Por Paulo Kliass, no site Carta Maior:
O processo de desmonte do Estado brasileiro e de privatização de suas atividades comporta várias possibilidades de periodização e de tipificação. Na verdade a estratégia privatizante tem sua origem na consolidação da hegemonia neoliberal, alicerçada nos preceitos do Consenso de Washington. Assim, o discurso em defesa da desregulamentação generalizada da economia e a favor de um Estado mínimo é muito mais abrangente do que a simples venda de empresas de propriedade do governo.
O primeiro grande ciclo de transferência dos ativos geridos pela administração pública federal para o capital privado ocorreu ainda na época da ditadura, quando o governo do General Figueiredo (1979-1984) criou a Secretaria Especial de Controle das Empresas Estatais (SEST) e a União começou a se desfazer de algumas de suas empresas. Durante os governos Sarney, Collor e Itamar (1985-1993) também houve algumas estatais que foram vendidas. Mas o ciclo mais importante ocorreu sob os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), quando os setores estratégicos mais relevantes saíram das mãos do Estado e foram generosamente transferidos para o capital financeiro nacional e internacional.
Sob o invólucro mais amplo do termo privatização repousa um conjunto amplo e diverso de formas de atribuição ao setor privado de instituições e funções originalmente de competência do setor público. A primeira e mais evidente parcela desse movimento refere-se à venda de empresas estatais ao capital privado. Nesse caso enquadram-se tanto as chamadas empresas de economia mista (participação majoritária do setor público), sejam as empresas públicas (onde a totalidade do capital pertence ao Estado).
Privatização para todos os gostos
Um segundo conjunto de iniciativas privatizantes refere-se aos avanços nos processos de licitação e concessão de atividades e serviços de natureza pública nos mais variados ramos do extenso setor da infraestrutura. Nesse caso, não se trata necessariamente de transferência de ativos públicos, mas da oferta da exploração ao capital de serviços públicos por prazos que podem chegar a 3 décadas. São atividades relacionadas a portos, aeroportos, ferrovias, hidrovias, rodovias, geração e transmissão de energia, telecomunicações, saneamento básico, entre tantas outras.
Além disso, existe outro tipo de serviço público que também passou a ser objeto de mercantilização. Refiro-me aqui às prestações mais vinculadas à natureza social das atividades, tais como saúde, educação, previdência, assistência e segurança. Os dois primeiros casos foram os que apresentaram maior crescimento até o presente momento. Assistimos à implementação de uma verdadeira estratégia de sucateamento e de estrangulamento de áreas essenciais de serviços públicos da saúde e da educação.
Assim foi feito com o lento processo de assassinato do SUS, modelo considerado como referência para os países que buscam uma alternativa de construção de um sistema de saúde pública de qualidade. O movimento combina o favorecimento da mercantilização da saúde, com o estímulo à entrada do capital privado na área. Isso se viabiliza por meio dos planos de saúde e das empresas privadas detentoras de hospitais, laboratórios, equipamentos e similares.
Os setores de classe média foram estimulados ideológica e economicamente a migrarem para a saúde mercantilizada. Esse movimento articula a campanha de descrédito do setor público e a generosidade da dedução de imposto de renda dos gastos realizados com a saúde. Por outro lado, ganha força na sociedade a concepção de que o essencial seriam medicamentos, exames e procedimentos, com o consequente afastamento da medicina preventiva e de acompanhamento nas etapas anteriores ao surgimento da própria doença.
Processo semelhante acontece na área da educação. Desde a década de 1970, o sistema privado foi sendo estimulado no ensino fundamental e médio, ao tempo em que a rede pública sofreu um sucateamento progressivo, por meio de corte de verbas e redução salarial dos professores. Em seguida, movimento muito parecido ocorreu no ensino universitário. A ampliação do acesso deu-se fundamentalmente por meio do crescimento das facilidades e bondades para o capital privado. No entanto, ao contrário do que ocorre com o ensino de base, ainda se mantém um grau de excelência nas instituições universitárias federais e estaduais. Mais uma vez a classe média formadora de opinião foi seduzida por meio das facilidades de isenção das despesas. Com o apoio nada isento dos grandes meios de comunicação, consolidou-se a falsa ideia de que ensino público é de sinônimo de educação de péssima qualidade.
Agora, a bola da vez é a previdência social. Na verdade, esse setor é o que oferece maiores oportunidades de negócios para o capital financeiro. Desde sempre houve reiteradas tentativas de avançar sobre esse potencial de acumulação bilionária de recursos. Mas o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) sempre foi mantido como modelo estratégico e de natureza pública. O financismo crescia pelas bordas, com o estímulo à chamada “previdência complementar” - os fundos de pensão (de empresas estatais e privadas) e os fundos de previdência aberta de adesão individual. Como existe um teto máximo para os benefícios da previdência social, as pessoas que pretendem se aposentar com renda maior buscam esse tipo de complementação.
Mas o objetivo principal da turma das finanças sempre foi o de abocanhar o espaço ainda preservado dos benefícios administrados pelo INSS. Em 2016 o volume de recursos gerenciados pelo Instituto foi R$ 516 bilhões, o equivalente a 8% do PIB. Vejam bem que não é pouca coisa! Uma poderosa fonte luminosa de lucratividade segura a ser transferida para o capital especulativo. Afinal trata-se de um cadastro superior a 12 milhões de beneficiários, com um potencial extraordinário de crescimento no médio e no longo prazo.
Bombardeio e implosão
Assim, a estratégia atual combina os elementos criminosos de bombardeio e implosão. O nosso sistema de previdência social tem sofrido, de forma sistemática, ataques que comprometem a sua própria sobrevivência. Assim foi nas reformas constitucionais feitas sob FHC em 1998 e depois sob Lula em 2003. As sucessivas alterações nas regras do RGPS acentuam a perda de credibilidade do mesmo, uma vez que foram todas alterações introduzidas com o foco na redução de direitos dos participantes - sejam eles aposentados ou trabalhadores ainda ativa.
O bombardeio orquestrado com total apoio dos meios de comunicação trata exclusivamente de reforçar o suposto “rombo previdenciário” de cada conjuntura. Com isso, generaliza-se a impressão da “pós verdade” relativa a uma tão alardeada, quanto falsa, inviabilidade estrutural do atual sistema no longo prazo. A novidade veio com a incorporação explícita de tal narrativa por parte dos integrantes do governo. Logo após a consumação do golpeachment, veio a nomeação do banqueiro Henrique Meirelles para o comando da equipe econômica. Uma de suas primeiras medidas foi solicitar a Temer que promovesse a transferência da Secretaria da Previdência Social para o Ministério da Fazenda. Bingo!
A partir de então entra em campo a equipe encarregada pela implosão. Assim, diariamente vemos membros do governo com a missão de promover a ampliação e o aprofundamento do quadro do catastrofismo a respeito do futuro próximo da previdência social. A intenção é radicalizar no discurso do medo e da hecatombe, para conseguir apoio entre os parlamentares para a aprovação da reforma e alterar o clima geral de oposição da população às mudanças.
No entanto, o próprio Secretário de Previdência Social foi obrigado a reconhecer que a reforma não promoverá nenhuma redução no suposto desequilíbrio do RGPS em 2017 ou 2018. Muito pelo contrário! Assim como ocorreu em 1998 e 2003, o que estamos assistindo nos postos do INSS é uma corrida pela antecipação das aposentadorias. Procedimento, aliás, bastante compreensível. As pessoas estão com receio de perder direitos e tentam obter os benefícios antes do que estavam planejando até então.
Previdência não é problema. É solução!
Um dos efeitos dessa corrida é o aumento do volume de despesas previdenciárias em 2017 e 2018. E aí o círculo do discurso catastrofista se fecha. A recessão e o desemprego continuam e as receitas do regime permanecem em queda. “Não falei que o sistema era inviável?”, dirão alguns dos arautos do desastre anunciado. Mas o ponto central nesse debate é que o aumento das despesas com previdência não é um problema. Pelo contrário, a ampliação do número de beneficiários do INSS é um sinal positivo de que a sociedade brasileira está mais solidária e inclusiva.
Se é verdade que estamos passando por mudanças importantes em nossa composição demográfica e no mercado de trabalho, o fato é que as consequências de tais transformações serão sentidas no médio e longo prazos. Devemos discutir e pensar alternativas de forma coletiva e solidária, envolvendo o conjunto dos atores sociais. Isso significa contar com um amplo e demorado processo de concertação social e nunca com esse afogadilho do “prá anteontem”
A resposta que o movimento popular e democrático deve oferecer reside na busca de novas fontes de receita para oferecer sustentabilidade a esse modelo. Já passou da hora para que as camadas do topo da pirâmide passem a dar sua parcela de contribuição para o nosso sistema tributário. As alternativas são muitas: i) fim da desoneração da contribuição patronal para a previdência; ii) fim das isenções sobre lucros e dividendos; iii) instituição do já previsto Imposto sobre Grandes Fortunas; cobrança efetiva da dívida previdenciária das grandes empresas; iv) retomada da estratégia de crescimento da economia, com a aumento do nível de emprego e da massa salarial; entre tantas outras
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
O processo de desmonte do Estado brasileiro e de privatização de suas atividades comporta várias possibilidades de periodização e de tipificação. Na verdade a estratégia privatizante tem sua origem na consolidação da hegemonia neoliberal, alicerçada nos preceitos do Consenso de Washington. Assim, o discurso em defesa da desregulamentação generalizada da economia e a favor de um Estado mínimo é muito mais abrangente do que a simples venda de empresas de propriedade do governo.
O primeiro grande ciclo de transferência dos ativos geridos pela administração pública federal para o capital privado ocorreu ainda na época da ditadura, quando o governo do General Figueiredo (1979-1984) criou a Secretaria Especial de Controle das Empresas Estatais (SEST) e a União começou a se desfazer de algumas de suas empresas. Durante os governos Sarney, Collor e Itamar (1985-1993) também houve algumas estatais que foram vendidas. Mas o ciclo mais importante ocorreu sob os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), quando os setores estratégicos mais relevantes saíram das mãos do Estado e foram generosamente transferidos para o capital financeiro nacional e internacional.
Sob o invólucro mais amplo do termo privatização repousa um conjunto amplo e diverso de formas de atribuição ao setor privado de instituições e funções originalmente de competência do setor público. A primeira e mais evidente parcela desse movimento refere-se à venda de empresas estatais ao capital privado. Nesse caso enquadram-se tanto as chamadas empresas de economia mista (participação majoritária do setor público), sejam as empresas públicas (onde a totalidade do capital pertence ao Estado).
Privatização para todos os gostos
Um segundo conjunto de iniciativas privatizantes refere-se aos avanços nos processos de licitação e concessão de atividades e serviços de natureza pública nos mais variados ramos do extenso setor da infraestrutura. Nesse caso, não se trata necessariamente de transferência de ativos públicos, mas da oferta da exploração ao capital de serviços públicos por prazos que podem chegar a 3 décadas. São atividades relacionadas a portos, aeroportos, ferrovias, hidrovias, rodovias, geração e transmissão de energia, telecomunicações, saneamento básico, entre tantas outras.
Além disso, existe outro tipo de serviço público que também passou a ser objeto de mercantilização. Refiro-me aqui às prestações mais vinculadas à natureza social das atividades, tais como saúde, educação, previdência, assistência e segurança. Os dois primeiros casos foram os que apresentaram maior crescimento até o presente momento. Assistimos à implementação de uma verdadeira estratégia de sucateamento e de estrangulamento de áreas essenciais de serviços públicos da saúde e da educação.
Assim foi feito com o lento processo de assassinato do SUS, modelo considerado como referência para os países que buscam uma alternativa de construção de um sistema de saúde pública de qualidade. O movimento combina o favorecimento da mercantilização da saúde, com o estímulo à entrada do capital privado na área. Isso se viabiliza por meio dos planos de saúde e das empresas privadas detentoras de hospitais, laboratórios, equipamentos e similares.
Os setores de classe média foram estimulados ideológica e economicamente a migrarem para a saúde mercantilizada. Esse movimento articula a campanha de descrédito do setor público e a generosidade da dedução de imposto de renda dos gastos realizados com a saúde. Por outro lado, ganha força na sociedade a concepção de que o essencial seriam medicamentos, exames e procedimentos, com o consequente afastamento da medicina preventiva e de acompanhamento nas etapas anteriores ao surgimento da própria doença.
Processo semelhante acontece na área da educação. Desde a década de 1970, o sistema privado foi sendo estimulado no ensino fundamental e médio, ao tempo em que a rede pública sofreu um sucateamento progressivo, por meio de corte de verbas e redução salarial dos professores. Em seguida, movimento muito parecido ocorreu no ensino universitário. A ampliação do acesso deu-se fundamentalmente por meio do crescimento das facilidades e bondades para o capital privado. No entanto, ao contrário do que ocorre com o ensino de base, ainda se mantém um grau de excelência nas instituições universitárias federais e estaduais. Mais uma vez a classe média formadora de opinião foi seduzida por meio das facilidades de isenção das despesas. Com o apoio nada isento dos grandes meios de comunicação, consolidou-se a falsa ideia de que ensino público é de sinônimo de educação de péssima qualidade.
Agora, a bola da vez é a previdência social. Na verdade, esse setor é o que oferece maiores oportunidades de negócios para o capital financeiro. Desde sempre houve reiteradas tentativas de avançar sobre esse potencial de acumulação bilionária de recursos. Mas o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) sempre foi mantido como modelo estratégico e de natureza pública. O financismo crescia pelas bordas, com o estímulo à chamada “previdência complementar” - os fundos de pensão (de empresas estatais e privadas) e os fundos de previdência aberta de adesão individual. Como existe um teto máximo para os benefícios da previdência social, as pessoas que pretendem se aposentar com renda maior buscam esse tipo de complementação.
Mas o objetivo principal da turma das finanças sempre foi o de abocanhar o espaço ainda preservado dos benefícios administrados pelo INSS. Em 2016 o volume de recursos gerenciados pelo Instituto foi R$ 516 bilhões, o equivalente a 8% do PIB. Vejam bem que não é pouca coisa! Uma poderosa fonte luminosa de lucratividade segura a ser transferida para o capital especulativo. Afinal trata-se de um cadastro superior a 12 milhões de beneficiários, com um potencial extraordinário de crescimento no médio e no longo prazo.
Bombardeio e implosão
Assim, a estratégia atual combina os elementos criminosos de bombardeio e implosão. O nosso sistema de previdência social tem sofrido, de forma sistemática, ataques que comprometem a sua própria sobrevivência. Assim foi nas reformas constitucionais feitas sob FHC em 1998 e depois sob Lula em 2003. As sucessivas alterações nas regras do RGPS acentuam a perda de credibilidade do mesmo, uma vez que foram todas alterações introduzidas com o foco na redução de direitos dos participantes - sejam eles aposentados ou trabalhadores ainda ativa.
O bombardeio orquestrado com total apoio dos meios de comunicação trata exclusivamente de reforçar o suposto “rombo previdenciário” de cada conjuntura. Com isso, generaliza-se a impressão da “pós verdade” relativa a uma tão alardeada, quanto falsa, inviabilidade estrutural do atual sistema no longo prazo. A novidade veio com a incorporação explícita de tal narrativa por parte dos integrantes do governo. Logo após a consumação do golpeachment, veio a nomeação do banqueiro Henrique Meirelles para o comando da equipe econômica. Uma de suas primeiras medidas foi solicitar a Temer que promovesse a transferência da Secretaria da Previdência Social para o Ministério da Fazenda. Bingo!
A partir de então entra em campo a equipe encarregada pela implosão. Assim, diariamente vemos membros do governo com a missão de promover a ampliação e o aprofundamento do quadro do catastrofismo a respeito do futuro próximo da previdência social. A intenção é radicalizar no discurso do medo e da hecatombe, para conseguir apoio entre os parlamentares para a aprovação da reforma e alterar o clima geral de oposição da população às mudanças.
No entanto, o próprio Secretário de Previdência Social foi obrigado a reconhecer que a reforma não promoverá nenhuma redução no suposto desequilíbrio do RGPS em 2017 ou 2018. Muito pelo contrário! Assim como ocorreu em 1998 e 2003, o que estamos assistindo nos postos do INSS é uma corrida pela antecipação das aposentadorias. Procedimento, aliás, bastante compreensível. As pessoas estão com receio de perder direitos e tentam obter os benefícios antes do que estavam planejando até então.
Previdência não é problema. É solução!
Um dos efeitos dessa corrida é o aumento do volume de despesas previdenciárias em 2017 e 2018. E aí o círculo do discurso catastrofista se fecha. A recessão e o desemprego continuam e as receitas do regime permanecem em queda. “Não falei que o sistema era inviável?”, dirão alguns dos arautos do desastre anunciado. Mas o ponto central nesse debate é que o aumento das despesas com previdência não é um problema. Pelo contrário, a ampliação do número de beneficiários do INSS é um sinal positivo de que a sociedade brasileira está mais solidária e inclusiva.
Se é verdade que estamos passando por mudanças importantes em nossa composição demográfica e no mercado de trabalho, o fato é que as consequências de tais transformações serão sentidas no médio e longo prazos. Devemos discutir e pensar alternativas de forma coletiva e solidária, envolvendo o conjunto dos atores sociais. Isso significa contar com um amplo e demorado processo de concertação social e nunca com esse afogadilho do “prá anteontem”
A resposta que o movimento popular e democrático deve oferecer reside na busca de novas fontes de receita para oferecer sustentabilidade a esse modelo. Já passou da hora para que as camadas do topo da pirâmide passem a dar sua parcela de contribuição para o nosso sistema tributário. As alternativas são muitas: i) fim da desoneração da contribuição patronal para a previdência; ii) fim das isenções sobre lucros e dividendos; iii) instituição do já previsto Imposto sobre Grandes Fortunas; cobrança efetiva da dívida previdenciária das grandes empresas; iv) retomada da estratégia de crescimento da economia, com a aumento do nível de emprego e da massa salarial; entre tantas outras
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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