Por Aloysio Castelo de Carvalho, no site Carta Maior:
A última manifestação militar de cunho político no governo Dilma, com grande repercussão na opinião pública, ocorreu em agosto de 2015, no Dia do Soldado, em torno da declaração do general de Exército Mourão, então comandante do Comando Militar do Sul, hoje candidato à vice-presidente na chapa do capitão Bolsonaro pelo Partido Social Liberal. O general Mourão afirmou diante da tropa, em Porto Alegre, que ainda tínhamos inimigos internos, mas que eles se enganavam achando que os militares estavam desprevenidos. Ao analisar o discurso do general, o historiador José Murilo de Carvalho publicou em O Globo um artigo no qual exaltava o silêncio das Forças Armadas como a característica positiva da crise política. Disse ainda que a ausência de manifestações de chefes militares da ativa era a garantia de que não haveria abalos constitucionais. E concluiu, de forma equivocada, que poderia haver até impeachment da presidente, mas não golpe.
Quando empregou o termo golpe, o historiador se referiu, evidentemente, ao golpe civil-militar de 1964. Ocorre que o termo golpe passou a ser usado de forma mais ampla, sendo também associado ao processo de impeachment da presidente Dilma. Ganhou representatividade nos debates públicos a ideia de que o impeachment sem fato determinado, sem crime da responsabilidade, afrontou a norma constitucional e representa a ruptura da ordem jurídica, devendo ser considerado um golpe.
Como compreender a participação dos militares na crise política atual e no âmbito da disputa interpretativa se o impeachment foi um golpe?
Acreditamos que a maior visibilidade das atuações das instituições envolvidas com o processo político jurídico que levou ao julgamento do impeachment da presidente Dilma, sobretudo as instituições comprometidas diretamente com a tomada de decisão sobre o caso - a Câmara dos Deputados, o Senado e o Supremo Tribunal Federal – não diminui a importância do papel de vigília que as Forças Armadas têm desempenhado sobre o sistema político nem, tampouco, retira a responsabilidade da instituição militar sobre o desfecho da crise em curso.
Inicialmente é preciso lembrar que a Constituição de 1988, no que trata das funções das Forças Armadas, manteve na essência antigas cláusulas constitucionais, cabendo-lhes a garantia da lei e da ordem e também a dos poderes constitucionais. Uma vez que às Forças Armadas, segundo a Constituição vigente, foram atribuídas o papel de zelar pela segurança interna e externa, elas continuaram a manter as condições para julgar se devem ou não intervir em situações de crise, como sempre fizeram desde a instituição da República. Enfim, os militares continuaram, após sua retirada do exercício direto do poder, em 1985, a controlar posições estratégicas do aparelho de Estado, a exercer influência política e a deter prerrogativas incompatíveis com o regime democrático.
Seria um equívoco sustentar que uma instituição poderosa como as Forças Armadas, de importância vital na condução dos destinos do Estado, não estivesse processando, entre seus comandantes chefes, uma constante avaliação da atual crise política. Essa observação pode ser confirmada pela declaração do comandante-geral do Exército, o general Eduardo Villas Bôas, divulgada no dia 19 de abril de 2016, Dia do Exército, no Centro Universitário de Brasília (Uniceub). O general refutou a possibilidade de intervenção das Forças Armadas na atual crise política. Segundo o general:
“As Forças Armadas não existem para fiscalizar governos nem para derrubar governos. Temos de contribuir para a legalidade, dar condição para que as instituições continuem trabalhando e encontrem caminhos para superar o que estamos vivendo. Vimos que os embates (políticos) tem sido acirrados, mas as instituições estão funcionando”
Embora Villas Bôas tenha dito que a intervenção militar em 1964 foi um erro das Forças Armadas, qual o real significado das palavras do general, se não quisermos cair na armadilha do discurso não intervencionista? A avaliação apresentada pelo general do Exército era representativa das Forças Armadas e estava de acordo com os argumentos e decisões tomadas pelas instituições envolvidas no processo de impeachment da presidente Dilma. Segundo o general, a crise política estava sendo enfrentada com base nas regras constitucionais. Se impeachment se consolidasse, argumentou, a modificação dos ocupantes na direção do governo teria seguido o curso de um processo legal. Nesse sentido, associar as palavras do general a uma posição de não intervencionismo das Forças Armadas na crise política que levou ao impeachment é uma falácia. O intervencionismo das Forças Armadas se expressou através do consentimento com todo o processo político jurídico que destituiu a presidente Dilma. Ou seja, as Forças Armadas validaram o processo político que levou ao impeachment da presidente Dilma, diferentemente da intervenção direta ocorrida em 1964, quando a instituição militar tomou o Estado e mudou as regras políticas.
Há, todavia, um outro dado que joga por água abaixo as análises segundo as quais as Forças Armadas brasileiras estariam experimentando um novo papel na atualidade, mais adequado às democracias contemporâneas. Com o afastamento de Dilma, o governo Temer assumiu uma agenda governamental comprometida com o projeto neoliberal a fim de promover um novo choque de capitalismo no país. Ao fracasso do governo Temer em recuperar o crescimento econômico e melhorar os indicadores sociais somou-se o fracasso da coalizão golpista em impedir Lula e o PT de influenciar o processo eleitoral. Com Haddad em segundo lugar na corrida presidencial e com possibilidade de vitória no segundo turno, a eleição passou a ser alvo de questionamento pelo representante da extrema direita, capitão Bolsonaro. Em vídeo gravado no hospital, o candidato clamou pelo golpe e afirmou que o PT estaria no comando de uma fraude eleitoral para obter a vitória nas eleições presidenciais. Dessa forma, Bolsonaro repercutiu as palavras do general Villas Boas que passou a questionar a legitimidade das eleições após a tentativa de assassinato do candidato do Partido Social Liberal.
O que se assiste não é necessariamente uma conspiração para a execução de um golpe nos moldes de 1964. Trata-se de uma tentativa intimidar as forças democráticas e, ao mesmo tempo, ampliar o espaço para a ingerência das Forças Armadas no processo político. Na melhor das hipóteses, ocorrendo as eleições, assistiremos o avanço da tutela militar sobre o sistema político, seja para moderar o PT como governo, seja para moderar o PT e os movimentos sociais como oposição ao governo.
Se esse cenário se confirmar, estaríamos vivenciando a materialização de um dos aspectos do projeto de distensão/abertura, comandado pelos generais Geisel e Figueiredo, entre 1974 e 1985. A liberalização previa a retirada das Forças Armadas direção do Estado e a sua substituição por um esquema civil de confiança baseado no partido do governo, de modo a preservar os interesses institucionais das corporações. Como integrantes do aparelho de Estado, os militares deveriam continuar a exercer influência sobre as questões em discussão pelos atores do sistema político e da sociedade civil, a fim de garantir um poder político voltado, sobretudo, para bloquear a participação popular autônoma e moderar sua força tanto na constituição de governos quanto na formação das suas decisões.
A tutela militar sempre fez parte do universo ideológico dos dirigentes de 1964. Devemos lembrar que a liberalização anunciada pelo regime representou, em linhas gerais, a retomada do projeto do presidente Castelo Branco, do qual Geisel fora um dos artífices. Os dirigentes militares encaminharam as mudanças liberalizantes de modo que o aparelho militar pudesse se retirar gradativamente do exercício direto do Estado sem, no entanto, perder a capacidade de influenciar as decisões governamentais. Não foi outro o motivo da promulgação de uma lei de anistia, no governo Figueiredo, que enfatizava a fórmula do esquecimento dos atos repressivos praticados no passado. Ao não permitir qualquer revisão judicial de suas ações, o aparelho militar protegeu sua autonomia, reforçando o sentimento de impunidade e de imunidade das Forças Armadas. A sociedade, por sua vez, deixou de conhecer, naquele momento da transição, os agentes diretamente implicados nas atrocidades cometidas e as engrenagens dos aparatos repressivos, fundamentais na sustentação do regime militar. Como não foram cobradas responsabilidades pelos atos repressivos, a instituição militar não foi colocada no centro de um amplo debate nacional sobre os papéis que vinha cumprindo na esfera política e a opinião pública não colocou em discussão os valores éticos necessários para a construção de uma autêntica democracia.
A construção da democracia no Brasil hoje exige respeito às normas constitucionais, de modo que o poder militar em toda a sua expressão recolha-se às suas atribuições profissionais e subordine-se à autoridade de um governo civil legitimado nas urnas.
* Aloysio Castelo de Carvalho é Professor da Universidade Federal Fluminense.
A última manifestação militar de cunho político no governo Dilma, com grande repercussão na opinião pública, ocorreu em agosto de 2015, no Dia do Soldado, em torno da declaração do general de Exército Mourão, então comandante do Comando Militar do Sul, hoje candidato à vice-presidente na chapa do capitão Bolsonaro pelo Partido Social Liberal. O general Mourão afirmou diante da tropa, em Porto Alegre, que ainda tínhamos inimigos internos, mas que eles se enganavam achando que os militares estavam desprevenidos. Ao analisar o discurso do general, o historiador José Murilo de Carvalho publicou em O Globo um artigo no qual exaltava o silêncio das Forças Armadas como a característica positiva da crise política. Disse ainda que a ausência de manifestações de chefes militares da ativa era a garantia de que não haveria abalos constitucionais. E concluiu, de forma equivocada, que poderia haver até impeachment da presidente, mas não golpe.
Quando empregou o termo golpe, o historiador se referiu, evidentemente, ao golpe civil-militar de 1964. Ocorre que o termo golpe passou a ser usado de forma mais ampla, sendo também associado ao processo de impeachment da presidente Dilma. Ganhou representatividade nos debates públicos a ideia de que o impeachment sem fato determinado, sem crime da responsabilidade, afrontou a norma constitucional e representa a ruptura da ordem jurídica, devendo ser considerado um golpe.
Como compreender a participação dos militares na crise política atual e no âmbito da disputa interpretativa se o impeachment foi um golpe?
Acreditamos que a maior visibilidade das atuações das instituições envolvidas com o processo político jurídico que levou ao julgamento do impeachment da presidente Dilma, sobretudo as instituições comprometidas diretamente com a tomada de decisão sobre o caso - a Câmara dos Deputados, o Senado e o Supremo Tribunal Federal – não diminui a importância do papel de vigília que as Forças Armadas têm desempenhado sobre o sistema político nem, tampouco, retira a responsabilidade da instituição militar sobre o desfecho da crise em curso.
Inicialmente é preciso lembrar que a Constituição de 1988, no que trata das funções das Forças Armadas, manteve na essência antigas cláusulas constitucionais, cabendo-lhes a garantia da lei e da ordem e também a dos poderes constitucionais. Uma vez que às Forças Armadas, segundo a Constituição vigente, foram atribuídas o papel de zelar pela segurança interna e externa, elas continuaram a manter as condições para julgar se devem ou não intervir em situações de crise, como sempre fizeram desde a instituição da República. Enfim, os militares continuaram, após sua retirada do exercício direto do poder, em 1985, a controlar posições estratégicas do aparelho de Estado, a exercer influência política e a deter prerrogativas incompatíveis com o regime democrático.
Seria um equívoco sustentar que uma instituição poderosa como as Forças Armadas, de importância vital na condução dos destinos do Estado, não estivesse processando, entre seus comandantes chefes, uma constante avaliação da atual crise política. Essa observação pode ser confirmada pela declaração do comandante-geral do Exército, o general Eduardo Villas Bôas, divulgada no dia 19 de abril de 2016, Dia do Exército, no Centro Universitário de Brasília (Uniceub). O general refutou a possibilidade de intervenção das Forças Armadas na atual crise política. Segundo o general:
“As Forças Armadas não existem para fiscalizar governos nem para derrubar governos. Temos de contribuir para a legalidade, dar condição para que as instituições continuem trabalhando e encontrem caminhos para superar o que estamos vivendo. Vimos que os embates (políticos) tem sido acirrados, mas as instituições estão funcionando”
Embora Villas Bôas tenha dito que a intervenção militar em 1964 foi um erro das Forças Armadas, qual o real significado das palavras do general, se não quisermos cair na armadilha do discurso não intervencionista? A avaliação apresentada pelo general do Exército era representativa das Forças Armadas e estava de acordo com os argumentos e decisões tomadas pelas instituições envolvidas no processo de impeachment da presidente Dilma. Segundo o general, a crise política estava sendo enfrentada com base nas regras constitucionais. Se impeachment se consolidasse, argumentou, a modificação dos ocupantes na direção do governo teria seguido o curso de um processo legal. Nesse sentido, associar as palavras do general a uma posição de não intervencionismo das Forças Armadas na crise política que levou ao impeachment é uma falácia. O intervencionismo das Forças Armadas se expressou através do consentimento com todo o processo político jurídico que destituiu a presidente Dilma. Ou seja, as Forças Armadas validaram o processo político que levou ao impeachment da presidente Dilma, diferentemente da intervenção direta ocorrida em 1964, quando a instituição militar tomou o Estado e mudou as regras políticas.
Há, todavia, um outro dado que joga por água abaixo as análises segundo as quais as Forças Armadas brasileiras estariam experimentando um novo papel na atualidade, mais adequado às democracias contemporâneas. Com o afastamento de Dilma, o governo Temer assumiu uma agenda governamental comprometida com o projeto neoliberal a fim de promover um novo choque de capitalismo no país. Ao fracasso do governo Temer em recuperar o crescimento econômico e melhorar os indicadores sociais somou-se o fracasso da coalizão golpista em impedir Lula e o PT de influenciar o processo eleitoral. Com Haddad em segundo lugar na corrida presidencial e com possibilidade de vitória no segundo turno, a eleição passou a ser alvo de questionamento pelo representante da extrema direita, capitão Bolsonaro. Em vídeo gravado no hospital, o candidato clamou pelo golpe e afirmou que o PT estaria no comando de uma fraude eleitoral para obter a vitória nas eleições presidenciais. Dessa forma, Bolsonaro repercutiu as palavras do general Villas Boas que passou a questionar a legitimidade das eleições após a tentativa de assassinato do candidato do Partido Social Liberal.
O que se assiste não é necessariamente uma conspiração para a execução de um golpe nos moldes de 1964. Trata-se de uma tentativa intimidar as forças democráticas e, ao mesmo tempo, ampliar o espaço para a ingerência das Forças Armadas no processo político. Na melhor das hipóteses, ocorrendo as eleições, assistiremos o avanço da tutela militar sobre o sistema político, seja para moderar o PT como governo, seja para moderar o PT e os movimentos sociais como oposição ao governo.
Se esse cenário se confirmar, estaríamos vivenciando a materialização de um dos aspectos do projeto de distensão/abertura, comandado pelos generais Geisel e Figueiredo, entre 1974 e 1985. A liberalização previa a retirada das Forças Armadas direção do Estado e a sua substituição por um esquema civil de confiança baseado no partido do governo, de modo a preservar os interesses institucionais das corporações. Como integrantes do aparelho de Estado, os militares deveriam continuar a exercer influência sobre as questões em discussão pelos atores do sistema político e da sociedade civil, a fim de garantir um poder político voltado, sobretudo, para bloquear a participação popular autônoma e moderar sua força tanto na constituição de governos quanto na formação das suas decisões.
A tutela militar sempre fez parte do universo ideológico dos dirigentes de 1964. Devemos lembrar que a liberalização anunciada pelo regime representou, em linhas gerais, a retomada do projeto do presidente Castelo Branco, do qual Geisel fora um dos artífices. Os dirigentes militares encaminharam as mudanças liberalizantes de modo que o aparelho militar pudesse se retirar gradativamente do exercício direto do Estado sem, no entanto, perder a capacidade de influenciar as decisões governamentais. Não foi outro o motivo da promulgação de uma lei de anistia, no governo Figueiredo, que enfatizava a fórmula do esquecimento dos atos repressivos praticados no passado. Ao não permitir qualquer revisão judicial de suas ações, o aparelho militar protegeu sua autonomia, reforçando o sentimento de impunidade e de imunidade das Forças Armadas. A sociedade, por sua vez, deixou de conhecer, naquele momento da transição, os agentes diretamente implicados nas atrocidades cometidas e as engrenagens dos aparatos repressivos, fundamentais na sustentação do regime militar. Como não foram cobradas responsabilidades pelos atos repressivos, a instituição militar não foi colocada no centro de um amplo debate nacional sobre os papéis que vinha cumprindo na esfera política e a opinião pública não colocou em discussão os valores éticos necessários para a construção de uma autêntica democracia.
A construção da democracia no Brasil hoje exige respeito às normas constitucionais, de modo que o poder militar em toda a sua expressão recolha-se às suas atribuições profissionais e subordine-se à autoridade de um governo civil legitimado nas urnas.
* Aloysio Castelo de Carvalho é Professor da Universidade Federal Fluminense.
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