Por André Barrocal, na revista CartaCapital:
Raquel Dodge tem até o fim de setembro para decidir se acusa o padrinho de sua indicação à chefia da PGR, Michel Temer, por algum crime no recebimento, em março de 2014, de 1,4 milhão de reais da Odebrecht por um amigo do presidente, João Baptista Lima Filho, coronel aposentado da PM. Ordem do juiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, após a Polícia Federal ter encerrado um inquérito e concluído que Temer, seus ministros Eliseu Padilha e Moreira Franco e o coronel se corromperam e lavaram dinheiro.
A PF está para terminar outra investigação de Temer e Lima, esta no setor portuário, área de influência antiga do presidente, ao menos em Santos. Dentro da PF, há quem veja o delegado do caso, Cleyber Malta Lopes, meio perdido. Uma fabulosa disputa de 2,6 bilhões de reais, a opor o Porto de Santos e uma financiadora de Temer, a Libra, entra também na reta final, com perspectiva, ao menos para os cofres públicos, meio desoladora, como o inquérito do delegado Lopes.
Os dois lados entregaram, em 20 de agosto, suas alegações finais ao tribunal arbitral da Câmara de Comércio Brasil-Canadá, e agora é com os três árbitros-juízes. Há palpites de uma decisão ainda este ano. Libra só escapa do papagaio por milagre, ainda que o árbitro-presidente, Cristiano Zanetti, seja um advogado habituado a elaborar pareceres para a banca defensora de Libra. O problema é outro. A Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp) pode ganhar, mas não levar.
A Libra tem problemas financeiros. Em janeiro de 2017, renegociou dívidas com os credores, mas não adiantou. Em julho último, pediu recuperação judicial, aceita pelo juiz Paulo Furtado de Oliveira Filho, da 2a Vara de Falências do Tribunal de Justiça de São Paulo. Quando uma firma está nessa situação, há uma hierarquia de qual credor recebe antes e tentativas de baixar débitos, para salvar o negócio.
“A recuperação judicial, portanto, blinda integralmente a nossa operação de qualquer cobrança ou medida que possa afetar negativamente o atendimento a armadores e demais clientes”, diz o balanço do segundo trimestre da Libra. Explicado o comentário de um advogado que enfrenta a empresa na arbitragem: “A recuperação foi uma ducha fria na gente”.
Se o Erário ficar a ver navios, há uma lista de autoridades merecedoras de uma medalha de honra ao mérito: Temer e seus parceiros de MDB Eduardo Cunha e Edinho Araújo, ex-dirigentes do Porto, o TCU, órgão auxiliar do Congresso na vigilância do governo, e o Ministério Público.
Recorde-se. O compromisso de decidir fora da Justiça a bilionária disputa, nascida há quase 20 anos, é de 2 de setembro de 2015. Foi assinado por Araújo, ministro dos Portos na ocasião graças a Temer, pelos presidentes à época da Codesp, Angelino Caputo e Oliveira, e da Antaq, a agência reguladora dos transportes aquaviários, Mario Pova, e por dois representantes da Libra. Foram extintas nove ações judiciais.
As autoridades selaram um outro trato naquele dia, a prorrogar até 2035 três concessões de Libra para operar em Santos, entre elas uma de 1998, que é a origem do litígio levado à arbitragem. Em troca, a empresa prometeu investir 750 milhões de reais. O acordo a dar início de fato à arbitragem, definidor de detalhes como o tribunal e prazos, só foi assinado dois anos depois, em 4 de setembro de 2017, quando as finanças da Libra já iam mal.
Em janeiro deste ano, a banca privada contratada para defender o porto mandou um documento ao tribunal arbitral a citar, como respaldo à cobrança bilionária contra a Libra, uma antiga vitória judicial tida pela estatal naquele processo que é o coração da briga.
“Ainda mais relevantes são as decisões judicias trazidas pela Codesp, pois apreciaram exatamente a controvérsia objeto desta arbitragem. Prolatadas por magistrada competente, independente e imparcial, bem demonstraram que os argumentos da Libra não resistem à análise”, diz o texto. “Tais sentenças ainda chegaram a ser confirmadas pelo único voto de mérito em segunda instância, proferido pelo desembargador relator originário dos recursos (da Libra), que bem reconheceu a plena assertividade das sentenças (pró-Codesp) e julgou integralmente improcedentes as apelações (da Libra).”
Se os advogados do porto invocam hoje decisões favoráveis, por que a Codesp aceitou abrir mão das ações contra a Libra e levar tudo para uma arbitragem? E por que o governo, via Edinho Araújo, concordou?
As ações vencidas pela Codesp e depois extintas nasceram pouco após a Libra ganhar uma licitação e assinar, em 1998, um contrato de concessão para movimentar contêineres em Santos. A empresa logo parou de pagar as prestações devidas, por alegar que o porto descumpria o combinado.
A disputa chegou à Justiça em 1999, na área cível, e virou três processos federais em 2003. CartaCapital obteve em Santos uma cópia dessas ações movidas pelo porto, a cobrar da Libra, na época, 9,5 milhões de reais. A estatal ganhou a causa, por decisão da juíza Alessandra Nuyens Aguiar Aranha, da 4a Vara Federal de Santos. “A contumácia da ré em não honrar com seus compromissos repercute séria e negativamente nos cofres da autora (da ação), com sérios prejuízos ao Porto de Santos”, diz a sentença, de 23 de março de 2004.
Libra recorreu ao Tribunal Regional Federal da 3a Região, e ali houve algo estranho. Em 15 de setembro de 2011, o relator, juiz Wilson Zauhy, votou contra Libra. Seu colega Silva Neto, também. O último magistrado, Márcio Moraes, pediu vistas. Seis dias depois, o Diário Oficial do TRF3 publicou o resumo do julgamento, a chamada “tira”, como se o assunto estivesse encerrado. Libra aproveitou o engano – foi engano? – e pediu a suspeição de Zauhy, que aceitou.
E a Codesp? Nada, para estranheza de um advogado familiarizado com o rolo. “Seria sua obrigação ter recorrido da suspeição ou ter pedido apuração de quem publicou a tira de julgamento antecipadamente ou, ainda, militar por sua vitória em segunda instância, independentemente da publicação antecipada ou não. Até a própria aceitação da suspeição pelo juiz Wilson Zauhy, após afirmar que não via motivo para a suspeição, soou estranha e a total inércia da Codesp facilitou isso.”
O chefe do jurídico do porto na época era o advogado Manuel Luís. Ficou ali de 2008 a janeiro de 2013, período em que a Secretaria de Portos do governo federal esteve sob a guarda do PSB, com aliados do presidenciável Ciro Gomes, hoje no PDT.
Luís saiu do cargo devido a uma operação da PF de semanas antes, a Porto Seguro, descobridora de um esquema de venda de pareceres pró-firmas privadas que tinham disputa ou interesses no governo. O principal alvo da operação era o membro do conselho de administração do Porto de Santos na ocasião, Paulo Vieira. Manuel Luís seria o contato dele na diretoria do porto. Segundo a Folha, Luís tinha escrito, por exemplo, um parecer que defendia a presença no porto de uma empresa acusada pelo TCU de violar a Lei de Licitações, a Tecondi.
De volta ao caso Libra. Em 2012, um ano depois de a Codesp vacilar no TRF3, a então presidenta Dilma Rousseff propôs uma nova Lei de Portos a proibir contrato do poder público com empresa caloteira do Erário. Uma ameaça para a Libra em Santos. Na votação da lei, em 2013, Cunha, líder do MDB na época, agiu em sintonia com Temer, derrotou Dilma e inseriu no texto a permissão para inadimplente ter contrato público e para negociar a dívida fora dos tribunais, em uma arbitragem. Ideia feita sob medida para a Libra e mais ninguém.
As motivações emedebistas? A concessão de 1998 de Libra foi assinada quando o porto era comandado por um indicado de Temer, Marcelo Azeredo. O inquérito do delegado Lopes ressuscitou uma planilha de 1998 que sugere propina de Libra a “MT”, provavelmente Michel Temer e “MA”, possivelmente Marcelo Azeredo.
Os laços de Libra com Temer e o MDB solidificaram-se à base de grana em eleições, e Cunha beneficiou-se. Na campanha de 2010, o MDB do Rio, o de Cunha, recebeu 110 mil reais da família dona de Libra, uma parte dada pela matriarca Zuleika Torrealba, outra por um dos quatro filhos dela, Rodrigo Torrealba.
Em 2014, a generosidade aumentou. Zuleika deu 1 milhão de reais à direção do MDB, comandada então por Temer. Rodrigo e seus irmãos Ana Carolina e Celina deram quase 1 milhão de reais a Temer, que abrira uma conta eleitoral própria, distinta da de Dilma. Outros 750 mil foram repassados ao MDB do Rio, o de Cunha.
As doações e a defesa de interesses de Libra dentro do governo por Temer custaram a prisão dos quatro irmãos Torrealba (o último é Gonçalo) pela PF, em 29 de março deste ano, na Operação Skala. Zuleika só não foi levada devido à idade octogenária. Os irmãos foram soltos dias depois.
Passada a eleição de 2014, Temer pressionou Dilma para o MDB ficar com o Ministério de Portos, que não era da cota do partido. Claro. Aberta na lei a brecha salvadora de Libra, faltava o governo aceitar a arbitragem e renovar as concessões da empresa. A salvação foi discutida por Temer e Cunha com um dos diretores de Libra, Gonçalo Torrealba, em 2013, no Palácio do Jaburu.
Um local, aliás, que viu coisas espantosas com Temer de inquilino. Lembra aquela incrível conversa do emedebista com Joesley Batista, da JBS/Friboi, gravada pelo empresário e que depois virou delação contra o presidente? Foi no Jaburu, em 7 de março de 2017. E aquele jantar com Marcelo Odebrecht sobre 10 milhões de reais em grana da empreiteira para o MDB na eleição de 2014, fato que Raquel Dodge tem de decidir se pariu crime? Foi lá também, em 28 de maio.
Temer emplacou no Ministério de Portos um aliado, Edinho Araújo, então deputado, hoje prefeito de São José do Rio Preto. O indicado assinou o acordo que extinguiu as ações judiciais do Porto de Santos e da Libra e jogava o litígio para uma arbitragem. Por que a Codesp topou abrir mão das ações, se as chances de vencer eram grandes, a ponto de seus advogados na arbitragem invocarem decisões anteriores? E por que do pacote de ações extintas ficou de fora a única que o porto perdia?
Nesta ação esquecida, a Codesp errara o nome da Libra ao entrar com um processo em 2008. O juiz Claudio Teixeira Villar, na 2a Vara Cível de Santos, encerrou o caso por isso. Os advogados da Libra queriam honorários assim mesmo. Em dezembro de 2016, Villar mandou o porto lhes pagar 2,1 milhões.
Esses advogados são do escritório defensor de Libra na arbitragem, o Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide. “Com esse valor, e dado o pouco trabalho que o escritório teve nessa ação, foi como se o porto tivesse antecipado os honorários para a arbitragem”, diz uma pessoa participante da arbitragem.
Será que a anuência da Codesp com a extinção de ações que ganhava, será que as barbeiragens jurídicas podem ser explicadas com grana?
Na época do acordo da arbitragem, setembro de 2015, o jurídico do porto era chefiado por Bernadete Bacellar do Carmo Mercier, que entrara em 2013 no lugar de Manuel Luís. Era ela quem tinha o controle e a memória das ações. Havia sido indicada pelo hoje governador de São Paulo, Márcio França, do PSB, partido que comandou a área portuária federal de 2007 a 2013.
Bernadete trabalhou com França quando ele era prefeito de São Vicente (1997-2005), cidade vizinha de Santos. É também advogada particular dele e alvo de uma ação popular por improbidade na Codesp. França é há muitos anos o homem das finanças do PSB, sigla agraciada com doações dos Torrealba: 1,3 milhão na campanha de 2010, dos quais 250 mil dados por Gonçalo à direção nacional, e 500 mil na de 2014, dos quais metade à direção nacional.
A renovação do contrato de Libra com o porto, assinado ao mesmo tempo do acordo da arbitragem, foi anulada em maio passado pelo TCU. O órgão deu dois anos para outro contrato ser assinado. O TCU merece palmas? Negativo.
Aparentemente, não viu nada de errado na época da prorrogação do contrato. Abriu um processo sobre o assunto apenas em 23 de agosto de 2016, três semanas após CartaCapital publicar uma reportagem reveladora das conexões políticas e financeiras entre Temer, Cunha, MDB, Libra, arbitragem etc.
O processo ficou com o ministro Augusto Nardes, um ex-deputado pelo PP gaúcho alvejado na Operação Zelotes, aquela que desmontou um esquema de anulação de dívidas fiscais de empresas em troca de propina. Em maio de 2017, Nardes recusou uma recomendação da área técnica do TCU para anular o contrato. Não tinha pressa. Achava que era preciso deixar o governo e a Libra falarem.
Em fevereiro passado, Nardes desistiu do caso. Alegou motivo de foro íntimo, sem explicar qual. Quer dizer, segurou o que deu e pulou fora. Foi no TCU de Nardes que o governo negociou a chancela à escolha da banca de advogados que defenderia o porto na disputa de 2,6 bilhões de reais. A seleção levou mais de um ano, demora que serviu para aumentar o prejuízo do Erário, reclamação repetida no conselho de administração da Codesp pelo representante dos trabalhadores, João de Andrade Marques.
Em junho de 2016, Eliseu Padilha, chefe da Casa Civil, resolveu centralizar a escolha. Puro medo. Dois dias antes, a Folha noticiara que o porto havia pinçado o escritório Nelson Wiliams, cujo dono seria frequentador de jantares no Jaburu e um ex-parceiro de um filho de Padilha. O honorário seria fabuloso, 23 milhões de reais.
Graças à negociação com Padilha, gaúcho como Nardes, o TCU respaldou que a seleção não precisaria passar por licitação. E ainda preparou um menu com dez opções. A escolha da banca de Arnold Wald foi comunicada ao conselho de administração da Codesp em 4 de agosto de 2017 pelo chefe do jurídico, Gabriel Eufrázio.
Quando Nardes refugou, quem assumiu o caso foi Ana Arraes, e esta puxou no plenário do TCU a proposta de desfazer o contrato de Libra em Santos. Para ela, a empresa deveria ter feito um depósito prévio no valor hoje em disputa arbitral. A ideia de caução consta de um decreto de 2015, o 8465, preparado pelo governo Dilma para tentar minimizar a derrota para a dupla Temer-Cunha na Lei de Portos. Ao interpretar o decreto, Ana entendeu que o governo não poderia ter prorrogado o contrato de Libra antes da arbitragem. Só depois, pois o valor da caução seria fixado no tribunal arbitral.
Essa visão foi partilhada pelo representante do Ministério Público no TCU. Em um parecer de 10 de abril, Julio Marcelo de Oliveira disse que Libra “atuou, com a conivência do poder público, de modo a inverter a lógica da lei”, e que o governo “se despiu de todas as suas prerrogativas e responsabilidades para atender de modo servil aos interesses” da empresa.
Ele e o MP não viram isso antes? Não tiveram interesse em examinar o acordo de 2 de setembro de 2015? Questão de prioridades, talvez.
Em outubro de 2015, uma parceria entre Augusto Nardes e Julio Marcelo levou o TCU a condenar Dilma por “pedalada fiscal”, conceito que levaria à degola da petista meses depois. E aí quem assumiu o poder foi Temer, hoje alvo de dois processos e de duas investigações, enquanto grava vídeos desaforados contra Geraldo Alckmin, devido às críticas da campanha do presidenciável tucano ao governo, apesar do mar de partidos governistas na coligação do PSDB.
Enquanto isso, os 2,6 bilhões de reais cobrados de Libra pelo Porto de Santos parecem cada vez mais uma miragem para o Erário.
A PF está para terminar outra investigação de Temer e Lima, esta no setor portuário, área de influência antiga do presidente, ao menos em Santos. Dentro da PF, há quem veja o delegado do caso, Cleyber Malta Lopes, meio perdido. Uma fabulosa disputa de 2,6 bilhões de reais, a opor o Porto de Santos e uma financiadora de Temer, a Libra, entra também na reta final, com perspectiva, ao menos para os cofres públicos, meio desoladora, como o inquérito do delegado Lopes.
Os dois lados entregaram, em 20 de agosto, suas alegações finais ao tribunal arbitral da Câmara de Comércio Brasil-Canadá, e agora é com os três árbitros-juízes. Há palpites de uma decisão ainda este ano. Libra só escapa do papagaio por milagre, ainda que o árbitro-presidente, Cristiano Zanetti, seja um advogado habituado a elaborar pareceres para a banca defensora de Libra. O problema é outro. A Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp) pode ganhar, mas não levar.
A Libra tem problemas financeiros. Em janeiro de 2017, renegociou dívidas com os credores, mas não adiantou. Em julho último, pediu recuperação judicial, aceita pelo juiz Paulo Furtado de Oliveira Filho, da 2a Vara de Falências do Tribunal de Justiça de São Paulo. Quando uma firma está nessa situação, há uma hierarquia de qual credor recebe antes e tentativas de baixar débitos, para salvar o negócio.
“A recuperação judicial, portanto, blinda integralmente a nossa operação de qualquer cobrança ou medida que possa afetar negativamente o atendimento a armadores e demais clientes”, diz o balanço do segundo trimestre da Libra. Explicado o comentário de um advogado que enfrenta a empresa na arbitragem: “A recuperação foi uma ducha fria na gente”.
Se o Erário ficar a ver navios, há uma lista de autoridades merecedoras de uma medalha de honra ao mérito: Temer e seus parceiros de MDB Eduardo Cunha e Edinho Araújo, ex-dirigentes do Porto, o TCU, órgão auxiliar do Congresso na vigilância do governo, e o Ministério Público.
Recorde-se. O compromisso de decidir fora da Justiça a bilionária disputa, nascida há quase 20 anos, é de 2 de setembro de 2015. Foi assinado por Araújo, ministro dos Portos na ocasião graças a Temer, pelos presidentes à época da Codesp, Angelino Caputo e Oliveira, e da Antaq, a agência reguladora dos transportes aquaviários, Mario Pova, e por dois representantes da Libra. Foram extintas nove ações judiciais.
As autoridades selaram um outro trato naquele dia, a prorrogar até 2035 três concessões de Libra para operar em Santos, entre elas uma de 1998, que é a origem do litígio levado à arbitragem. Em troca, a empresa prometeu investir 750 milhões de reais. O acordo a dar início de fato à arbitragem, definidor de detalhes como o tribunal e prazos, só foi assinado dois anos depois, em 4 de setembro de 2017, quando as finanças da Libra já iam mal.
Em janeiro deste ano, a banca privada contratada para defender o porto mandou um documento ao tribunal arbitral a citar, como respaldo à cobrança bilionária contra a Libra, uma antiga vitória judicial tida pela estatal naquele processo que é o coração da briga.
“Ainda mais relevantes são as decisões judicias trazidas pela Codesp, pois apreciaram exatamente a controvérsia objeto desta arbitragem. Prolatadas por magistrada competente, independente e imparcial, bem demonstraram que os argumentos da Libra não resistem à análise”, diz o texto. “Tais sentenças ainda chegaram a ser confirmadas pelo único voto de mérito em segunda instância, proferido pelo desembargador relator originário dos recursos (da Libra), que bem reconheceu a plena assertividade das sentenças (pró-Codesp) e julgou integralmente improcedentes as apelações (da Libra).”
Se os advogados do porto invocam hoje decisões favoráveis, por que a Codesp aceitou abrir mão das ações contra a Libra e levar tudo para uma arbitragem? E por que o governo, via Edinho Araújo, concordou?
As ações vencidas pela Codesp e depois extintas nasceram pouco após a Libra ganhar uma licitação e assinar, em 1998, um contrato de concessão para movimentar contêineres em Santos. A empresa logo parou de pagar as prestações devidas, por alegar que o porto descumpria o combinado.
A disputa chegou à Justiça em 1999, na área cível, e virou três processos federais em 2003. CartaCapital obteve em Santos uma cópia dessas ações movidas pelo porto, a cobrar da Libra, na época, 9,5 milhões de reais. A estatal ganhou a causa, por decisão da juíza Alessandra Nuyens Aguiar Aranha, da 4a Vara Federal de Santos. “A contumácia da ré em não honrar com seus compromissos repercute séria e negativamente nos cofres da autora (da ação), com sérios prejuízos ao Porto de Santos”, diz a sentença, de 23 de março de 2004.
Libra recorreu ao Tribunal Regional Federal da 3a Região, e ali houve algo estranho. Em 15 de setembro de 2011, o relator, juiz Wilson Zauhy, votou contra Libra. Seu colega Silva Neto, também. O último magistrado, Márcio Moraes, pediu vistas. Seis dias depois, o Diário Oficial do TRF3 publicou o resumo do julgamento, a chamada “tira”, como se o assunto estivesse encerrado. Libra aproveitou o engano – foi engano? – e pediu a suspeição de Zauhy, que aceitou.
E a Codesp? Nada, para estranheza de um advogado familiarizado com o rolo. “Seria sua obrigação ter recorrido da suspeição ou ter pedido apuração de quem publicou a tira de julgamento antecipadamente ou, ainda, militar por sua vitória em segunda instância, independentemente da publicação antecipada ou não. Até a própria aceitação da suspeição pelo juiz Wilson Zauhy, após afirmar que não via motivo para a suspeição, soou estranha e a total inércia da Codesp facilitou isso.”
O chefe do jurídico do porto na época era o advogado Manuel Luís. Ficou ali de 2008 a janeiro de 2013, período em que a Secretaria de Portos do governo federal esteve sob a guarda do PSB, com aliados do presidenciável Ciro Gomes, hoje no PDT.
Luís saiu do cargo devido a uma operação da PF de semanas antes, a Porto Seguro, descobridora de um esquema de venda de pareceres pró-firmas privadas que tinham disputa ou interesses no governo. O principal alvo da operação era o membro do conselho de administração do Porto de Santos na ocasião, Paulo Vieira. Manuel Luís seria o contato dele na diretoria do porto. Segundo a Folha, Luís tinha escrito, por exemplo, um parecer que defendia a presença no porto de uma empresa acusada pelo TCU de violar a Lei de Licitações, a Tecondi.
De volta ao caso Libra. Em 2012, um ano depois de a Codesp vacilar no TRF3, a então presidenta Dilma Rousseff propôs uma nova Lei de Portos a proibir contrato do poder público com empresa caloteira do Erário. Uma ameaça para a Libra em Santos. Na votação da lei, em 2013, Cunha, líder do MDB na época, agiu em sintonia com Temer, derrotou Dilma e inseriu no texto a permissão para inadimplente ter contrato público e para negociar a dívida fora dos tribunais, em uma arbitragem. Ideia feita sob medida para a Libra e mais ninguém.
As motivações emedebistas? A concessão de 1998 de Libra foi assinada quando o porto era comandado por um indicado de Temer, Marcelo Azeredo. O inquérito do delegado Lopes ressuscitou uma planilha de 1998 que sugere propina de Libra a “MT”, provavelmente Michel Temer e “MA”, possivelmente Marcelo Azeredo.
Os laços de Libra com Temer e o MDB solidificaram-se à base de grana em eleições, e Cunha beneficiou-se. Na campanha de 2010, o MDB do Rio, o de Cunha, recebeu 110 mil reais da família dona de Libra, uma parte dada pela matriarca Zuleika Torrealba, outra por um dos quatro filhos dela, Rodrigo Torrealba.
Em 2014, a generosidade aumentou. Zuleika deu 1 milhão de reais à direção do MDB, comandada então por Temer. Rodrigo e seus irmãos Ana Carolina e Celina deram quase 1 milhão de reais a Temer, que abrira uma conta eleitoral própria, distinta da de Dilma. Outros 750 mil foram repassados ao MDB do Rio, o de Cunha.
As doações e a defesa de interesses de Libra dentro do governo por Temer custaram a prisão dos quatro irmãos Torrealba (o último é Gonçalo) pela PF, em 29 de março deste ano, na Operação Skala. Zuleika só não foi levada devido à idade octogenária. Os irmãos foram soltos dias depois.
Passada a eleição de 2014, Temer pressionou Dilma para o MDB ficar com o Ministério de Portos, que não era da cota do partido. Claro. Aberta na lei a brecha salvadora de Libra, faltava o governo aceitar a arbitragem e renovar as concessões da empresa. A salvação foi discutida por Temer e Cunha com um dos diretores de Libra, Gonçalo Torrealba, em 2013, no Palácio do Jaburu.
Um local, aliás, que viu coisas espantosas com Temer de inquilino. Lembra aquela incrível conversa do emedebista com Joesley Batista, da JBS/Friboi, gravada pelo empresário e que depois virou delação contra o presidente? Foi no Jaburu, em 7 de março de 2017. E aquele jantar com Marcelo Odebrecht sobre 10 milhões de reais em grana da empreiteira para o MDB na eleição de 2014, fato que Raquel Dodge tem de decidir se pariu crime? Foi lá também, em 28 de maio.
Temer emplacou no Ministério de Portos um aliado, Edinho Araújo, então deputado, hoje prefeito de São José do Rio Preto. O indicado assinou o acordo que extinguiu as ações judiciais do Porto de Santos e da Libra e jogava o litígio para uma arbitragem. Por que a Codesp topou abrir mão das ações, se as chances de vencer eram grandes, a ponto de seus advogados na arbitragem invocarem decisões anteriores? E por que do pacote de ações extintas ficou de fora a única que o porto perdia?
Nesta ação esquecida, a Codesp errara o nome da Libra ao entrar com um processo em 2008. O juiz Claudio Teixeira Villar, na 2a Vara Cível de Santos, encerrou o caso por isso. Os advogados da Libra queriam honorários assim mesmo. Em dezembro de 2016, Villar mandou o porto lhes pagar 2,1 milhões.
Esses advogados são do escritório defensor de Libra na arbitragem, o Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide. “Com esse valor, e dado o pouco trabalho que o escritório teve nessa ação, foi como se o porto tivesse antecipado os honorários para a arbitragem”, diz uma pessoa participante da arbitragem.
Será que a anuência da Codesp com a extinção de ações que ganhava, será que as barbeiragens jurídicas podem ser explicadas com grana?
Na época do acordo da arbitragem, setembro de 2015, o jurídico do porto era chefiado por Bernadete Bacellar do Carmo Mercier, que entrara em 2013 no lugar de Manuel Luís. Era ela quem tinha o controle e a memória das ações. Havia sido indicada pelo hoje governador de São Paulo, Márcio França, do PSB, partido que comandou a área portuária federal de 2007 a 2013.
Bernadete trabalhou com França quando ele era prefeito de São Vicente (1997-2005), cidade vizinha de Santos. É também advogada particular dele e alvo de uma ação popular por improbidade na Codesp. França é há muitos anos o homem das finanças do PSB, sigla agraciada com doações dos Torrealba: 1,3 milhão na campanha de 2010, dos quais 250 mil dados por Gonçalo à direção nacional, e 500 mil na de 2014, dos quais metade à direção nacional.
A renovação do contrato de Libra com o porto, assinado ao mesmo tempo do acordo da arbitragem, foi anulada em maio passado pelo TCU. O órgão deu dois anos para outro contrato ser assinado. O TCU merece palmas? Negativo.
Aparentemente, não viu nada de errado na época da prorrogação do contrato. Abriu um processo sobre o assunto apenas em 23 de agosto de 2016, três semanas após CartaCapital publicar uma reportagem reveladora das conexões políticas e financeiras entre Temer, Cunha, MDB, Libra, arbitragem etc.
O processo ficou com o ministro Augusto Nardes, um ex-deputado pelo PP gaúcho alvejado na Operação Zelotes, aquela que desmontou um esquema de anulação de dívidas fiscais de empresas em troca de propina. Em maio de 2017, Nardes recusou uma recomendação da área técnica do TCU para anular o contrato. Não tinha pressa. Achava que era preciso deixar o governo e a Libra falarem.
Em fevereiro passado, Nardes desistiu do caso. Alegou motivo de foro íntimo, sem explicar qual. Quer dizer, segurou o que deu e pulou fora. Foi no TCU de Nardes que o governo negociou a chancela à escolha da banca de advogados que defenderia o porto na disputa de 2,6 bilhões de reais. A seleção levou mais de um ano, demora que serviu para aumentar o prejuízo do Erário, reclamação repetida no conselho de administração da Codesp pelo representante dos trabalhadores, João de Andrade Marques.
Em junho de 2016, Eliseu Padilha, chefe da Casa Civil, resolveu centralizar a escolha. Puro medo. Dois dias antes, a Folha noticiara que o porto havia pinçado o escritório Nelson Wiliams, cujo dono seria frequentador de jantares no Jaburu e um ex-parceiro de um filho de Padilha. O honorário seria fabuloso, 23 milhões de reais.
Graças à negociação com Padilha, gaúcho como Nardes, o TCU respaldou que a seleção não precisaria passar por licitação. E ainda preparou um menu com dez opções. A escolha da banca de Arnold Wald foi comunicada ao conselho de administração da Codesp em 4 de agosto de 2017 pelo chefe do jurídico, Gabriel Eufrázio.
Quando Nardes refugou, quem assumiu o caso foi Ana Arraes, e esta puxou no plenário do TCU a proposta de desfazer o contrato de Libra em Santos. Para ela, a empresa deveria ter feito um depósito prévio no valor hoje em disputa arbitral. A ideia de caução consta de um decreto de 2015, o 8465, preparado pelo governo Dilma para tentar minimizar a derrota para a dupla Temer-Cunha na Lei de Portos. Ao interpretar o decreto, Ana entendeu que o governo não poderia ter prorrogado o contrato de Libra antes da arbitragem. Só depois, pois o valor da caução seria fixado no tribunal arbitral.
Essa visão foi partilhada pelo representante do Ministério Público no TCU. Em um parecer de 10 de abril, Julio Marcelo de Oliveira disse que Libra “atuou, com a conivência do poder público, de modo a inverter a lógica da lei”, e que o governo “se despiu de todas as suas prerrogativas e responsabilidades para atender de modo servil aos interesses” da empresa.
Ele e o MP não viram isso antes? Não tiveram interesse em examinar o acordo de 2 de setembro de 2015? Questão de prioridades, talvez.
Em outubro de 2015, uma parceria entre Augusto Nardes e Julio Marcelo levou o TCU a condenar Dilma por “pedalada fiscal”, conceito que levaria à degola da petista meses depois. E aí quem assumiu o poder foi Temer, hoje alvo de dois processos e de duas investigações, enquanto grava vídeos desaforados contra Geraldo Alckmin, devido às críticas da campanha do presidenciável tucano ao governo, apesar do mar de partidos governistas na coligação do PSDB.
Enquanto isso, os 2,6 bilhões de reais cobrados de Libra pelo Porto de Santos parecem cada vez mais uma miragem para o Erário.
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