo de desenvolvimento nacional e a possibilidade de algum protagonismo popular nessa trajetória.
O debate em torno da questão agrária é interrompido violentamente com o golpe de 1964 e a subsequente repressão dos pensadores críticos à proposta plutocrática defendida pelos militares e dos movimentos sociais ocupados dessa transformação, principais vítimas do autoritarismo.
A elaboração, em meio aos governos militares, do Estatuto da Terra, é marca clara deste movimento: sob aparente progresso institucional, preserva-se o poder dos grandes proprietários de terra, um dos braços da estratégia de modernização agrícola sem reforma agrária que marca as duas décadas seguintes.
De forma análoga à falha implementação da Lei de Terras (cuidadosamente descrita por Lígia Osório), as dificuldades de implementação revelam a seletividade da propriedade e do acesso à terra, no Brasil. Com cada aparente transformação institucional, damos um passo à frente para então darmos dois para trás.
Com o fim da ditadura militar e a redemocratização, a atmosfera parecia indicar a possibilidade de equacionamento da questão agrária. Esta possibilidade se converteu em uma Constituição que, no que concerne a esse dilema, contava com um conjunto de minúcias regulatórias que serviam de obstáculo à transformação efetiva. Seu resultado é um vazio legal que, somado à crise, mais uma vez agudiza as tensões sociais no campo.
Contemporaneamente, o que foi convencionalmente denominado de “revolução verde”, ou a “modernização dolorosa” do campo (posta nestes termos por Graziano da Silva), é clara a preponderância das determinações econômicas na articulação do movimento de ocupação e modernização do campo que reacende a disputa pelas terras não ocupadas.
Aumentos na produtividade da agricultura com largos subsídios do governo e intensificação dos conflitos entre grandes proprietários e a massa de despossuídos rurais nas fronteiras da ocupação se dão sob a máscara da defesa inatacável da propriedade privada enquanto princípio jurídico ordenador da sociedade.
A atuação estatal sobre estas questões nos remete à qualificação, feita por Marx, do problema da “igualdade de desiguais” – estruturas de poder econômico e político são mobilizadas contra pequenos proprietários e posseiros, num conflito em que as duas partes são entendidas e tratadas como equivalentes.
A capacidade de organização política dos trabalhadores rurais é suprimida persistentemente, ao passo que os latifundiários articulam-se em um bloco sólido, embebido da legitimidade política da nova república.
Não por acaso, o reconhecimento do contemporâneo boom de commodities enquanto escora fundamental do ciclo recente de crescimento (sob o rótulo convenientemente neutro de export-led growth) se dá concomitantemente à virulenta arrancada da bancada ruralista, força preponderante no Congresso mais conservador desde os tempos do golpe.
A questão agrária não foi, de forma alguma, resolvida, e ainda clama por resolução em meio aos contínuos conflitos violentos no campo, à gritante concentração da propriedade da terra, ao insustentável desflorestamento amazônico e à irresponsável possibilidade de especulação com terras, entre tantas outras manifestações perversas.
Nos séculos que conduziram à suposta modernização do campo, no Brasil, fomos capazes de empreender uma vasta gama de reformas que, efetivamente, mais preservaram do que transformaram as estruturas de poder, violência e opressão.
Mais do que isso – afeitos às fórmulas fáceis da oposição entre arcaico e moderno, abraçamos com contentamento essa bizarra modernidade, em que o passado não só volta sempre a nos assombrar como vive sobre o corpo de cada liderança rural assassinada, entre as páginas amareladas das fraudes nos cartórios, nas engrenagens incessantes do maquinário do agronegócio, na brutalidade das ações de reintegração de posse.
0 comentários:
Postar um comentário