Por Antonio Luiz M.C. Costa, na revista CartaCapital:
Rolihlahla Mandela nasceu em plena Primeira Guerra Mundial, recebeu o apelido inglês de Nelson de sua primeira professora primária segundo o costume do tempo, mas ficou mais conhecido de seus companheiros de luta como Madiba (nome de seu clã da etnia Xhosa) e do povo sul-africano como Tata, “pai”. Pensou como marxista, combateu como revolucionário e governou como reformista. Pode ser reivindicado como exemplo tanto pela esquerda radical quanto pela pragmática, embora a lição a ser aprendida seja, mais razoavelmente, que qualquer grau de sucesso depende da disposição de adaptar os meios e fins imediatos ao momento histórico sem abandonar os princípios e os fins últimos.
Inaceitável é tentar expurgar da sua história os confrontos com a brutalidade do apartheid que a marcaram, como se ele tivesse caído do céu em 1990 para trazer a paz e a fraternidade e desde então seu país tivesse vivido feliz para sempre. Falsificações como a da revista Veja, uma editora com 30% de capital do grupo sul-africano Naspers, que defendeu o apartheid até o último suspiro, chamá-lo de “Guerreiro da Paz” na capa, enquanto seus blogueiros insistiam em classificá-lo de terrorista, são parte da tentativa de cooptar uma vida revolucionária para fins conservadores. Que atingiu o cúmulo do ridículo com argumentos em blogs, jornais ou na tevê que Mandela seria contra as cotas raciais “petistas”: “Aos negros seria conveniente mirar-se nos exemplos de igualdade e jamais lutar por cotas”, atreveu-se a escrever um néscio no Diário da Manhã, de Goiânia, num artigo de opinião intitulado “O Legado de Mandela”.
Nem só colunistas obscuros de gazetas provincianas demonstraram ignorância abissal. Mais impressionante, por partir de um jornal de grande circulação, foi o editorial do El País de 11 de novembro, que criticou a presença no funeral de Raúl Castro e Robert Mugabe, “ditadores com nada que ver com Mandela” (sic). Nada a ver teve Bush, que manteve Madiba e seu partido na lista de terroristas obrigados a obter uma autorização especial para entrar nos EUA até julho de 2008. Ou o presidente português Cavaco Silva, que em 1987, quando primeiro-ministro, fez Portugal votar na ONU contra uma resolução de apoio à luta contra o apartheid. Ou David Cameron: ainda em 1989 tentava fazer lobby para reverter as sanções contra a segregação sul-africana.
Madiba não foi um Cristo ao estilo masoquista e kitsch dos católicos tradicionalistas (sequer o Jesus real o foi, mas essa é outra história). Embora tenha conduzido com sucesso uma transição pacífica, ela só foi possível porque Mandela antes liderou e planejou a luta, inclusive armada, contra o apartheid, com apoio quase solitário da União Soviética, China e Cuba, e porque, enquanto estava na prisão, outros continuaram a lutar nas ruas em seu nome até obrigar o regime branco a aceitá-lo como interlocutor, negociar e, ao final do processo, ceder-lhe o poder. Quem quiser pode questionar suas escolhas éticas e políticas, mas sem elas Mandela não teria sido quem foi, nem merecido as homenagens do mundo.
Uma vez no governo, não ignorou a realidade de colonização e segregação. Não fingiu que o problema estava resolvido e brancos e negros haviam se tornado iguais por um passe de mágica. Iniciou a construção dessa igualdade na prática, inclusive com cotas raciais. Empresas grandes ou pequenas de todos os setores cumprem metas de participação de não brancos (mestiços, indianos e orientais incluídos) na força de trabalho, gerência e propriedade do capital. Universidades e faculdades também praticam a “discriminação positiva”.
Quando Mandela iniciou sua militância política, em 1943, defendia a independência do movimento negro em relação aos indianos, mestiços e comunistas (inclusive brancos), contrariando nisso a maioria do Congresso Nacional Africano, socialista e inclusivo desde 1912. Mudou de posição no início dos anos 1950, quando, convencido por amigos comunistas e pela cooperação dos soviéticos com os movimentos de independência africanos, aderiu ao marxismo e, por isso, a uma concepção de luta política capaz de ir além da raça e unir todos os oprimidos. Exatamente quando o apartheid se consolidava (a partir da eleição de 1948, da qual os negros foram excluídos), o comunismo era posto fora de lei (pelo Ato de Supressão de 1950) e se iniciava a segregação física e geográfica das raças.
Mandela foi preso pela primeira vez em 1952, em nome do Ato de Supressão, depois de incitar a desobedecer às leis do apartheid (principalmente a que obrigava os negros a portar passaportes fora das reservas a eles designadas, os bantustões) em um ato público da “Campanha do Desafio” pela desobediência civil, tática que para o Mahatma Gandhi e para parte do CNA era a “alternativa ética”, mas para Mandela era simplesmente a única opção realista do momento. Em 1955, depois de a resistência passiva e protestos não conseguirem evitar o despejo de todo o bairro negro de Sophiatown, onde morava, passou a defender a luta armada, enquanto continuava a organização de greves e protestos, passava por duas prisões e tinha, na prática, uma dupla militância, atuando também no Partido Comunista.
Em 1961, inspirado por Fidel Castro e Che Guevara, fundou e liderou a organização Umkhonto we Sizwe (“Lança da Nação”, mais conhecida como MK), formada na maior parte por comunistas brancos, cujo objetivo era promover sabotagem e ataques noturnos, sem vítimas, a usinas elétricas, escritórios do governo e ferrovias. Em 16 de dezembro, quando os brancos comemoravam o aniversário de sua vitória sobre os zulus de 1838, lançou 57 ataques à bomba simultâneos. Até meados de 1963, cerca de 200 instalações foram bombardeadas e a única vítima fatal foi um militante morto pela própria bomba.
Mandela voltou a ser preso em agosto de 1962 com ajuda da CIA e inicialmente condenado a cinco anos por viajar ao exterior sem permissão e incitar greves. Em 1964 foi novamente julgado por seu envolvimento com o MK e seu “discurso do julgamento de Rivonia”, proferido às vésperas de ser condenado à prisão perpétua pelo Supremo Tribunal sul-africano, inspiraria a luta contra o apartheid por décadas, foi em parte inspirado no igualmente histórico discurso de Fidel Castro ao ser condenado pelo fracassado ataque ao quartel Moncada, “A História me Absolverá”. Ao lado de frases como “sentimos que o país estava à deriva em direção a uma guerra civil entre negros e brancos e vimos a situação com alarme” e “lutei contra a dominação branca e a dominação negra”, há também “a falta de dignidade humana vivida pelos africanos é o resultado direto da política de supremacia branca” e “sentimos que, sem violência, não haveria caminho aberto para o povo africano ter sucesso em sua luta contra a supremacia branca”.
Na prisão de Robben Island, mantido em condições terríveis que lhe causaram danos permanentes à visão e uma tuberculose cujas sequelas o debilitaram e acabaram por causar sua morte, Mandela liderou as reivindicações de seus companheiros e forjou laços com prisioneiros de outras organizações, entre eles o Movimento de Consciência Negra, responsável pelo levante de Soweto de 1976, que deixou cerca de 700 mortos. Seu líder, Steve Biko (criador do slogan “black is beautiful”), foi capturado e morreu por tortura em 1977.
Embora menos violento e menos focado na “identidade negra”, o CNA tampouco abandonou a luta, inclusive armada. O MK continuou com seus ataques armados ao regime e se aliou formalmente à guerrilha marxista pró-soviética de Zimbábue (então Rodésia) liderada por Joshua Nkomo, depois unida à organização rival, maoísta, do “nada que ver” Robert Mugabe. De 1976 a 1986, seus ataques causaram cerca de 130 mortes.
A partir dos anos 1970, as condições da prisão melhoraram e Mandela pôde se corresponder com líderes negros moderados, como Mangosuthu Buthelezi (líder do partido Inkatha, aceito pelos brancos como líder do bantustão zulu) e o bispo anglicano Desmond Tutu. O movimento internacional de boicote ao apartheid, proposto em 1959, começava a engatinhar, com a exclusão do país de competições olímpicas e eventos acadêmicos. Do ponto de vista econômico, mal arranhava, porém, os interesses da minoria branca.
Mandela era celebrado como líder pelos movimentos negros da África do Sul, pelas novas nações africanas e pelos países socialistas, mas para Ronald Reagan e Margaret Thatcher ele e sua organização eram meros terroristas comunistas e o apartheid era uma realidade irreversível. Israel colaborou com o regime racista nos campos comercial e militar e lhe forneceu tecnologia nuclear. Há indícios de que, em 1979, os dois países testaram conjuntamente uma bomba atômica na sul-africana ilha Prince Edward.
Quando estudantes britânicos de esquerda começaram a participar, em 1980, da campanha por sua libertação, colegas conservadores replicaram com uma campanha por seu enforcamento. Mas em 1985, ante a ameaça das ex-colônias africanas e asiáticas de abandonar a Comunidade Britânica, a própria Thatcher foi forçada a aderir ao boicote ao apartheid. No ano seguinte, o Congresso dos EUA, pressionado pelos eleitores negros, aprovou a lei de embargo que tramitava desde 1972 e derrubou o veto de Reagan. A perda de mercados e de acesso ao crédito internacional e o encorajamento da resistência negra pelo apoio internacional tornaram o país ingovernável, forçaram a elite branca a negociar e Mandela, o “terrorista”, era o único interlocutor suficientemente respeitado pela maioria das facções do movimento negro para negociar uma transição pacífica em seu nome.
Um dos seus primeiros atos ao sair da prisão foi ir a Cuba agradecer o apoio do “nada que ver” Fidel Castro: “Quem treinou o nosso povo, quem nos forneceu recursos, que ajudaram tanto nossos soldados, nossos doutores?” Palavras que reiterou em sua cerimônia de posse em 1994, ao receber Castro: “O que Fidel tem feito por nós é difícil descrever com palavras. Primeiro, na luta contra o apartheid, ele não hesitou em nos dar todo tipo de ajuda. E agora que somos livres, temos muitos médicos cubanos trabalhando aqui”.
Mandela esteve à altura da oportunidade histórica. Desmantelou o apartheid e o arsenal atômico legado pelos israelenses, criou uma Comissão da Verdade que serviu de modelo a outras nações, inclusive o Brasil, evitou o revanchismo e consolidou a África do Sul como um país democrático e multirracial, o que dez anos antes parecia impossível. A extrema-esquerda o considerou um traidor por não derrubar o capitalismo ou promover uma reforma agrária radical (80% das terras continuam nas mãos de 50 mil fazendeiros brancos) e os resultados da ação afirmativa iniciada em seu governo são ambíguos. De um lado, integrou uma substancial classe média não branca em todos os níveis do Estado e da empresa privada. Por outro, não pôde tirar da pobreza a grande maioria dos negros, a renda continua muito concentrada e os brancos se queixam de seus jovens serem forçados a emigrar por falta de empregos “adequados”. Como nas ocasiões em que se decidiu pela resistência passiva, pela luta armada, ou pela articulação política a partir da prisão, Mandela optou pelo que era factível naquele momento – o auge da ideologia neoliberal em todo o mundo – para caminhar rumo a seu ideal igualitário e multirracial.
É cômodo perorar de fora que “os fins não justificam os meios”, mas não se pode aprovar o resultado e apagar a história que o tornou possível, com todos os seus atos de violência e alianças desagradáveis aos bem-pensantes. Sem isso, ainda se viveria a violência maior do apartheid. Não é razoável negar que a África do Sul de hoje é mais digna e justa que aquela dos anos anteriores à transição e que as homenagens prestadas pelo povo sul-africano e pelos líderes mundiais em 2013 foram muito merecidas. Barack Obama, é preciso reconhecer, fez um discurso inspirado (“Não poderia imaginar a minha vida sem o exemplo de Mandela... ele libertou prisioneiros e carcereiros”) em comparação com as falas mornas e burocráticas da brasileira Dilma Rousseff, do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e mesmo do cubano Raúl Castro, para não falar do vice chinês e dos presidentes da Namíbia e Índia.
Mas não escapou da hipocrisia: “Há muitos líderes que se apegam à solidariedade da luta de Madiba pela liberdade, mas não toleram a dissidência”, advertiu o responsável pela espionagem da NSA, pela perseguição a Edward Snowden e pela execução arbitrária de acusados de terrorismo. E o episódio do selfie (autorretrato) com David Cameron e a primeira-ministra dinamarquesa, Helle Thorning-Schmidt, embora não tenha o significado que a imaginação popular lhe atribuiu, não deixou de ser desrespeitoso. Não pela descontração – nesse momento, os próprios sul-africanos homenageavam Madiba com cantos e danças alegres –, mas pela obsessão egoísta dos líderes ocidentais com a própria imagem na ocasião em que se homenageava um homem muito maior que todos eles juntos.
Rolihlahla Mandela nasceu em plena Primeira Guerra Mundial, recebeu o apelido inglês de Nelson de sua primeira professora primária segundo o costume do tempo, mas ficou mais conhecido de seus companheiros de luta como Madiba (nome de seu clã da etnia Xhosa) e do povo sul-africano como Tata, “pai”. Pensou como marxista, combateu como revolucionário e governou como reformista. Pode ser reivindicado como exemplo tanto pela esquerda radical quanto pela pragmática, embora a lição a ser aprendida seja, mais razoavelmente, que qualquer grau de sucesso depende da disposição de adaptar os meios e fins imediatos ao momento histórico sem abandonar os princípios e os fins últimos.
Inaceitável é tentar expurgar da sua história os confrontos com a brutalidade do apartheid que a marcaram, como se ele tivesse caído do céu em 1990 para trazer a paz e a fraternidade e desde então seu país tivesse vivido feliz para sempre. Falsificações como a da revista Veja, uma editora com 30% de capital do grupo sul-africano Naspers, que defendeu o apartheid até o último suspiro, chamá-lo de “Guerreiro da Paz” na capa, enquanto seus blogueiros insistiam em classificá-lo de terrorista, são parte da tentativa de cooptar uma vida revolucionária para fins conservadores. Que atingiu o cúmulo do ridículo com argumentos em blogs, jornais ou na tevê que Mandela seria contra as cotas raciais “petistas”: “Aos negros seria conveniente mirar-se nos exemplos de igualdade e jamais lutar por cotas”, atreveu-se a escrever um néscio no Diário da Manhã, de Goiânia, num artigo de opinião intitulado “O Legado de Mandela”.
Nem só colunistas obscuros de gazetas provincianas demonstraram ignorância abissal. Mais impressionante, por partir de um jornal de grande circulação, foi o editorial do El País de 11 de novembro, que criticou a presença no funeral de Raúl Castro e Robert Mugabe, “ditadores com nada que ver com Mandela” (sic). Nada a ver teve Bush, que manteve Madiba e seu partido na lista de terroristas obrigados a obter uma autorização especial para entrar nos EUA até julho de 2008. Ou o presidente português Cavaco Silva, que em 1987, quando primeiro-ministro, fez Portugal votar na ONU contra uma resolução de apoio à luta contra o apartheid. Ou David Cameron: ainda em 1989 tentava fazer lobby para reverter as sanções contra a segregação sul-africana.
Madiba não foi um Cristo ao estilo masoquista e kitsch dos católicos tradicionalistas (sequer o Jesus real o foi, mas essa é outra história). Embora tenha conduzido com sucesso uma transição pacífica, ela só foi possível porque Mandela antes liderou e planejou a luta, inclusive armada, contra o apartheid, com apoio quase solitário da União Soviética, China e Cuba, e porque, enquanto estava na prisão, outros continuaram a lutar nas ruas em seu nome até obrigar o regime branco a aceitá-lo como interlocutor, negociar e, ao final do processo, ceder-lhe o poder. Quem quiser pode questionar suas escolhas éticas e políticas, mas sem elas Mandela não teria sido quem foi, nem merecido as homenagens do mundo.
Uma vez no governo, não ignorou a realidade de colonização e segregação. Não fingiu que o problema estava resolvido e brancos e negros haviam se tornado iguais por um passe de mágica. Iniciou a construção dessa igualdade na prática, inclusive com cotas raciais. Empresas grandes ou pequenas de todos os setores cumprem metas de participação de não brancos (mestiços, indianos e orientais incluídos) na força de trabalho, gerência e propriedade do capital. Universidades e faculdades também praticam a “discriminação positiva”.
Quando Mandela iniciou sua militância política, em 1943, defendia a independência do movimento negro em relação aos indianos, mestiços e comunistas (inclusive brancos), contrariando nisso a maioria do Congresso Nacional Africano, socialista e inclusivo desde 1912. Mudou de posição no início dos anos 1950, quando, convencido por amigos comunistas e pela cooperação dos soviéticos com os movimentos de independência africanos, aderiu ao marxismo e, por isso, a uma concepção de luta política capaz de ir além da raça e unir todos os oprimidos. Exatamente quando o apartheid se consolidava (a partir da eleição de 1948, da qual os negros foram excluídos), o comunismo era posto fora de lei (pelo Ato de Supressão de 1950) e se iniciava a segregação física e geográfica das raças.
Mandela foi preso pela primeira vez em 1952, em nome do Ato de Supressão, depois de incitar a desobedecer às leis do apartheid (principalmente a que obrigava os negros a portar passaportes fora das reservas a eles designadas, os bantustões) em um ato público da “Campanha do Desafio” pela desobediência civil, tática que para o Mahatma Gandhi e para parte do CNA era a “alternativa ética”, mas para Mandela era simplesmente a única opção realista do momento. Em 1955, depois de a resistência passiva e protestos não conseguirem evitar o despejo de todo o bairro negro de Sophiatown, onde morava, passou a defender a luta armada, enquanto continuava a organização de greves e protestos, passava por duas prisões e tinha, na prática, uma dupla militância, atuando também no Partido Comunista.
Em 1961, inspirado por Fidel Castro e Che Guevara, fundou e liderou a organização Umkhonto we Sizwe (“Lança da Nação”, mais conhecida como MK), formada na maior parte por comunistas brancos, cujo objetivo era promover sabotagem e ataques noturnos, sem vítimas, a usinas elétricas, escritórios do governo e ferrovias. Em 16 de dezembro, quando os brancos comemoravam o aniversário de sua vitória sobre os zulus de 1838, lançou 57 ataques à bomba simultâneos. Até meados de 1963, cerca de 200 instalações foram bombardeadas e a única vítima fatal foi um militante morto pela própria bomba.
Mandela voltou a ser preso em agosto de 1962 com ajuda da CIA e inicialmente condenado a cinco anos por viajar ao exterior sem permissão e incitar greves. Em 1964 foi novamente julgado por seu envolvimento com o MK e seu “discurso do julgamento de Rivonia”, proferido às vésperas de ser condenado à prisão perpétua pelo Supremo Tribunal sul-africano, inspiraria a luta contra o apartheid por décadas, foi em parte inspirado no igualmente histórico discurso de Fidel Castro ao ser condenado pelo fracassado ataque ao quartel Moncada, “A História me Absolverá”. Ao lado de frases como “sentimos que o país estava à deriva em direção a uma guerra civil entre negros e brancos e vimos a situação com alarme” e “lutei contra a dominação branca e a dominação negra”, há também “a falta de dignidade humana vivida pelos africanos é o resultado direto da política de supremacia branca” e “sentimos que, sem violência, não haveria caminho aberto para o povo africano ter sucesso em sua luta contra a supremacia branca”.
Na prisão de Robben Island, mantido em condições terríveis que lhe causaram danos permanentes à visão e uma tuberculose cujas sequelas o debilitaram e acabaram por causar sua morte, Mandela liderou as reivindicações de seus companheiros e forjou laços com prisioneiros de outras organizações, entre eles o Movimento de Consciência Negra, responsável pelo levante de Soweto de 1976, que deixou cerca de 700 mortos. Seu líder, Steve Biko (criador do slogan “black is beautiful”), foi capturado e morreu por tortura em 1977.
Embora menos violento e menos focado na “identidade negra”, o CNA tampouco abandonou a luta, inclusive armada. O MK continuou com seus ataques armados ao regime e se aliou formalmente à guerrilha marxista pró-soviética de Zimbábue (então Rodésia) liderada por Joshua Nkomo, depois unida à organização rival, maoísta, do “nada que ver” Robert Mugabe. De 1976 a 1986, seus ataques causaram cerca de 130 mortes.
A partir dos anos 1970, as condições da prisão melhoraram e Mandela pôde se corresponder com líderes negros moderados, como Mangosuthu Buthelezi (líder do partido Inkatha, aceito pelos brancos como líder do bantustão zulu) e o bispo anglicano Desmond Tutu. O movimento internacional de boicote ao apartheid, proposto em 1959, começava a engatinhar, com a exclusão do país de competições olímpicas e eventos acadêmicos. Do ponto de vista econômico, mal arranhava, porém, os interesses da minoria branca.
Mandela era celebrado como líder pelos movimentos negros da África do Sul, pelas novas nações africanas e pelos países socialistas, mas para Ronald Reagan e Margaret Thatcher ele e sua organização eram meros terroristas comunistas e o apartheid era uma realidade irreversível. Israel colaborou com o regime racista nos campos comercial e militar e lhe forneceu tecnologia nuclear. Há indícios de que, em 1979, os dois países testaram conjuntamente uma bomba atômica na sul-africana ilha Prince Edward.
Quando estudantes britânicos de esquerda começaram a participar, em 1980, da campanha por sua libertação, colegas conservadores replicaram com uma campanha por seu enforcamento. Mas em 1985, ante a ameaça das ex-colônias africanas e asiáticas de abandonar a Comunidade Britânica, a própria Thatcher foi forçada a aderir ao boicote ao apartheid. No ano seguinte, o Congresso dos EUA, pressionado pelos eleitores negros, aprovou a lei de embargo que tramitava desde 1972 e derrubou o veto de Reagan. A perda de mercados e de acesso ao crédito internacional e o encorajamento da resistência negra pelo apoio internacional tornaram o país ingovernável, forçaram a elite branca a negociar e Mandela, o “terrorista”, era o único interlocutor suficientemente respeitado pela maioria das facções do movimento negro para negociar uma transição pacífica em seu nome.
Um dos seus primeiros atos ao sair da prisão foi ir a Cuba agradecer o apoio do “nada que ver” Fidel Castro: “Quem treinou o nosso povo, quem nos forneceu recursos, que ajudaram tanto nossos soldados, nossos doutores?” Palavras que reiterou em sua cerimônia de posse em 1994, ao receber Castro: “O que Fidel tem feito por nós é difícil descrever com palavras. Primeiro, na luta contra o apartheid, ele não hesitou em nos dar todo tipo de ajuda. E agora que somos livres, temos muitos médicos cubanos trabalhando aqui”.
Mandela esteve à altura da oportunidade histórica. Desmantelou o apartheid e o arsenal atômico legado pelos israelenses, criou uma Comissão da Verdade que serviu de modelo a outras nações, inclusive o Brasil, evitou o revanchismo e consolidou a África do Sul como um país democrático e multirracial, o que dez anos antes parecia impossível. A extrema-esquerda o considerou um traidor por não derrubar o capitalismo ou promover uma reforma agrária radical (80% das terras continuam nas mãos de 50 mil fazendeiros brancos) e os resultados da ação afirmativa iniciada em seu governo são ambíguos. De um lado, integrou uma substancial classe média não branca em todos os níveis do Estado e da empresa privada. Por outro, não pôde tirar da pobreza a grande maioria dos negros, a renda continua muito concentrada e os brancos se queixam de seus jovens serem forçados a emigrar por falta de empregos “adequados”. Como nas ocasiões em que se decidiu pela resistência passiva, pela luta armada, ou pela articulação política a partir da prisão, Mandela optou pelo que era factível naquele momento – o auge da ideologia neoliberal em todo o mundo – para caminhar rumo a seu ideal igualitário e multirracial.
É cômodo perorar de fora que “os fins não justificam os meios”, mas não se pode aprovar o resultado e apagar a história que o tornou possível, com todos os seus atos de violência e alianças desagradáveis aos bem-pensantes. Sem isso, ainda se viveria a violência maior do apartheid. Não é razoável negar que a África do Sul de hoje é mais digna e justa que aquela dos anos anteriores à transição e que as homenagens prestadas pelo povo sul-africano e pelos líderes mundiais em 2013 foram muito merecidas. Barack Obama, é preciso reconhecer, fez um discurso inspirado (“Não poderia imaginar a minha vida sem o exemplo de Mandela... ele libertou prisioneiros e carcereiros”) em comparação com as falas mornas e burocráticas da brasileira Dilma Rousseff, do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e mesmo do cubano Raúl Castro, para não falar do vice chinês e dos presidentes da Namíbia e Índia.
Mas não escapou da hipocrisia: “Há muitos líderes que se apegam à solidariedade da luta de Madiba pela liberdade, mas não toleram a dissidência”, advertiu o responsável pela espionagem da NSA, pela perseguição a Edward Snowden e pela execução arbitrária de acusados de terrorismo. E o episódio do selfie (autorretrato) com David Cameron e a primeira-ministra dinamarquesa, Helle Thorning-Schmidt, embora não tenha o significado que a imaginação popular lhe atribuiu, não deixou de ser desrespeitoso. Não pela descontração – nesse momento, os próprios sul-africanos homenageavam Madiba com cantos e danças alegres –, mas pela obsessão egoísta dos líderes ocidentais com a própria imagem na ocasião em que se homenageava um homem muito maior que todos eles juntos.
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