Há seguras e convincentes razões para que a universidade brasileira reflita, discuta e pesquise o que é a liberdade de expressão e os modos de criá-la, garanti-la e promovê-la nas sociedades democráticas.
Há hoje, nos planos internacional e nacional, um largo dissenso sobre se o Estado deve estabelecer regulações sobre a propriedade e os modos de funcionamento dos meios de comunicação de massa, sobre os limites e sentidos da atuação do Estado neste campo tão decisivo para a democracia. Este dissenso democrático em geral se apoia sobre diferentes tradições de entendimento do que vem a ser a liberdade de expressão.
A opção por dogmatizar o conceito de liberdade de expressão, de afirmá-lo de modo unidirecional e fundamentalista, de naturalizá-lo de forma antipluralista revela um contrassenso absurdo. Por esta dogmática discutir a liberdade de expressão seria desde já ameaçá-la, colocá-la em risco. Como se a liberdade de expressão pudesse negar a expressão da liberdade... em discuti-la.
Pelo contrário, o debate acadêmico e público sobre a liberdade de expressão só pode alentar, esclarecer e desenvolver as teorias da democracia. Se o direito ao voto universal – sem exclusões de gênero, de renda ou de escolaridade – marcou toda uma época histórica de construção da democracia, o direito à voz pública, de falar e ser ouvido, para todos os cidadãos e cidadãs parece estar no centro dos impasses e desafios das democracias contemporâneas.
Este livro, fruto do 1º Colóquio “Liberdade de Expressão: as várias faces de um desafio”, realizado na UFMG em março de 2013, constrói-se a partir da visão de que a relação entre política e comunicação na Modernidade se organiza na ordem dos fundamentos. É insuficiente pensá-las através de uma relação interdisciplinar entre duas áreas de estudo que contém zonas de confluência. Não se trata, pois, de pensar as relações entre política e comunicação, mas do desafio de constituir um campo de pensamentos no qual a própria política e a comunicação mútua e geneticamente se constituem em seus conceitos fundamentais.
Política e comunicação são dimensões que não podem ser analiticamente isoladas sem se perder a compreensão do próprio objeto que se investiga. Este princípio organizador deste livro – o da relação fundante e incontornável entre política e comunicação – não pode e não deve ser banalizado.
Há quatro razões que nutrem a absoluta atualidade deste princípio para o qual este livro se propõe a contribuir através de uma pauta ampla e permanente de pesquisas e reflexões.
A primeira está na ordem de uma falta nuclear que deriva da separação disciplinar e departamental, na teoria e na pesquisa, entre as áreas da comunicação e da política. Existe já, no plano internacional e nacional, um rico acúmulo de estudos teóricos e empíricos interdisciplinares entre comunicação e política. Mas pode-se fazer um diagnóstico seguro de que a maior parte das teorias democráticas e das teorias da comunicação contemporâneas não pensa, em seus fundamentos, as condições comunicativas democráticas de sua prática política nem as condições públicas democráticas de seu exercício comunicativo.
Neste campo de pensamentos que se busca construir, o diagnóstico desta falta é, em si mesmo, uma denúncia. Toda teoria que se pretende democrática, mas que não pensa as dimensões públicas da liberdade de expressão, as relações instituintes entre a constituição da cidadania e o direito à voz pública, esbarrará em impasses ou antinomias centrais. Toda teoria da comunicação que despolitiza o seu objeto, negando ou marginalizando as fundações políticas da comunicação que se faz em sociedade, está na verdade optando por conceber a liberdade de expressão como um direito que se privatiza ou que se realiza na ordem do privado, em geral mercantil.
Sociedades centradas na mídia e em mutação
A segunda razão que conspira contra a banalização do princípio que organiza este livro – a gênese mutuamente configuradora entre política e comunicação social – é a do diagnóstico que vivemos cada vez mais em sociedades centradas na mídia e em processo dinâmico de mutação.
A mídia ocupa uma posição de centralidade nas sociedades contemporâneas, permeando diferentes processos e esferas da atividade humana, em particular a esfera da política.
A noção de centralidade tem sido aplicada nas ciências sociais igualmente a pessoas, instituições e ideias-valores. Ela implica na existência de seu oposto, vale dizer, o periférico, o marginal, o excluído, mas, ao mesmo tempo, admite gradações de proximidade e afastamento. Pessoas, instituições e ideias-valores podem ser mais ou menos centrais.
Um pressuposto para se falar na centralidade da grande mídia (sobretudo a eletrônica) nas sociedades é a existência de um sistema nacional (network) consolidado de telecomunicações. A maioria das sociedades urbanas contemporâneas pode ser considerada como “centrada na mídia” (media centric), uma vez que a construção do conhecimento público que possibilita a cada um de seus membros a tomada cotidiana de decisões nas diferentes esferas da atividade humana não seria possível sem ela.
Um bom exemplo dessa centralidade é o papel crescente da mídia no processo de socialização e, em particular, na socialização política. A socialização é um processo contínuo que vai da infância à velhice e é através dele que o indivíduo internaliza a cultura de seu grupo e interioriza as normas sociais. Uma comparação da importância histórica de diferentes instituições sociais no processo de socialização revelará que a família, as igrejas, a escola e os grupos de amigos vêm crescentemente perdendo espaço para a mídia que se transformou no “educador coletivo” onipresente.
Todavia, o papel mais importante que a mídia desempenha decorre do poder de longo prazo que ela tem na construção da realidade através da representação que faz dos diferentes aspectos da vida humana – das etnias (branco/negro), dos gêneros (masculino/feminino), das gerações (novo/velho), da estética (feio/bonito) etc. – e, em particular, da política e dos políticos. É, sobretudo, através da mídia – em sua centralidade – que a política é construída simbolicamente, adquire um significado. [As representações da realidade feitas pela mídia compõem os diferentes Cenários de Representação (CR) que constituem a hegemonia nas sociedades media centric. Sobre o conceito de CR ver Lima (2004) e, especificamente sobre o Cenário de Representação da Política (CR-P), ver Lima (2012).]
A política nos regimes democráticos é (ou deveria ser) uma atividade eminentemente pública e visível. É a mídia – e somente ela – que tem o poder de definir o que é público no mundo contemporâneo.
Na verdade, a própria ideia do que constitui um “evento público” se transforma a partir da existência da mídia. Antes de seu desenvolvimento, um “evento público” implicava em compartilhamento de um lugar (espaço) comum; copresença; visão, audição, aparência visual, palavra falada; diálogo. Depois do desenvolvimento da mídia, um evento para ser “evento público” não está limitado à partilha de um lugar comum. O “público” pode estar distante no tempo e no espaço. Dessa forma, a mídia suplementa a forma tradicional de constituição do “público”, mas também a estende, transforma e substitui.
Essa nova situação provoca consequências imediatas tanto para quem deseja ser político profissional quanto para a prática da política. Isso porque a visibilidade tem que ser disputada: (a) os atores políticos têm que disputar visibilidade na mídia; e (b) os diferentes campos políticos têm que disputar visibilidade favorável de seu ponto de vista.
Assim, a interação constitutiva entre mídia e política processa-se em todas as fases do processo democrático: na construção da agenda, através do filtro das informações publicadas, do modo de editá-las, da seleção e ênfase das opiniões, na visibilidade e dramatização de temas selecionados; na ponderação e presença dos próprios atores políticos, através da superexposição de porta-vozes ou do silenciamento de outros, na apresentação positiva ou negativa com que são noticiados, influindo assim no próprio pluralismo e assimetrias do processo político de participação e competição política; no grau de exposição e crítica dos governos e de suas políticas, contribuindo decisivamente para a formação dos juízos públicos.
Mais ainda, a relação entre a política e as grandes empresas de comunicação em geral não é de exterioridade, mas de compenetração, organicidade e até simbiose, conformando redes doutrinárias e de interesses entre o sistema político e o sistema de mídia. Assim fenômenos de partidarização, parcialidade, estreitamento de pluralismo ou até censura sistemática a informações e opiniões antagonistas não parecem ser fenômenos extraordinários e sim recorrentes e típicos.
Mas a relação entre política e comunicação é certamente de mão dupla. As políticas de Estado historicamente definem padrões institucionais singulares, conformando sistemas de comunicação predominantes públicos ou privados mercantis, incentivando ou limitando a concentração de propriedade, concentrando ou distribuindo verbas de publicidade, regulando ou desregulando o exercício da comunicação. Estados de origem colonial, periféricos ou dependentes, que sofrem de um déficit de soberania, podem sofrer de um processo sistemático de colonização midiática. Na medida em que os sistemas de comunicação operam com massas enormes de recursos, de tecnologias em grande escala, esta dependência das políticas e orçamentos públicos é cada vez maior. Além disso, diferenciações estruturais de acesso à renda ou à educação, aos direitos de gênero e étnicos, condicionam fortemente o direito à voz pública cidadã, de falar e ser ouvido.
Esta relação simbiótica entre política e comunicação nas sociedades modernas precisa ser necessariamente historicizada e singularizada em contextos. E, à medida que o campo das comunicações passa por mudanças estruturais na contemporaneidade e se alteram radicalmente as próprias bases de sua operação, seria necessário diferenciar o que poderíamos chamar de “grande mídia” e de “nova mídia”.
A expressão grande mídia – mídia plural latino de medium – pode ser entendida como o conjunto das instituições que utiliza tecnologias específicas para “intermediar” a comunicação humana. Vale dizer que a grande mídia implica sempre na existência de uma instituição e de um aparato tecnológico para que a comunicação se realize. Esse é um tipo específico de comunicação, realizado através de instituições que aparecem tardiamente na história da humanidade e constituem-se em um dos importantes símbolos da modernidade. Duas características da comunicação da grande mídia são a sua unidirecionalidade e a produção centralizada, integrada e padronizada de seus conteúdos.
Já a expressão nova mídia serve para designar qualquer forma de comunicação realizada através da rede mundial de computadores, isto é, da internet. Ao contrário da grande mídia, a nova mídia possibilita a interação on line entre emissor e receptor através de computadores pessoais fixos e/ou móveis (celulares, laptops, notebooks etc.). [Essas definições, por óbvio, constituem uma simplificação. A grande mídia digitalizada também oferece, tecnicamente, a possibilidade de interação.]
Compreender em contextos singulares as formas de interação, de transição entre a grande mídia e a nova mídia é certamente um dos desafios centrais para quem assume como princípio analítico fundante a relação entre política e comunicação. É este mesmo princípio que pode permitir compreender estes macro processos de mudança a partir da interação entre seus condicionantes institucionais, as posições estruturais de propriedade econômica e de formas novas de organização e interação social, fugindo a prognósticos impressionistas que conferem às novas tecnologias o poder unidimensional de moldar futuros.
Filosofia política e regulação do pluralismo conceitual
Uma terceira razão que confere alta complexidade ao desafio de pensar as relações fundantes entre política e comunicação na Modernidade diz respeito ao largo dissenso conceitual, à polissemia de sentidos, à cristalização de linguagens alternativas e, inversamente, ao deslizamento sincrético de significados que caracteriza o campo de estudos das relações entre comunicação e política. Esta situação particularmente babélica não diz respeito apenas à crise de paradigmas das ciências sociais contemporâneas ou mesmo ao dissenso contemporâneo do estado da arte das teorias democráticas, mas é próprio de estudos interdisciplinares que combinam códigos discursivos variados sem o recurso a formas sistemáticas de regulação.
A grande opção teórica e de pesquisa inscrita neste livro é de convocar a filosofia política, em seu largo pluralismo de tradições, para regular este dissenso conceitual e para estabelecer campos comuns de sentido.
Os recursos da filosofia política – a sua disposição a abarcar largas temporalidades e construir conceitos unitários para além da rigidez das diversas disciplinas que foram separando e especializando o conhecimento das sociedades, a sua ambição de rigor e, ao mesmo tempo, seu método dialógico, a sua resistência ao fechamento de sentidos e a sua tradição antidogmática – são imprescindíveis para se fundar um campo de pensamento que unifique política e comunicação.
Estes recursos são particularmente decisivos para investigar e superar o impasse dialógico muito frequente nas democracias ocidentais sobre o que é liberdade de expressão e como ela deve ser regulada em uma sociedade democrática. Na verdade, são as diferentes tradições conceituais do que é liberdade construída pelas linguagens formadoras da Modernidade que esclarecem os contrastantes discursos públicos em defesa da liberdade de expressão.
Assim, neste livro comparecem pensamentos republicanos, liberais cívicos, pragmáticos críticos, socialistas democráticos, democráticos deliberacionistas dispostos a compartilhar, com seus pluralismos, um campo comum de reflexões e pesquisas.
Uma abordagem praxiológica
E, finalmente, a quarta razão que nutre o princípio organizador deste livro é reunir reflexões de teoria com a pesquisa sistemática sobre a história e a contemporaneidade dos desafios vinculados à construção da liberdade de expressão no Brasil. O diálogo entre este duplo trabalho permitirá enriquecer mutuamente a construção de conceitos universais e a singularidade da experiência inacabada de construção republicana do Brasil.
A longa história colonial e a fundação de um Estado nacional autocrático, assentado na escravidão, na cultura patriarcal e nos privilégios patrimonialistas, tornou central ao longo de nossa formação a “cultura do silêncio” ao invés da participação ativa dos cidadãos em uma opinião pública democrática.
Até relativamente pouco tempo, o Brasil não dispunha de uma mídia de alcance nacional. Embora a imprensa (jornais e revistas) exista entre nós desde o século XIX e o cinema e o rádio desde a primeira metade do século XX, por peculiaridades geográficas e históricas só se pode falar em uma mídia nacional a partir do surgimento das redes (networks) de televisão, e isto já no início da década de 1970, portanto, há cerca de 40 anos. O fato de um moderno sistema de telecomunicações ter se constituído exatamente em período de ditadura militar e organicamente vinculado a seus interesses políticos e econômicos só evidencia o quanto o regime de sua propriedade, sua concentração e sua regulação careceram na origem de um ethos democrático básico.
Esta contradição entre a formação de um sistema de comunicações moderno consolidado na ditadura e as condições básicas da formação de uma opinião pública democrática foi transmitida para a contemporaneidade brasileira sob a forma de um impasse constitucional. Se a Constituição Federal fundamenta princípios democráticos de relação entre mídia e democracia, tem até agora prevalecido a resistência, formada pelos interesses empresariais na comunicação e seus lobbies políticos, a qualquer regulação democrática e pluralista do setor.
Assim, o impasse dialógico sobre a liberdade de expressão se expressa na democracia brasileira contemporânea sob a forma de um impasse constitucional, que condiciona fortemente toda a práxis democrática. Por este caminho, se a práxis democrática brasileira for incapaz de pensar os fundamentos da comunicação democrática entre os cidadãos ela está perdendo a autoconsciência sobre seus impasses fundamentais.
É para este caminho, democrático e pluralista, informado e dialógico, que este livro busca, nas suas limitações, contribuir.
Referências
- Lima, Venício A. de (2004). “Os ‘Cenários de Representação’ e a política”. In: RUBIM, A. A. Canelas. (org.). Comunicação e Política: Conceitos e Abordagens. Salvador/São Paulo: UFBA/UNESP, p. 9-40.
- Lima, Venício A. de (2012). “Cenário de Representação da Política (CR-P): um conceito e duas hipóteses sobre a relação da mídia com a política” in idem, Mídia: Teoria e Política. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª edição; 2ª. reimpressão; p. 179-216.
* Juarez Guimarães é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG e co-autor com Ana Paola Amorim de A Corrupção da Opinião Pública – Uma defesa republicana da liberdade de expressão, Boitempo, 2013, entre outros livros. Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e organizador/autor com Juarez Guimarães de Liberdade de Expressão: as várias faces de um desafio, Paulus, 2013, entre outros livros.
** Introdução de Liberdade de Expressão: as várias faces de um desafio, de Venício A. de Lima e Juarez Guimarães (orgs.), 200 pp., Editora Paulus, 2013; R$ 25; título original “Política e comunicação se constituem mútua e geneticamente”.
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