terça-feira, 16 de junho de 2015

A violenta herança da questão agrária

Por Vitor Bukvar Fernandes e Roberto Resende Simiqueli, no site Brasil Debate:

“Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista.”

Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro


Em O passado não resolvido: golpe de 1964 e os antecedentes da questão agrária hoje, recentemente publicado no número 22 da revista Leituras de Economia Política, discutimos o que hoje entendemos como a manutenção de um padrão violento e concentrador de ocupação do território.

Aqui apresentamos uma versão resumida (e talvez um pouco atualizada) das temáticas que discutimos no artigo. A problemática, apesar das diferenças de escala, é a mesma: a violenta herança legada pelo não equacionamento da questão agrária, após séculos de desigualdade e opressão.

Há um padrão histórico de ocupação do território brasileiro, que finca suas raízes na Colônia, floresce no Império, viceja na República e ganha vigor com a Revolução de 1930 e a redemocratização de 1945.

O esforço de industrialização realizado a partir da Revolução de 1930 abre novas janelas para que se pense o futuro do Brasil, mas o esgotamento do fôlego do processo de substituição de importações colabora para o acirramento das contradições no campo, levando à consequente intensificação de reivindicações pela população rural.

A estas se somam as vozes de uma intelectualidade engajada nos dilemas que assombravam a continuidade do processo de desenvolvimento nacional e a possibilidade de algum protagonismo popular nessa trajetória.

O debate em torno da questão agrária é interrompido violentamente com o golpe de 1964 e a subsequente repressão dos pensadores críticos à proposta plutocrática defendida pelos militares e dos movimentos sociais ocupados dessa transformação, principais vítimas do autoritarismo.

A elaboração, em meio aos governos militares, do Estatuto da Terra, é marca clara deste movimento: sob aparente progresso institucional, preserva-se o poder dos grandes proprietários de terra, um dos braços da estratégia de modernização agrícola sem reforma agrária que marca as duas décadas seguintes.

De forma análoga à falha implementação da Lei de Terras (cuidadosamente descrita por Lígia Osório), as dificuldades de implementação revelam a seletividade da propriedade e do acesso à terra, no Brasil. Com cada aparente transformação institucional, damos um passo à frente para então darmos dois para trás.

Com o fim da ditadura militar e a redemocratização, a atmosfera parecia indicar a possibilidade de equacionamento da questão agrária. Esta possibilidade se converteu em uma Constituição que, no que concerne a esse dilema, contava com um conjunto de minúcias regulatórias que serviam de obstáculo à transformação efetiva. Seu resultado é um vazio legal que, somado à crise, mais uma vez agudiza as tensões sociais no campo.

Contemporaneamente, o que foi convencionalmente denominado de “revolução verde”, ou a “modernização dolorosa” do campo (posta nestes termos por Graziano da Silva), é clara a preponderância das determinações econômicas na articulação do movimento de ocupação e modernização do campo que reacende a disputa pelas terras não ocupadas.

Aumentos na produtividade da agricultura com largos subsídios do governo e intensificação dos conflitos entre grandes proprietários e a massa de despossuídos rurais nas fronteiras da ocupação se dão sob a máscara da defesa inatacável da propriedade privada enquanto princípio jurídico ordenador da sociedade.

A atuação estatal sobre estas questões nos remete à qualificação, feita por Marx, do problema da “igualdade de desiguais” – estruturas de poder econômico e político são mobilizadas contra pequenos proprietários e posseiros, num conflito em que as duas partes são entendidas e tratadas como equivalentes.

A capacidade de organização política dos trabalhadores rurais é suprimida persistentemente, ao passo que os latifundiários articulam-se em um bloco sólido, embebido da legitimidade política da nova república.

Não por acaso, o reconhecimento do contemporâneo boom de commodities enquanto escora fundamental do ciclo recente de crescimento (sob o rótulo convenientemente neutro de export-led growth) se dá concomitantemente à virulenta arrancada da bancada ruralista, força preponderante no Congresso mais conservador desde os tempos do golpe.

A questão agrária não foi, de forma alguma, resolvida, e ainda clama por resolução em meio aos contínuos conflitos violentos no campo, à gritante concentração da propriedade da terra, ao insustentável desflorestamento amazônico e à irresponsável possibilidade de especulação com terras, entre tantas outras manifestações perversas.

Nos séculos que conduziram à suposta modernização do campo, no Brasil, fomos capazes de empreender uma vasta gama de reformas que, efetivamente, mais preservaram do que transformaram as estruturas de poder, violência e opressão.

Mais do que isso – afeitos às fórmulas fáceis da oposição entre arcaico e moderno, abraçamos com contentamento essa bizarra modernidade, em que o passado não só volta sempre a nos assombrar como vive sobre o corpo de cada liderança rural assassinada, entre as páginas amareladas das fraudes nos cartórios, nas engrenagens incessantes do maquinário do agronegócio, na brutalidade das ações de reintegração de posse.

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