Por Luiz Filgueiras e Graça Druck, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
Os movimentos, governos e líderes de extrema direita, presentes hoje em vários países, estejam estes no centro ou na periferia do sistema capitalista mundial, são produtos genuínos da nova forma e dinâmica de funcionamento desse modo de produção.
O “capitalismo flexível”, impulsionado e moldado pelas novas tecnologias, a financeirização da acumulação e as reformas e políticas neoliberais, revolucionou o modo de produzir e consumir, reconfigurou o trabalho e as classes sociais, impondo uma nova racionalidade em todas as esferas da vida social – que tem como centro e guia a competição e o individualismo.
Essa “grande transformação” estrutural, entendida como a derradeira mundialização do capital e que vem ocorrendo desde os últimos quarenta anos, implicou, tanto no centro quanto na periferia do sistema capitalista, em maior concentração de renda e da propriedade, aumento do desemprego estrutural e difusão da precarização do trabalho, crescimento da pobreza absoluta e relativa, desenraizamento social e grandes movimentos migratórios. Como consequência generalizou-se, em todas as sociedades, a volatilidade, instabilidade, incerteza e crises econômicas – que levaram a sentimentos de insegurança, raiva e o ódio difuso, fobias de todos os tipos, ressentimentos com relação a algum ou alguns “outros”.
Como já evidenciado por outros períodos da história mundial, esse é o tipo de ambiente econômico-social e político no qual vicejam, prosperam e são difundidas as mais variadas formas e expressões de ideologias, movimentos, governos e líderes políticos de extrema direita: pertencentes, ou não, à grande família do fascismo.
O fenômeno contemporâneo mundial que ora se vive, embora não seja cópia do chamado fascismo histórico (Itália e Alemanha), tem fortes características dessa grande família; daí sua denominação de neofascismo. Entre outras:
1- o apelo ao autoritarismo e contra o “sistema” e o Estado de Direito;
2- o uso da legalidade democrática e de suas instituições para constituição de um Estado de Exceção, por dentro da ordem democrática;
3- o ataque raivoso a todas as tendências de esquerda (comunistas, socialistas e socialdemocratas);
4- a defesa do nacionalismo (real ou apenas retórico) xenófobo, com a negação da existência de classes e conflitos de classe no interior da nação;
5- a desqualificação e, no limite, destruição das organizações dos trabalhadores (Partidos, sindicatos, associações etc.);
6- a escolha de algum “outro” como causador e bode expiatório de todos os males, fobias e ressentimentos;
7- o exercício de uma “guerra cultural-ideológica” permanente, na qual se destaca a adoção de narrativas e explicações de caráter místico-religioso e de natureza anti-intelectual, uma espécie de anti-iluminismo que agride a razão, e que procura desacreditar o conhecimento científico, histórico e cultural acumulados durante mais de cinco séculos, desde a época do “Renascimento”.
8- a exploração das emoções e afetos regressivos, com o estímulo e uso da violência, brutalidade e grosseria;
9- e, por fim, como instrumento de difusão e implementação deste “programa”, a mobilização política de massa, com a constituição de um movimento ativo, agressivo e, no limite, violento.
Essas características são comuns a todas as formas de neofascismo que se manifestam concretamente hoje nos mais diversos países, quer estejam ainda apenas na forma de movimentos quer já tenham alcançado a posição de governo ou, em alguns casos, tenham se constituído em regimes neofascistas.
No entanto, como já dito no início, o Neofascismo contemporâneo é um produto político das consequências econômico-sociais da forma de funcionamento do “capitalismo flexível”, mundializado, financeirizado e neoliberal. Portanto, está-se diante de um “neofascismo neoliberal”: uma espécie de combinação aparentemente bizarra de nacionalismo xenófobo com neoliberalismo. Mas, ao mesmo tempo, o Estado de Exceção acompanhado, ou não, de um movimento/regime neofascista parece ser, cada vez mais, a forma política mais adequada ao capitalismo neoliberal – tendo em vista a incapacidade estrutural deste em incorporar os interesses dos “de baixo”.
Em suma o Estado de Exceção (de natureza neofascista ou não) é a resposta que decorre do conflito, cada vez mais agudo, entre capitalismo e democracia, ao mesmo tempo em que expressa a crise do Estado nacional colocado em “xeque” pela mundialização do capital. Por isso, e diferentemente do fascismo histórico, o Neofascismo contemporâneo, de braços dados com o neoliberalismo, não consegue mobilizar o Estado como condutor de um projeto nacional totalizante, que incorpore as distintas esferas constitutivas da sociedade: econômica, social, política e cultural.
Neofascismo no Brasil
No caso do Brasil, o “bolsonarismo” é um “movimento neofascista” efetivamente constituído, política e ideologicamente mobilizador, tendo raízes em certos segmentos e frações de classe da sociedade brasileira – embora aparente ser inorgânico, em virtude da inexistência, ainda, de um Partido político que unifique, organize, discipline e represente os seus vários grupos e tendências. Esse papel vem sendo cumprido, até aqui, pelas redes sociais e a denominada guerra híbrida, com o uso de algorítmicos e robôs que constituem as milícias digitais bolsonaristas e que alcançam seus correligionários, efetivos e potenciais, individualmente, na solidão de seus equipamentos digitais. Essa é uma diferença fundamental de alguns neofascismos contemporâneos, inclusive o bolsonarismo, em relação ao “fascismo histórico” ocorrido na Alemanha e Itália na primeira metade do século XX.
Esse movimento se faz presente no âmbito da sociedade civil e no interior do aparelho de Estado, em especial parcelas do Poder Judiciário e do Ministério Público; cuja expressão maior é a chamada “República de Curitiba”. Tem participação ativa de vários segmentos da “classe média”, em especial a sua parcela proprietária e “autônoma”, e do grande empresariado (identificado ideologicamente ou por oportunismo). Além disso, conta com a militância das Igrejas Evangélicas, principalmente as suas denominações neopentecostais, caracterizadas por uma leitura fundamentalista da Bíblia e praticantes da Teologia da Prosperidade (é dando que se recebe) – justificadoras da meritocracia e do empreendedorismo.
Desse modo, podem ser identificados no movimento neofascista brasileiro três núcleos (todos eles representados no Governo Bolsonaro) que atuam de forma relativamente independente, mas que convergem, podendo vir a se constituir na base de um futuro Partido Neofascista: 1- as milícias digitais presentes nas redes sociais e que constituem o núcleo original e central do bolsonarismo; 2- as Igrejas Evangélicas, político-ideologicamente neoliberais e reacionárias na cultura, na moral e nos costumes; 3- a Lava jato, entendida no seu sentido amplo, político, que agrega segmentos do Judiciário, inclusive membros do STF e do Ministério Público, e a Polícia Federal. Pairando sobre todos eles, encontram-se Instituições privadas de extrema direita (algumas financiadas pelo imperialismo), grupos de empresários e organizações empresariais do grande capital (de diversos setores) com uma agenda neoliberal extremada e fundamentalista.
Cada um desses núcleos atua, principalmente, em um âmbito específico, cumprindo papéis distintos, mas complementares:
1- As milícias digitais, apoiadas em algorítmicos e robôs, inundam as redes sociais de propaganda, palavras de ordem, fake news e ataques aos “inimigos” e às instituições democráticas (com o intuito de desmoralizá-las) e, no limite, convocam e mobilizam para ações e atos no “mundo real”. Elas atingem o indivíduo em sua solidão e de acordo com seus valores e pré-conceitos (com a construção de “perfis” político-econômicos, possibilitados pelo atual capitalismo de vigilância).
2- As Igrejas Evangélicas trabalham direta e diariamente as classes populares, explorando politicamente a fé de seus crentes, redirecionando-os (reafirmando) para valores e causas reacionários. Travam uma permanente guerra cultural-ideológica, criando uma forte identidade de seita. Junto com tráfico de drogas, elas passaram a ocupar o espaço que era anteriormente da esquerda da Igreja Católica (a Teologia da Libertação) e do Partido dos Trabalhadores. A primeira esmagada pelo Vaticano de João Paulo II e Bento XVI; e o segundo abandonando voluntariamente o trabalho político na periferia. Além disso, as Igrejas Evangélicas se fazem presentes na política institucional (no Congresso Nacional e em algumas prefeituras), constituindo-se em uma bancada parlamentar que dá apoio à aprovação de leis e decretos reacionários e antipopulares.
3- A Lava Jato cumpre um papel político-ideológico fundamental para a difusão e defesa do neofascismo, em virtude do âmbito privilegiado no qual atua: o poder judiciário, o ministério público e os órgãos de repressão. Tem o potencial de atacar (acusar, reprimir, julgar e condenar) os inimigos do neofascismo e, ao mesmo tempo, dar cobertura “legal” às ações do movimento neofascista – contribuindo fortemente para a instauração de um Estado de Exceção. Esse núcleo é fundamental; sem ele o movimento neofascista não conseguirá implantar um Estado (Regime) Exceção.
Por fim, o bolsonarismo, como todo neofascismo na periferia do capitalismo, só é nacionalista retoricamente; a condição dependente das burguesias periféricas não levou à constituição de nações completas, os seus interesses estiveram historicamente, desde sempre, articulados de forma subalterna aos interesses do imperialismo em suas distintas fases. O papel do falso nacionalismo no Neofascismo Neoliberal Periférico tem por objetivo político-ideológico negar a existência de classes sociais e seus distintos interesses, sobretudo desconstruindo a possibilidade de uma identidade política própria das classes trabalhadoras. Em síntese, a dimensão nacional substitui e apaga a dimensão social, inclusive deslegitimando distinções étnicas, de gênero e de orientação sexual.
Finalmente, é importante anotar que o Governo Bolsonaro é um governo neoliberal de extrema direita, mas não se constitui ainda em um regime neofascista, por pelo menos duas razões: 1- A corrente bolsonarista divide espaços e iniciativas com a extrema direita tradicional (não fascista) de origem militar; apesar de ambas serem neoliberais, há importantes contradições entre elas na forma de implementação dos interesses do grande capital e de travar a luta político-ideológica com a esquerda. Daí as tensões permanentes entre ambas, que se expressam na desorganização, no funcionamento e no discurso caótico desse governo. 2- As instituições do Estado não foram ainda apropriadas pelo bolsonarismo; há resistência no Judiciário, no Ministério Público e nos diversos órgãos do Poder Executivo. Além disso, há a presença de movimentos sociais organizados e forte oposição nas Universidades e nas escolas, assim como no Parlamento.
Em suma, este é um processo em andamento, que dependerá muito da resiliência das instituições democráticas da sociedade brasileira e, principalmente, da capacidade das forças democráticas se unirem em torno de um programa mínimo de ação contra a extrema direita em geral, e o neofascismo/bolsonarismo em particular. É sempre bom lembrar, que foi essa incapacidade na Alemanha e na Itália, da primeira metade do século XX, que abriu as portas para a ascensão e consolidação do nazismo e do fascismo nesses países.
Burguesia e neofascismo
O ponto de partida para se compreender a relação entre burguesia e neofascismo no Brasil é o reconhecimento de que a burguesia brasileira não é uma classe homogênea; ela é constituída por distintas frações, segundo o recorte que se privilegie: pequena, média e grande burguesia; burguesia agrária, industrial, comercial, de serviços, financeira ou mesmo multisetorial; burguesia exportadora e de mercado interno; e, o corte mais significativo e que nos interessa mais diretamente para o que se quer discutir aqui, qual seja, burguesia cosmopolita e burguesia interna.
A grande burguesia interna, conceito cunhado por Nicolas Poulantzas (1974; 1977), não é sinônimo de burguesia nacional; diferentemente desta última, que já não existe no Brasil há décadas, não possui contradições incontornáveis com os capitais estrangeiros e o imperialismo, não é nacionalista; mas possui um espaço próprio de reprodução do capital que não passa necessariamente pela aliança com estes últimos – portanto, diferencia-se também da burguesia cosmopolita associada, política e objetivamente, ao imperialismo. Essa fração da burguesia brasileira está presente, e pode ser identificada, em vários ramos da indústria de transformação (têxtil, alimentos, bebidas, bens de capital, entre outros), na cadeia produtiva do petróleo, na construção civil pesada, na produção de commodities agrícolas e minerais, em segmentos do grande comércio varejista e do agronegócio.
A fração da burguesia cosmopolita, associada política e objetivamente ao imperialismo, tem presença e pode ser reconhecida no Brasil, principalmente, nos seguintes setores: atividades e mercados financeiros (bancos, fundos de investimento e de pensão, empresas de consultoria e assessoria financeira, seguradoras, corretoras, planos de saúde); empresas brasileiras fornecedoras e prestadoras de serviços, articuladas ou associadas às multinacionais em vários tipos de negócio; alta gerência das empresas multinacionais na indústria e no agronegócio; grandes grupos de marketing e comunicação; grandes escritórios de advocacia e auditoria; e, mais recentemente, grandes universidades privadas, muitas delas já de propriedade do capital estrangeiro.
Desde o início dos anos 1990, a disputa entre essas duas frações da burguesia se expressou nos sucessivos governos que passaram pelo país e nas suas políticas econômicas. Esse conflito se explicitou de forma mais aguda com a ascensão dos governos do PT, cujo projeto “neodesenvolvimentista”, e suas políticas, privilegiaram os interesses da grande burguesia interna, financiando a centralização de seus capitais e internacionalizando grandes grupos econômicos nacionais dessa fração. Isto se fez através do uso dos bancos públicos (BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal), da Petrobrás como centro da construção da cadeia produtiva do petróleo, da política de fortalecimento do mercado interno (crédito, aumento real do salário mínimo, Bolsa-Família e Previdência Social), e da política externa com ênfase na América Latina e África.
Apesar desses governos não baterem de frente com a burguesia cosmopolita, e esta não ter deixado de ganhar no período, ela foi deslocada de sua hegemonia (tal como exercida nos governos de FHC) no interior do bloco no poder que ocupa o Estado brasileiro. Vários projetos do capital financeiro foram contrariados e adiados, ao mesmo tempo em que segmentos populares importantes passaram a ter protagonismo político-social no interior do projeto “neodesenvolvimentista”. Em particular a descoberta e a forma estabelecida para a exploração do pré-sal contrariou profundamente o imperialismo, parceiro fundamental da burguesia cosmopolita.
A partir da piora do cenário internacional, com a crise de 2008, o projeto “neodesenvolvimentista” passou a ter dificuldades em sua implementação; a desaceleração econômica ficou evidente a partir do primeiro Governo Dilma e, reforçada por políticas econômicas equivocadas nesse período (desonerações fiscais) e pelo ajuste fiscal no início do segundo governo, transformou-se em uma recessão econômica, que se aprofundou no Governo Temer. Nesse novo contexto interno e internacional a burguesia cosmopolita e o imperialismo recuperaram o protagonismo político e voltaram à carga, patrocinando, incentivando e redirecionando as manifestações populares de 2013 (originalmente pela contenção dos reajustes das tarifas do transporte público) contra o Governo Dilma e o PT, tendo como mote central a denúncia da existência de corrupção generalizada nas obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas.
Nesse momento nasceu o processo que levou ao golpe de 2016 e, ao mesmo tempo, começou a se constituir o movimento neofascista no Brasil. Após o golpe, o programa político-econômico da burguesia cosmopolita e do imperialismo voltou à ordem do dia, sendo implementado com uma rapidez impressionante: desestruturação da cadeia produtiva do petróleo e da política de conteúdo nacional, redefinição na forma de exploração do pré-sal com a entrega de grande parte dessa riqueza às corporações multinacionais, aprovação de um ajuste fiscal permanente (por vinte anos) e de uma reforma trabalhista absurdamente regressiva e precarizante das relações de trabalho.
Nesse processo do golpe, a desmoralização da política e dos políticos foi peça central no carro-chefe da corrupção, tendo na Lava Jato, no Mistério Público, na Polícia Federal e no Judiciário, além da mídia corporativa, seus instrumentos fundamentais. Após atingir o PT e os partidos da base aliada de seus governos, foram atingidos quase todos os partidos, em especial o PSDB e o DEM. Todo o sistema político foi posto em questão, abrindo as portas, como sempre acontece nessas situações, a algum outsider (verdadeiro ou falso, não interessa) e aos oportunistas de todos os tipos. Nesse contexto, e empurrado pelo movimento neofascista em crescimento, Bolsonaro encarnou (falsamente) o antissistema e, em particular, o antipetismo (de fato) e ocupou o espaço da anti-política.
Esse resultado inesperado do golpe, para a burguesia, foi por ela absorvido pragmaticamente, que colocou, no final das contas, todas as suas fichas na eleição de Bolsonaro – calculando que, uma vez eleito, poderia enquadrá-lo e utilizá-lo sem maiores dificuldades para continuar implementando o seu projeto, em especial a Reforma da Previdência. O problema é que ela não “combinou com os russos”: o movimento neofascista e a família de milicianos não são enquadráveis, têm objetivos, dinâmica e modus operandi próprios.
Os cinco primeiros meses de um governo híbrido – no qual convivem conflituosamente uma extrema direita neofascista, uma extrema direita tradicional (militar) e uma extrema direita neoliberal – mostraram a sua inviabilidade em geral e, em particular, cada vez mais, a sua incapacidade para tocar os interesses da burguesia cosmopolita e do imperialismo: disputas internas grotescas e trapalhadas de todos os tipos se acumularam e, agora, com a agressão às universidades e à educação em geral, despertou definitivamente as ruas e o movimento social.
No momento atual, diversos interesses, acontecimentos e circunstâncias estão convergindo fortemente contra o Governo Bolsonaro, fragilizando-o de tal forma que a possibilidade de um novo impeachment voltou à cena política: a volta do movimento social e das ruas; a investigação de Flávio Bolsonaro, Queiróz e de mais 80 pessoas a eles relacionadas; a dificuldade da tramitação da Reforma da Previdência no Congresso Nacional; a desmoralização de Bolsonaro e de seu governo no plano internacional; a desilusão evidente de seus eleitores e até mesmo de muitos de seus seguidores neofascistas; as várias derrotas que vem sofrendo no Parlamento e as inúmeras ações endereçadas ao STF contra as suas medidas. Nesse contexto, como ficam a burguesia cosmopolita e o imperialismo, a esquerda e os movimentos sociais, a classe média e o movimento neofascista?
A conjuntura imediata
Existem alguns fatos, uns imediatos outros nem tanto, que anunciam, e apontam, para uma inflexão significativa da conjuntura política, quais sejam:
1- O deslocamento da disputa política no interior do Governo Bolsonaro, que o vem marcando desde o início, entre a extrema direita neofascista e a extrema direita militar, em direção ao confronto direto e nas ruas entre, de um lado, o movimento social e as forças democráticas e, de outro, o Governo Bolsonaro com suas ações tresloucadas. Essa disputa, detonada a partir da questão da educação, objeto de ataques do movimento neofascista e de Bolsonaro antes mesmo do início do governo (“Escola Sem Partido”), transbordou, como se viu nas grandes manifestações de 15 de maio, para a luta contra a Reforma da Previdência e, indo mais longe, colocou em questão o Governo Bolsonaro e suas ações como um todo. Daí o centro dos protestos ter sido Bolsonaro e o seu governo, e não o MEC e o seu ministro, sintetizado sem eufemismo nas palavras de ordem, faixas e cartazes, como “Bolsonaro inimigo da educação” e “Fora Bolsonaro”.
2- A investigação da família Bolsonaro, e suas ligações com o crime organizado (as milícias) no Rio de Janeiro, acionada pelo Ministério Público e o Judiciário, através da quebra do sigilo bancário de Flávio Bolsonaro, Queiróz e mais 80 pessoas ligadas direta ou indiretamente a um grande esquema político corrupto que articula o crime organizado e o Parlamento. E sintomaticamente, mais uma vez, com sucessivos vazamentos do conteúdo da investigação (peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa) para os órgãos de imprensa.
3- Na esfera econômica, a informação de que o PIB no primeiro trimestre recuou evidenciou o que já se sabia intuitivamente: a estagnação da economia brasileira, com quase 13 milhões de desempregados (taxa de desemprego de 12,7%), é um fato. A completa inexistência de qualquer política econômica por parte do Governo tornou-se escandalosa e o chavão de que a solução para retomar o crescimento é a Reforma da Previdência não “cola”: efeitos positivos ou negativos que daí possam advir não terão qualquer influência na situação presente, e nem mesmo no curto e médio prazo futuro. Para piorar, a inflação dá sinais de crescimento.
4- A informação de que o chamado “centrão” estaria articulando a substituição da Reforma da Previdência de Paulo Guedes pela proposta anterior, do Governo Temer, evidencia a enorme dificuldade do Governo Bolsonaro em acelerar e aprovar essa Reforma. Some-se a isso a derrota de Moro, que viu o COAF ser retirado de seu Ministério e ser devolvido ao Ministério da Economia; além da enorme dificuldade dos parlamentares aceitarem o seu “pacote anticrime” encaminhado ao Congresso.
5- O isolamento político do Governo Bolsonaro no plano internacional, em diversos órgãos e acordos multilaterais, com críticas duras de revistas, jornais e demais veículos de comunicação expressivos das mais distintas correntes de pensamento. Além disso, os atritos provocados com a China e os países árabes anunciam consequências desastrosas, do ponto de vista econômico, para setores importantes do agronegócio brasileiro.
6- Crise, disputas e confusão no PSL, suposto partido do governo, com vários de seus parlamentares criticando Bolsonaro e seu governo; além do desembarque de personalidades “famosas” (políticos, artistas e jornalistas principalmente) que fizeram parte ou apoiaram o bolsonarismo em sua primeira hora. Tudo isso acompanhado de comentários no interior do Congresso Nacional e em grupos de redes sociais aventando a possibilidade de Bolsonaro não terminar o seu mandato.
7- Convergência da mídia corporativa, associada ao golpe de 2016 e à eleição de Bolsonaro, nas críticas pessoais a Bolsonaro e ao seu desgoverno (inclusive em editoriais); com vários de seus colunistas também colocando a possibilidade de impeachment e a dificuldade cada vez maior de se conseguir passar a Reforma da Previdência.
Por fim, e para fechar o clima de final de festa, a divulgação por parte de Bolsonaro de uma carta escrita por um anônimo (depois, soube-se que é um ex-candidato a vereador derrotado, integrante do Partido Novo), na qual se subtende duas possibilidades para Bolsonaro e o seu governo: 1- um golpe de Estado, com o fechamento do Congresso, do STF e outras Instituições do Estado de Direito, e a instalação de uma ditadura; ou 2- a renúncia de Bolsonaro, com a justificativa que o país é ingovernável, pois há inúmeros inimigos que não deixariam o Presidente governar.
Diante desse cenário, como estão se movimentando as distintas classes sociais e suas frações; quais as alternativas colocadas para elas? E, o mais importante, e tendo em vista a compreensão do significado dessa nova conjuntura, como devem atuar as forças democráticas, os movimentos sociais e os Partidos de oposição?
Iniciando-se pela burguesia, em especial a sua fração cosmopolita, fica cada vez mais claro a sua dificuldade em marchar com Bolsonaro; o seu principal interesse nesse momento, a Reforma da Previdência, corre sério risco de ser fortemente “desidratada” ou mesmo ser substituída por outra proposta. A sua expectativa e cálculo de que poderia se utilizar de Bolsonaro, enquadrando-o dentro de limites aceitáveis, não se confirmou; as reações protagonizadas pelo mercado financeiro (a sua cara mais visível) evidencia uma grande instabilidade, com quedas sucessivas da Bolsa e valorização do dólar, vocalizadas fortemente pela mídia corporativa. Vai ficando claro que Bolsonaro, a esta altura, mais atrapalha do que ajuda na implementação da agenda das classes dominantes; por isso, conseguir se desvencilhar dele seria um grande alívio. Em princípio, com o vice assumindo (que já demonstrou a sua total adesão ao projeto neoliberal de extrema direita) as coisas poderiam se tornar mais tranquilas para burguesia.
Mas como fazê-lo, sem interromper a tramitação da Reforma da Previdência e sem reforçar o campo político democrático-popular e de esquerda? O melhor dos mundos para a burguesia, o menos traumático, seria a renúncia de Bolsonaro (que poderia ser forçada nos bastidores, através da ameaça da prisão de toda a família, que decorreria da evolução correta da investigação disparada pelo Ministério Público contra um dos filhos e outros parentes). Nessa hipótese, assumiria imediatamente o vice Mourão (com uma reforma ministerial radical) e tudo o mais, em especial a Reforma da Previdência, continuaria a tramitar normalmente no Congresso Nacional. Essa situação caracterizaria a continuação do Golpe de 2016 e seria uma boia de salvação para Bolsonaro e a extrema direita.
A alternativa, o impeachment, é mais complicada porque, além de paralisar a agenda parlamentar, reforçaria o movimento das ruas já em andamento e fortaleceria o campo político democrático-popular (a depender de como este se comportar), podendo desembocar em novas eleições. Esse é um risco também presente na hipótese da renúncia. A hipótese do impeachment, se prevalecer, significará uma derrota monumental do movimento e da extrema direita neofascista no país.
Já no extremo político oposto, o movimento democrático-popular e a esquerda, finalmente, e através das ruas, conseguiram trazer o Governo Bolsonaro e o movimento neofascista para o confronto direto; desmoralizando-os e evidenciando a sua completa incapacidade de dirigir os rumos do país. Conseguiram trazer para o centro da luta e dos protestos não apenas a educação e a Reforma da Previdência, mas o próprio Governo Bolsonaro no seu todo, expresso na palavra de ordem “Fora Bolsonaro”. Mas como já visto anteriormente, essa é uma perspectiva que está se espalhando para o conjunto da sociedade, inclusive no interior da burguesia. Como então se posicionar sobre o impeachment, tendo em vista que esse também poderá ser um caminho a ser perseguido pela burguesia – que conforme vimos, apostaria num governo (Mourão-Maia) mais consistente e menos tumultuado para tocar os seus interesses?
Essa é uma situação complicada para o movimento democrático-popular e a esquerda, mas não nos parece que haja uma alternativa: a prioridade hoje é derrotar o movimento neofascista e parar Bolsonaro. O conjunto de sua obra até aqui, e o que mais poderá vir adiante, é um processo de destruição de tudo que funciona no país: a Petrobrás e o pré-sal, os bancos públicos, a Previdência Social solidária, o IBGE, as universidades e a educação em geral (cortes de verbas e monitoramento de suas direções), a diferenças, a política ambiental etc. Ele e seu governo são diferentes de tudo que já se viu no país e já deram razões e motivos de sobra para caírem; o impeachment de Bolsonaro não é um golpe, é uma imposição política para se começar a reconstrução do país. Essa é uma tarefa inadiável e não depende da burguesia vir assumi-la ou não.
O movimento democrático-popular não pode abrir mão de tentar ser o protagonista maior na execução dessa tarefa, não pode assistir o processo de camarote, deixando a sua condução nas mãos da burguesia se esta vier a se engajar. Vai defender a legitimidade de Bolsonaro porque ele foi eleito pelo voto, porque está com receio das consequências do impeachment e das dificuldades futuras para travar a luta política contra a burguesia? Nunca é demais lembrar que o a tradição política fascista é de se utilizar das instituições e mecanismos democráticos para acender ao poder e, depois, perpetrar um golpe contra o Estado de Direito e implantar uma ditadura.
Se, de fato, houver renúncia, a mobilização popular tem que se aprofundar e radicalizar contra a Reforma da Previdência e exigir novas eleições. Mourão, tal como Temer, também não foi eleito e é um “pato manco” pior do que Temer. Além disso, a atuação competente no Parlamento, como está sendo feita por alguns parlamentares da oposição, é fundamental. Em suma, a derrubada de Bolsonaro será uma grande vitória do movimento democrático-popular e da esquerda; com ou sem Mourão o jogo recomeça com esse campo fortalecido.
E mais, pelo conjunto da obra o impeachment está dado; falta construir as condições políticas para que o processo deslanche e aconteça. Nas últimas semanas essas condições vêm sendo construídas aceleradamente. Em sentido oposto, não há a menor possibilidade de ruptura institucional a partir da extrema direita neofascista e de Bolsonaro, já completamente desmoralizados. Esse é outro tipo de receio que anda povoando a cabeça de alguns segmentos da esquerda, para ficarem contra o “Fora Bolsonaro”.
Em suma, o “fora Bolsonaro” já está na ordem do dia: na grande mídia, nos blogs e personagens de direita e esquerda, nas ruas, no Congresso; porque já está claro que o Governo Bolsonaro destrói todas as possibilidades do país em todos os campos, e não apenas na educação. O “Fora Bolsonaro” já começou a se impor a partir da vontade das massas e do movimento social. Se as direções não assumirem perderão o “bonde da história”
No entanto, a defesa de que o movimento democrático-popular deve encampar, e dirigir, a luta pelo impeachment, não deve ignorar os interesses, os objetivos e as ações da burguesia caso ela venha a se incorporar ao processo. Mas isso é um elemento a ser considerado na tática de luta desse movimento e não uma prova de que não se deve ser a favor do impeachment, porque a burguesia também tem interesse nele. Significa reconhecer que a luta política é difícil e contraditória, que não combina com raciocínios binários nem comportamentos contemplativos; exatamente porque há a possibilidade da burguesia encampar o impeachment é que o movimento democrático-popular e a esquerda devem sair na frente – colocando claramente o seu projeto alternativo.
Desse modo, não há qualquer ilusão sobre a natureza da outra extrema direita (a militar, que ainda tem a Guerra Fria como referência política) que participa do Governo Bolsonaro e que tenderá a assumir o comando após o impeachment. A origem, o comportamento e as declarações de seus integrantes não deixam margem a dúvidas: são autoritários e tendem no limite a não respeitar o Estado de Direito (a vocação a querer tutelar a nação), defendem o alinhamento subalterno aos EUA, incorporam a ideologia e o programa político-econômico neoliberal (não são nacionalistas), têm a mesma concepção de “segurança” da República de Curitiba e de Sérgio Moro. Em suma, o programa e a agenda (que é da burguesia cosmopolita) permanecem os mesmos, sem, contudo, a guerra cultural permanente e a mobilização de massa pelas redes sociais; trata-se, de fato, de uma extrema direita militar tradicional, que se reciclou incorporando o neoliberalismo.
Tudo isso está claro, e não pode ser ignorado. No entanto, essa “sinuca de bico” deve ser enfrentada pelo movimento democrático-popular e a esquerda; não dá para ficar assistindo ao processo, caso ele ocorra, e muito menos defender o mandato de Bolsonaro, com o argumento de que o seu impeachment é um golpe – depois de tudo o que já se sabe sobre a sua eleição fraudulenta e, pior, depois de tudo do que o seu governo já promoveu, e está promovendo contra a democracia. Por isso, hoje, a forma de se enfrentar esse problema é assumir com convicção, sem vacilações, a bandeira de “Fora Bolsonaro” e procurar ser o protagonista maior desse processo e, ao mesmo tempo, vinculado ao impeachment, defender “Eleições Diretas Já”. Em síntese, “Fora Bolsonaro e Eleições Diretas Já” é a luta a ser travada contra a extrema direita, neofascista e militar, e contra a agenda neoliberal da burguesia. E essa luta exige, obviamente e mais do que nunca, um movimento de massa, uma mobilização popular poderosa, e não apenas a atuação no Congresso Nacional.
Por sua vez, a classe média que se dividiu desde o impeachment de Dilma e as eleições para Presidente continua, e continuará dividida, entre o campo democrático e o campo da direita e da extrema direita. Contudo, parece claro que está havendo uma mudança de maioria no seu interior: o desengano e a decepção com os Governos Temer e, sobretudo, Bolsonaro (com medidas e políticas que atingem amplamente os interesses de vários de seus segmentos) estão empurrando de novo (tal como num movimento pendular) diversos de seus segmentos para o campo democrático.
Por fim, o conjunto dos trabalhadores (assalariados, conta-própria, informais, precarizados, servidores públicos etc.) sentem na própria pele os efeitos do Governo Temer e do desgoverno Bolsonaro. O desemprego cresceu, a precarização cresceu, a subocupação aumentou, os rendimentos caíram e, para piorar, a inflação está subindo. Apesar da crescente influência das Igrejas Evangélicas na periferia, a percepção da piora das condições de vida e trabalho é acachapante; não há discurso religioso e/ou moral que supere isso. A defesa do Governo Bolsonaro é cada vez mais difícil.
Conclusão
Esse texto, como toda análise de conjuntura, foi em boa medida escrito no calor dos acontecimentos; portanto, assume os riscos de poder estar errado, parcial ou totalmente. Mas isso é inevitável, o futuro é incerto por definição, principalmente em uma sociedade capitalista localizada de forma subordinada na periferia; entretanto, procurou-se identificar as motivações mais estruturais dos sujeitos políticos, tentando identificar o atual processo político como ele é, e não como se desejaria que fosse.
Mas o que está cada vez mais claro é que a esquerda tem que sair da sua zona de conforto e retornar ao trabalho político cotidiano na periferia (como fazem as Igrejas Evangélicas) e nos locais de trabalho (que os sindicatos não fazem); revitalizar o movimento social e abrir espaço efetivo para a participação popular e não apenas convoca-la, de tempos em tempos, para estar presente em atos e manifestações. A luta parlamentar, estrito senso, já demonstrou os seus limites e até onde se pode chegar, exclusivamente através dela, na limitadíssima democracia brasileira.
No caso particular da educação desencadeou-se uma verdadeira campanha nacional que juntou, além das comunidades universitárias (professores, estudantes e técnicos-administrativos), parlamentares, instituições da sociedade civil (OAB), Reitores e escolas; na qual se combinou a atuação no interior das Instituições (Parlamento e Judiciário) com a mobilização nas ruas. É necessário aprender com essa experiência e amplifica-la na luta em defesa dos direitos, da democracia e da construção de uma agenda alternativa à barbárie e ao neoliberalismo que esse governo representa e põe em prática.
* Luiz Filgueiras é Professor Titular da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia – UFBA. Graça Druck é Professora Titular da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA.
O objetivo deste texto é discutir a conjuntura imediata que, nas últimas semanas, tem se acelerado de forma impressionante. Para isso, se faz necessário tentar identificar e estabelecer o nexo, as relações existentes, entre neoliberalismo, neofascismo e burguesia no Brasil; tal como se evidenciou a partir do movimento social de massa que desembocou no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Dessa forma, espera-se conseguir contextualizar a conjuntura para além de sua aparência imediata, reconstituindo-se a disputa dos interesses de classe, e frações de classe, que estão subjacentes. Acredita-se que essa contextualização permitirá identificar e compreender melhor as possíveis ações das distintas classes, frações de classe e sujeitos em disputa; permitindo especular acerca do futuro do Governo Bolsonaro.
Neofascismo e Estado de Exceção
Dessa forma, espera-se conseguir contextualizar a conjuntura para além de sua aparência imediata, reconstituindo-se a disputa dos interesses de classe, e frações de classe, que estão subjacentes. Acredita-se que essa contextualização permitirá identificar e compreender melhor as possíveis ações das distintas classes, frações de classe e sujeitos em disputa; permitindo especular acerca do futuro do Governo Bolsonaro.
Neofascismo e Estado de Exceção
Os movimentos, governos e líderes de extrema direita, presentes hoje em vários países, estejam estes no centro ou na periferia do sistema capitalista mundial, são produtos genuínos da nova forma e dinâmica de funcionamento desse modo de produção.
O “capitalismo flexível”, impulsionado e moldado pelas novas tecnologias, a financeirização da acumulação e as reformas e políticas neoliberais, revolucionou o modo de produzir e consumir, reconfigurou o trabalho e as classes sociais, impondo uma nova racionalidade em todas as esferas da vida social – que tem como centro e guia a competição e o individualismo.
Essa “grande transformação” estrutural, entendida como a derradeira mundialização do capital e que vem ocorrendo desde os últimos quarenta anos, implicou, tanto no centro quanto na periferia do sistema capitalista, em maior concentração de renda e da propriedade, aumento do desemprego estrutural e difusão da precarização do trabalho, crescimento da pobreza absoluta e relativa, desenraizamento social e grandes movimentos migratórios. Como consequência generalizou-se, em todas as sociedades, a volatilidade, instabilidade, incerteza e crises econômicas – que levaram a sentimentos de insegurança, raiva e o ódio difuso, fobias de todos os tipos, ressentimentos com relação a algum ou alguns “outros”.
Como já evidenciado por outros períodos da história mundial, esse é o tipo de ambiente econômico-social e político no qual vicejam, prosperam e são difundidas as mais variadas formas e expressões de ideologias, movimentos, governos e líderes políticos de extrema direita: pertencentes, ou não, à grande família do fascismo.
O fenômeno contemporâneo mundial que ora se vive, embora não seja cópia do chamado fascismo histórico (Itália e Alemanha), tem fortes características dessa grande família; daí sua denominação de neofascismo. Entre outras:
1- o apelo ao autoritarismo e contra o “sistema” e o Estado de Direito;
2- o uso da legalidade democrática e de suas instituições para constituição de um Estado de Exceção, por dentro da ordem democrática;
3- o ataque raivoso a todas as tendências de esquerda (comunistas, socialistas e socialdemocratas);
4- a defesa do nacionalismo (real ou apenas retórico) xenófobo, com a negação da existência de classes e conflitos de classe no interior da nação;
5- a desqualificação e, no limite, destruição das organizações dos trabalhadores (Partidos, sindicatos, associações etc.);
6- a escolha de algum “outro” como causador e bode expiatório de todos os males, fobias e ressentimentos;
7- o exercício de uma “guerra cultural-ideológica” permanente, na qual se destaca a adoção de narrativas e explicações de caráter místico-religioso e de natureza anti-intelectual, uma espécie de anti-iluminismo que agride a razão, e que procura desacreditar o conhecimento científico, histórico e cultural acumulados durante mais de cinco séculos, desde a época do “Renascimento”.
8- a exploração das emoções e afetos regressivos, com o estímulo e uso da violência, brutalidade e grosseria;
9- e, por fim, como instrumento de difusão e implementação deste “programa”, a mobilização política de massa, com a constituição de um movimento ativo, agressivo e, no limite, violento.
Essas características são comuns a todas as formas de neofascismo que se manifestam concretamente hoje nos mais diversos países, quer estejam ainda apenas na forma de movimentos quer já tenham alcançado a posição de governo ou, em alguns casos, tenham se constituído em regimes neofascistas.
No entanto, como já dito no início, o Neofascismo contemporâneo é um produto político das consequências econômico-sociais da forma de funcionamento do “capitalismo flexível”, mundializado, financeirizado e neoliberal. Portanto, está-se diante de um “neofascismo neoliberal”: uma espécie de combinação aparentemente bizarra de nacionalismo xenófobo com neoliberalismo. Mas, ao mesmo tempo, o Estado de Exceção acompanhado, ou não, de um movimento/regime neofascista parece ser, cada vez mais, a forma política mais adequada ao capitalismo neoliberal – tendo em vista a incapacidade estrutural deste em incorporar os interesses dos “de baixo”.
Em suma o Estado de Exceção (de natureza neofascista ou não) é a resposta que decorre do conflito, cada vez mais agudo, entre capitalismo e democracia, ao mesmo tempo em que expressa a crise do Estado nacional colocado em “xeque” pela mundialização do capital. Por isso, e diferentemente do fascismo histórico, o Neofascismo contemporâneo, de braços dados com o neoliberalismo, não consegue mobilizar o Estado como condutor de um projeto nacional totalizante, que incorpore as distintas esferas constitutivas da sociedade: econômica, social, política e cultural.
Neofascismo no Brasil
No caso do Brasil, o “bolsonarismo” é um “movimento neofascista” efetivamente constituído, política e ideologicamente mobilizador, tendo raízes em certos segmentos e frações de classe da sociedade brasileira – embora aparente ser inorgânico, em virtude da inexistência, ainda, de um Partido político que unifique, organize, discipline e represente os seus vários grupos e tendências. Esse papel vem sendo cumprido, até aqui, pelas redes sociais e a denominada guerra híbrida, com o uso de algorítmicos e robôs que constituem as milícias digitais bolsonaristas e que alcançam seus correligionários, efetivos e potenciais, individualmente, na solidão de seus equipamentos digitais. Essa é uma diferença fundamental de alguns neofascismos contemporâneos, inclusive o bolsonarismo, em relação ao “fascismo histórico” ocorrido na Alemanha e Itália na primeira metade do século XX.
Esse movimento se faz presente no âmbito da sociedade civil e no interior do aparelho de Estado, em especial parcelas do Poder Judiciário e do Ministério Público; cuja expressão maior é a chamada “República de Curitiba”. Tem participação ativa de vários segmentos da “classe média”, em especial a sua parcela proprietária e “autônoma”, e do grande empresariado (identificado ideologicamente ou por oportunismo). Além disso, conta com a militância das Igrejas Evangélicas, principalmente as suas denominações neopentecostais, caracterizadas por uma leitura fundamentalista da Bíblia e praticantes da Teologia da Prosperidade (é dando que se recebe) – justificadoras da meritocracia e do empreendedorismo.
Desse modo, podem ser identificados no movimento neofascista brasileiro três núcleos (todos eles representados no Governo Bolsonaro) que atuam de forma relativamente independente, mas que convergem, podendo vir a se constituir na base de um futuro Partido Neofascista: 1- as milícias digitais presentes nas redes sociais e que constituem o núcleo original e central do bolsonarismo; 2- as Igrejas Evangélicas, político-ideologicamente neoliberais e reacionárias na cultura, na moral e nos costumes; 3- a Lava jato, entendida no seu sentido amplo, político, que agrega segmentos do Judiciário, inclusive membros do STF e do Ministério Público, e a Polícia Federal. Pairando sobre todos eles, encontram-se Instituições privadas de extrema direita (algumas financiadas pelo imperialismo), grupos de empresários e organizações empresariais do grande capital (de diversos setores) com uma agenda neoliberal extremada e fundamentalista.
Cada um desses núcleos atua, principalmente, em um âmbito específico, cumprindo papéis distintos, mas complementares:
1- As milícias digitais, apoiadas em algorítmicos e robôs, inundam as redes sociais de propaganda, palavras de ordem, fake news e ataques aos “inimigos” e às instituições democráticas (com o intuito de desmoralizá-las) e, no limite, convocam e mobilizam para ações e atos no “mundo real”. Elas atingem o indivíduo em sua solidão e de acordo com seus valores e pré-conceitos (com a construção de “perfis” político-econômicos, possibilitados pelo atual capitalismo de vigilância).
2- As Igrejas Evangélicas trabalham direta e diariamente as classes populares, explorando politicamente a fé de seus crentes, redirecionando-os (reafirmando) para valores e causas reacionários. Travam uma permanente guerra cultural-ideológica, criando uma forte identidade de seita. Junto com tráfico de drogas, elas passaram a ocupar o espaço que era anteriormente da esquerda da Igreja Católica (a Teologia da Libertação) e do Partido dos Trabalhadores. A primeira esmagada pelo Vaticano de João Paulo II e Bento XVI; e o segundo abandonando voluntariamente o trabalho político na periferia. Além disso, as Igrejas Evangélicas se fazem presentes na política institucional (no Congresso Nacional e em algumas prefeituras), constituindo-se em uma bancada parlamentar que dá apoio à aprovação de leis e decretos reacionários e antipopulares.
3- A Lava Jato cumpre um papel político-ideológico fundamental para a difusão e defesa do neofascismo, em virtude do âmbito privilegiado no qual atua: o poder judiciário, o ministério público e os órgãos de repressão. Tem o potencial de atacar (acusar, reprimir, julgar e condenar) os inimigos do neofascismo e, ao mesmo tempo, dar cobertura “legal” às ações do movimento neofascista – contribuindo fortemente para a instauração de um Estado de Exceção. Esse núcleo é fundamental; sem ele o movimento neofascista não conseguirá implantar um Estado (Regime) Exceção.
Por fim, o bolsonarismo, como todo neofascismo na periferia do capitalismo, só é nacionalista retoricamente; a condição dependente das burguesias periféricas não levou à constituição de nações completas, os seus interesses estiveram historicamente, desde sempre, articulados de forma subalterna aos interesses do imperialismo em suas distintas fases. O papel do falso nacionalismo no Neofascismo Neoliberal Periférico tem por objetivo político-ideológico negar a existência de classes sociais e seus distintos interesses, sobretudo desconstruindo a possibilidade de uma identidade política própria das classes trabalhadoras. Em síntese, a dimensão nacional substitui e apaga a dimensão social, inclusive deslegitimando distinções étnicas, de gênero e de orientação sexual.
Finalmente, é importante anotar que o Governo Bolsonaro é um governo neoliberal de extrema direita, mas não se constitui ainda em um regime neofascista, por pelo menos duas razões: 1- A corrente bolsonarista divide espaços e iniciativas com a extrema direita tradicional (não fascista) de origem militar; apesar de ambas serem neoliberais, há importantes contradições entre elas na forma de implementação dos interesses do grande capital e de travar a luta político-ideológica com a esquerda. Daí as tensões permanentes entre ambas, que se expressam na desorganização, no funcionamento e no discurso caótico desse governo. 2- As instituições do Estado não foram ainda apropriadas pelo bolsonarismo; há resistência no Judiciário, no Ministério Público e nos diversos órgãos do Poder Executivo. Além disso, há a presença de movimentos sociais organizados e forte oposição nas Universidades e nas escolas, assim como no Parlamento.
Em suma, este é um processo em andamento, que dependerá muito da resiliência das instituições democráticas da sociedade brasileira e, principalmente, da capacidade das forças democráticas se unirem em torno de um programa mínimo de ação contra a extrema direita em geral, e o neofascismo/bolsonarismo em particular. É sempre bom lembrar, que foi essa incapacidade na Alemanha e na Itália, da primeira metade do século XX, que abriu as portas para a ascensão e consolidação do nazismo e do fascismo nesses países.
Burguesia e neofascismo
O ponto de partida para se compreender a relação entre burguesia e neofascismo no Brasil é o reconhecimento de que a burguesia brasileira não é uma classe homogênea; ela é constituída por distintas frações, segundo o recorte que se privilegie: pequena, média e grande burguesia; burguesia agrária, industrial, comercial, de serviços, financeira ou mesmo multisetorial; burguesia exportadora e de mercado interno; e, o corte mais significativo e que nos interessa mais diretamente para o que se quer discutir aqui, qual seja, burguesia cosmopolita e burguesia interna.
A grande burguesia interna, conceito cunhado por Nicolas Poulantzas (1974; 1977), não é sinônimo de burguesia nacional; diferentemente desta última, que já não existe no Brasil há décadas, não possui contradições incontornáveis com os capitais estrangeiros e o imperialismo, não é nacionalista; mas possui um espaço próprio de reprodução do capital que não passa necessariamente pela aliança com estes últimos – portanto, diferencia-se também da burguesia cosmopolita associada, política e objetivamente, ao imperialismo. Essa fração da burguesia brasileira está presente, e pode ser identificada, em vários ramos da indústria de transformação (têxtil, alimentos, bebidas, bens de capital, entre outros), na cadeia produtiva do petróleo, na construção civil pesada, na produção de commodities agrícolas e minerais, em segmentos do grande comércio varejista e do agronegócio.
A fração da burguesia cosmopolita, associada política e objetivamente ao imperialismo, tem presença e pode ser reconhecida no Brasil, principalmente, nos seguintes setores: atividades e mercados financeiros (bancos, fundos de investimento e de pensão, empresas de consultoria e assessoria financeira, seguradoras, corretoras, planos de saúde); empresas brasileiras fornecedoras e prestadoras de serviços, articuladas ou associadas às multinacionais em vários tipos de negócio; alta gerência das empresas multinacionais na indústria e no agronegócio; grandes grupos de marketing e comunicação; grandes escritórios de advocacia e auditoria; e, mais recentemente, grandes universidades privadas, muitas delas já de propriedade do capital estrangeiro.
Desde o início dos anos 1990, a disputa entre essas duas frações da burguesia se expressou nos sucessivos governos que passaram pelo país e nas suas políticas econômicas. Esse conflito se explicitou de forma mais aguda com a ascensão dos governos do PT, cujo projeto “neodesenvolvimentista”, e suas políticas, privilegiaram os interesses da grande burguesia interna, financiando a centralização de seus capitais e internacionalizando grandes grupos econômicos nacionais dessa fração. Isto se fez através do uso dos bancos públicos (BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal), da Petrobrás como centro da construção da cadeia produtiva do petróleo, da política de fortalecimento do mercado interno (crédito, aumento real do salário mínimo, Bolsa-Família e Previdência Social), e da política externa com ênfase na América Latina e África.
Apesar desses governos não baterem de frente com a burguesia cosmopolita, e esta não ter deixado de ganhar no período, ela foi deslocada de sua hegemonia (tal como exercida nos governos de FHC) no interior do bloco no poder que ocupa o Estado brasileiro. Vários projetos do capital financeiro foram contrariados e adiados, ao mesmo tempo em que segmentos populares importantes passaram a ter protagonismo político-social no interior do projeto “neodesenvolvimentista”. Em particular a descoberta e a forma estabelecida para a exploração do pré-sal contrariou profundamente o imperialismo, parceiro fundamental da burguesia cosmopolita.
A partir da piora do cenário internacional, com a crise de 2008, o projeto “neodesenvolvimentista” passou a ter dificuldades em sua implementação; a desaceleração econômica ficou evidente a partir do primeiro Governo Dilma e, reforçada por políticas econômicas equivocadas nesse período (desonerações fiscais) e pelo ajuste fiscal no início do segundo governo, transformou-se em uma recessão econômica, que se aprofundou no Governo Temer. Nesse novo contexto interno e internacional a burguesia cosmopolita e o imperialismo recuperaram o protagonismo político e voltaram à carga, patrocinando, incentivando e redirecionando as manifestações populares de 2013 (originalmente pela contenção dos reajustes das tarifas do transporte público) contra o Governo Dilma e o PT, tendo como mote central a denúncia da existência de corrupção generalizada nas obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas.
Nesse momento nasceu o processo que levou ao golpe de 2016 e, ao mesmo tempo, começou a se constituir o movimento neofascista no Brasil. Após o golpe, o programa político-econômico da burguesia cosmopolita e do imperialismo voltou à ordem do dia, sendo implementado com uma rapidez impressionante: desestruturação da cadeia produtiva do petróleo e da política de conteúdo nacional, redefinição na forma de exploração do pré-sal com a entrega de grande parte dessa riqueza às corporações multinacionais, aprovação de um ajuste fiscal permanente (por vinte anos) e de uma reforma trabalhista absurdamente regressiva e precarizante das relações de trabalho.
Nesse processo do golpe, a desmoralização da política e dos políticos foi peça central no carro-chefe da corrupção, tendo na Lava Jato, no Mistério Público, na Polícia Federal e no Judiciário, além da mídia corporativa, seus instrumentos fundamentais. Após atingir o PT e os partidos da base aliada de seus governos, foram atingidos quase todos os partidos, em especial o PSDB e o DEM. Todo o sistema político foi posto em questão, abrindo as portas, como sempre acontece nessas situações, a algum outsider (verdadeiro ou falso, não interessa) e aos oportunistas de todos os tipos. Nesse contexto, e empurrado pelo movimento neofascista em crescimento, Bolsonaro encarnou (falsamente) o antissistema e, em particular, o antipetismo (de fato) e ocupou o espaço da anti-política.
Esse resultado inesperado do golpe, para a burguesia, foi por ela absorvido pragmaticamente, que colocou, no final das contas, todas as suas fichas na eleição de Bolsonaro – calculando que, uma vez eleito, poderia enquadrá-lo e utilizá-lo sem maiores dificuldades para continuar implementando o seu projeto, em especial a Reforma da Previdência. O problema é que ela não “combinou com os russos”: o movimento neofascista e a família de milicianos não são enquadráveis, têm objetivos, dinâmica e modus operandi próprios.
Os cinco primeiros meses de um governo híbrido – no qual convivem conflituosamente uma extrema direita neofascista, uma extrema direita tradicional (militar) e uma extrema direita neoliberal – mostraram a sua inviabilidade em geral e, em particular, cada vez mais, a sua incapacidade para tocar os interesses da burguesia cosmopolita e do imperialismo: disputas internas grotescas e trapalhadas de todos os tipos se acumularam e, agora, com a agressão às universidades e à educação em geral, despertou definitivamente as ruas e o movimento social.
No momento atual, diversos interesses, acontecimentos e circunstâncias estão convergindo fortemente contra o Governo Bolsonaro, fragilizando-o de tal forma que a possibilidade de um novo impeachment voltou à cena política: a volta do movimento social e das ruas; a investigação de Flávio Bolsonaro, Queiróz e de mais 80 pessoas a eles relacionadas; a dificuldade da tramitação da Reforma da Previdência no Congresso Nacional; a desmoralização de Bolsonaro e de seu governo no plano internacional; a desilusão evidente de seus eleitores e até mesmo de muitos de seus seguidores neofascistas; as várias derrotas que vem sofrendo no Parlamento e as inúmeras ações endereçadas ao STF contra as suas medidas. Nesse contexto, como ficam a burguesia cosmopolita e o imperialismo, a esquerda e os movimentos sociais, a classe média e o movimento neofascista?
A conjuntura imediata
Existem alguns fatos, uns imediatos outros nem tanto, que anunciam, e apontam, para uma inflexão significativa da conjuntura política, quais sejam:
1- O deslocamento da disputa política no interior do Governo Bolsonaro, que o vem marcando desde o início, entre a extrema direita neofascista e a extrema direita militar, em direção ao confronto direto e nas ruas entre, de um lado, o movimento social e as forças democráticas e, de outro, o Governo Bolsonaro com suas ações tresloucadas. Essa disputa, detonada a partir da questão da educação, objeto de ataques do movimento neofascista e de Bolsonaro antes mesmo do início do governo (“Escola Sem Partido”), transbordou, como se viu nas grandes manifestações de 15 de maio, para a luta contra a Reforma da Previdência e, indo mais longe, colocou em questão o Governo Bolsonaro e suas ações como um todo. Daí o centro dos protestos ter sido Bolsonaro e o seu governo, e não o MEC e o seu ministro, sintetizado sem eufemismo nas palavras de ordem, faixas e cartazes, como “Bolsonaro inimigo da educação” e “Fora Bolsonaro”.
2- A investigação da família Bolsonaro, e suas ligações com o crime organizado (as milícias) no Rio de Janeiro, acionada pelo Ministério Público e o Judiciário, através da quebra do sigilo bancário de Flávio Bolsonaro, Queiróz e mais 80 pessoas ligadas direta ou indiretamente a um grande esquema político corrupto que articula o crime organizado e o Parlamento. E sintomaticamente, mais uma vez, com sucessivos vazamentos do conteúdo da investigação (peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa) para os órgãos de imprensa.
3- Na esfera econômica, a informação de que o PIB no primeiro trimestre recuou evidenciou o que já se sabia intuitivamente: a estagnação da economia brasileira, com quase 13 milhões de desempregados (taxa de desemprego de 12,7%), é um fato. A completa inexistência de qualquer política econômica por parte do Governo tornou-se escandalosa e o chavão de que a solução para retomar o crescimento é a Reforma da Previdência não “cola”: efeitos positivos ou negativos que daí possam advir não terão qualquer influência na situação presente, e nem mesmo no curto e médio prazo futuro. Para piorar, a inflação dá sinais de crescimento.
4- A informação de que o chamado “centrão” estaria articulando a substituição da Reforma da Previdência de Paulo Guedes pela proposta anterior, do Governo Temer, evidencia a enorme dificuldade do Governo Bolsonaro em acelerar e aprovar essa Reforma. Some-se a isso a derrota de Moro, que viu o COAF ser retirado de seu Ministério e ser devolvido ao Ministério da Economia; além da enorme dificuldade dos parlamentares aceitarem o seu “pacote anticrime” encaminhado ao Congresso.
5- O isolamento político do Governo Bolsonaro no plano internacional, em diversos órgãos e acordos multilaterais, com críticas duras de revistas, jornais e demais veículos de comunicação expressivos das mais distintas correntes de pensamento. Além disso, os atritos provocados com a China e os países árabes anunciam consequências desastrosas, do ponto de vista econômico, para setores importantes do agronegócio brasileiro.
6- Crise, disputas e confusão no PSL, suposto partido do governo, com vários de seus parlamentares criticando Bolsonaro e seu governo; além do desembarque de personalidades “famosas” (políticos, artistas e jornalistas principalmente) que fizeram parte ou apoiaram o bolsonarismo em sua primeira hora. Tudo isso acompanhado de comentários no interior do Congresso Nacional e em grupos de redes sociais aventando a possibilidade de Bolsonaro não terminar o seu mandato.
7- Convergência da mídia corporativa, associada ao golpe de 2016 e à eleição de Bolsonaro, nas críticas pessoais a Bolsonaro e ao seu desgoverno (inclusive em editoriais); com vários de seus colunistas também colocando a possibilidade de impeachment e a dificuldade cada vez maior de se conseguir passar a Reforma da Previdência.
Por fim, e para fechar o clima de final de festa, a divulgação por parte de Bolsonaro de uma carta escrita por um anônimo (depois, soube-se que é um ex-candidato a vereador derrotado, integrante do Partido Novo), na qual se subtende duas possibilidades para Bolsonaro e o seu governo: 1- um golpe de Estado, com o fechamento do Congresso, do STF e outras Instituições do Estado de Direito, e a instalação de uma ditadura; ou 2- a renúncia de Bolsonaro, com a justificativa que o país é ingovernável, pois há inúmeros inimigos que não deixariam o Presidente governar.
Diante desse cenário, como estão se movimentando as distintas classes sociais e suas frações; quais as alternativas colocadas para elas? E, o mais importante, e tendo em vista a compreensão do significado dessa nova conjuntura, como devem atuar as forças democráticas, os movimentos sociais e os Partidos de oposição?
Iniciando-se pela burguesia, em especial a sua fração cosmopolita, fica cada vez mais claro a sua dificuldade em marchar com Bolsonaro; o seu principal interesse nesse momento, a Reforma da Previdência, corre sério risco de ser fortemente “desidratada” ou mesmo ser substituída por outra proposta. A sua expectativa e cálculo de que poderia se utilizar de Bolsonaro, enquadrando-o dentro de limites aceitáveis, não se confirmou; as reações protagonizadas pelo mercado financeiro (a sua cara mais visível) evidencia uma grande instabilidade, com quedas sucessivas da Bolsa e valorização do dólar, vocalizadas fortemente pela mídia corporativa. Vai ficando claro que Bolsonaro, a esta altura, mais atrapalha do que ajuda na implementação da agenda das classes dominantes; por isso, conseguir se desvencilhar dele seria um grande alívio. Em princípio, com o vice assumindo (que já demonstrou a sua total adesão ao projeto neoliberal de extrema direita) as coisas poderiam se tornar mais tranquilas para burguesia.
Mas como fazê-lo, sem interromper a tramitação da Reforma da Previdência e sem reforçar o campo político democrático-popular e de esquerda? O melhor dos mundos para a burguesia, o menos traumático, seria a renúncia de Bolsonaro (que poderia ser forçada nos bastidores, através da ameaça da prisão de toda a família, que decorreria da evolução correta da investigação disparada pelo Ministério Público contra um dos filhos e outros parentes). Nessa hipótese, assumiria imediatamente o vice Mourão (com uma reforma ministerial radical) e tudo o mais, em especial a Reforma da Previdência, continuaria a tramitar normalmente no Congresso Nacional. Essa situação caracterizaria a continuação do Golpe de 2016 e seria uma boia de salvação para Bolsonaro e a extrema direita.
A alternativa, o impeachment, é mais complicada porque, além de paralisar a agenda parlamentar, reforçaria o movimento das ruas já em andamento e fortaleceria o campo político democrático-popular (a depender de como este se comportar), podendo desembocar em novas eleições. Esse é um risco também presente na hipótese da renúncia. A hipótese do impeachment, se prevalecer, significará uma derrota monumental do movimento e da extrema direita neofascista no país.
Já no extremo político oposto, o movimento democrático-popular e a esquerda, finalmente, e através das ruas, conseguiram trazer o Governo Bolsonaro e o movimento neofascista para o confronto direto; desmoralizando-os e evidenciando a sua completa incapacidade de dirigir os rumos do país. Conseguiram trazer para o centro da luta e dos protestos não apenas a educação e a Reforma da Previdência, mas o próprio Governo Bolsonaro no seu todo, expresso na palavra de ordem “Fora Bolsonaro”. Mas como já visto anteriormente, essa é uma perspectiva que está se espalhando para o conjunto da sociedade, inclusive no interior da burguesia. Como então se posicionar sobre o impeachment, tendo em vista que esse também poderá ser um caminho a ser perseguido pela burguesia – que conforme vimos, apostaria num governo (Mourão-Maia) mais consistente e menos tumultuado para tocar os seus interesses?
Essa é uma situação complicada para o movimento democrático-popular e a esquerda, mas não nos parece que haja uma alternativa: a prioridade hoje é derrotar o movimento neofascista e parar Bolsonaro. O conjunto de sua obra até aqui, e o que mais poderá vir adiante, é um processo de destruição de tudo que funciona no país: a Petrobrás e o pré-sal, os bancos públicos, a Previdência Social solidária, o IBGE, as universidades e a educação em geral (cortes de verbas e monitoramento de suas direções), a diferenças, a política ambiental etc. Ele e seu governo são diferentes de tudo que já se viu no país e já deram razões e motivos de sobra para caírem; o impeachment de Bolsonaro não é um golpe, é uma imposição política para se começar a reconstrução do país. Essa é uma tarefa inadiável e não depende da burguesia vir assumi-la ou não.
O movimento democrático-popular não pode abrir mão de tentar ser o protagonista maior na execução dessa tarefa, não pode assistir o processo de camarote, deixando a sua condução nas mãos da burguesia se esta vier a se engajar. Vai defender a legitimidade de Bolsonaro porque ele foi eleito pelo voto, porque está com receio das consequências do impeachment e das dificuldades futuras para travar a luta política contra a burguesia? Nunca é demais lembrar que o a tradição política fascista é de se utilizar das instituições e mecanismos democráticos para acender ao poder e, depois, perpetrar um golpe contra o Estado de Direito e implantar uma ditadura.
Se, de fato, houver renúncia, a mobilização popular tem que se aprofundar e radicalizar contra a Reforma da Previdência e exigir novas eleições. Mourão, tal como Temer, também não foi eleito e é um “pato manco” pior do que Temer. Além disso, a atuação competente no Parlamento, como está sendo feita por alguns parlamentares da oposição, é fundamental. Em suma, a derrubada de Bolsonaro será uma grande vitória do movimento democrático-popular e da esquerda; com ou sem Mourão o jogo recomeça com esse campo fortalecido.
E mais, pelo conjunto da obra o impeachment está dado; falta construir as condições políticas para que o processo deslanche e aconteça. Nas últimas semanas essas condições vêm sendo construídas aceleradamente. Em sentido oposto, não há a menor possibilidade de ruptura institucional a partir da extrema direita neofascista e de Bolsonaro, já completamente desmoralizados. Esse é outro tipo de receio que anda povoando a cabeça de alguns segmentos da esquerda, para ficarem contra o “Fora Bolsonaro”.
Em suma, o “fora Bolsonaro” já está na ordem do dia: na grande mídia, nos blogs e personagens de direita e esquerda, nas ruas, no Congresso; porque já está claro que o Governo Bolsonaro destrói todas as possibilidades do país em todos os campos, e não apenas na educação. O “Fora Bolsonaro” já começou a se impor a partir da vontade das massas e do movimento social. Se as direções não assumirem perderão o “bonde da história”
No entanto, a defesa de que o movimento democrático-popular deve encampar, e dirigir, a luta pelo impeachment, não deve ignorar os interesses, os objetivos e as ações da burguesia caso ela venha a se incorporar ao processo. Mas isso é um elemento a ser considerado na tática de luta desse movimento e não uma prova de que não se deve ser a favor do impeachment, porque a burguesia também tem interesse nele. Significa reconhecer que a luta política é difícil e contraditória, que não combina com raciocínios binários nem comportamentos contemplativos; exatamente porque há a possibilidade da burguesia encampar o impeachment é que o movimento democrático-popular e a esquerda devem sair na frente – colocando claramente o seu projeto alternativo.
Desse modo, não há qualquer ilusão sobre a natureza da outra extrema direita (a militar, que ainda tem a Guerra Fria como referência política) que participa do Governo Bolsonaro e que tenderá a assumir o comando após o impeachment. A origem, o comportamento e as declarações de seus integrantes não deixam margem a dúvidas: são autoritários e tendem no limite a não respeitar o Estado de Direito (a vocação a querer tutelar a nação), defendem o alinhamento subalterno aos EUA, incorporam a ideologia e o programa político-econômico neoliberal (não são nacionalistas), têm a mesma concepção de “segurança” da República de Curitiba e de Sérgio Moro. Em suma, o programa e a agenda (que é da burguesia cosmopolita) permanecem os mesmos, sem, contudo, a guerra cultural permanente e a mobilização de massa pelas redes sociais; trata-se, de fato, de uma extrema direita militar tradicional, que se reciclou incorporando o neoliberalismo.
Tudo isso está claro, e não pode ser ignorado. No entanto, essa “sinuca de bico” deve ser enfrentada pelo movimento democrático-popular e a esquerda; não dá para ficar assistindo ao processo, caso ele ocorra, e muito menos defender o mandato de Bolsonaro, com o argumento de que o seu impeachment é um golpe – depois de tudo o que já se sabe sobre a sua eleição fraudulenta e, pior, depois de tudo do que o seu governo já promoveu, e está promovendo contra a democracia. Por isso, hoje, a forma de se enfrentar esse problema é assumir com convicção, sem vacilações, a bandeira de “Fora Bolsonaro” e procurar ser o protagonista maior desse processo e, ao mesmo tempo, vinculado ao impeachment, defender “Eleições Diretas Já”. Em síntese, “Fora Bolsonaro e Eleições Diretas Já” é a luta a ser travada contra a extrema direita, neofascista e militar, e contra a agenda neoliberal da burguesia. E essa luta exige, obviamente e mais do que nunca, um movimento de massa, uma mobilização popular poderosa, e não apenas a atuação no Congresso Nacional.
Por sua vez, a classe média que se dividiu desde o impeachment de Dilma e as eleições para Presidente continua, e continuará dividida, entre o campo democrático e o campo da direita e da extrema direita. Contudo, parece claro que está havendo uma mudança de maioria no seu interior: o desengano e a decepção com os Governos Temer e, sobretudo, Bolsonaro (com medidas e políticas que atingem amplamente os interesses de vários de seus segmentos) estão empurrando de novo (tal como num movimento pendular) diversos de seus segmentos para o campo democrático.
Por fim, o conjunto dos trabalhadores (assalariados, conta-própria, informais, precarizados, servidores públicos etc.) sentem na própria pele os efeitos do Governo Temer e do desgoverno Bolsonaro. O desemprego cresceu, a precarização cresceu, a subocupação aumentou, os rendimentos caíram e, para piorar, a inflação está subindo. Apesar da crescente influência das Igrejas Evangélicas na periferia, a percepção da piora das condições de vida e trabalho é acachapante; não há discurso religioso e/ou moral que supere isso. A defesa do Governo Bolsonaro é cada vez mais difícil.
Conclusão
Esse texto, como toda análise de conjuntura, foi em boa medida escrito no calor dos acontecimentos; portanto, assume os riscos de poder estar errado, parcial ou totalmente. Mas isso é inevitável, o futuro é incerto por definição, principalmente em uma sociedade capitalista localizada de forma subordinada na periferia; entretanto, procurou-se identificar as motivações mais estruturais dos sujeitos políticos, tentando identificar o atual processo político como ele é, e não como se desejaria que fosse.
Mas o que está cada vez mais claro é que a esquerda tem que sair da sua zona de conforto e retornar ao trabalho político cotidiano na periferia (como fazem as Igrejas Evangélicas) e nos locais de trabalho (que os sindicatos não fazem); revitalizar o movimento social e abrir espaço efetivo para a participação popular e não apenas convoca-la, de tempos em tempos, para estar presente em atos e manifestações. A luta parlamentar, estrito senso, já demonstrou os seus limites e até onde se pode chegar, exclusivamente através dela, na limitadíssima democracia brasileira.
No caso particular da educação desencadeou-se uma verdadeira campanha nacional que juntou, além das comunidades universitárias (professores, estudantes e técnicos-administrativos), parlamentares, instituições da sociedade civil (OAB), Reitores e escolas; na qual se combinou a atuação no interior das Instituições (Parlamento e Judiciário) com a mobilização nas ruas. É necessário aprender com essa experiência e amplifica-la na luta em defesa dos direitos, da democracia e da construção de uma agenda alternativa à barbárie e ao neoliberalismo que esse governo representa e põe em prática.
* Luiz Filgueiras é Professor Titular da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia – UFBA. Graça Druck é Professora Titular da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA.
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