Por Marcelo Semer, na revista Cult:
Há um ano atrás, quando a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram cruelmente assassinados, a campanha presidencial já estava a todo vapor. Os pretendentes ao Planalto cuidaram de manifestar solidariedade e indignação com o bárbaro crime. Exceto o então deputado Jair Bolsonaro, que preferiu o silêncio, sob o pretexto de que uma manifestação sua seria “muito polêmica”.
Não se sabe exatamente que tipo de polêmica Bolsonaro pretendia estabelecer com a repulsa generalizada, no país e fora dele, a um homicídio de natureza política, justo ele, ironicamente, que viria a ser vítima de um atentado na campanha. Fato é que vários de seus apoiadores distribuíram fake news pelas redes sociais simulando aproximações da vereadora com bicheiros ou traficantes. Todas falsas. O desprezo para com a morte mais tarde viria se somar ao insulto com as ameaças, e novas fake news contra o deputado reeleito Jean Wyllys, que abdicou da posse e saiu do país justamente com medo de ser a próxima vítima.
A campanha seguiu adiante e nem o episódio da facada foi suficiente para que a morte deixasse de ser um assunto vulgar. Bolsonaro fez arminha com as mãos, ensinando o movimento que se tornou seu símbolo a crianças de tenra idade; simulou metralhar adversários e encerrou a campanha com um virulento discurso onde insinuava, se eleito, mandar seus desafetos para a Ponta da Praia – local conhecido como desova de corpos durante a ditadura.
Os índices de violência policial contra civis no país provavelmente são os mais altos do mundo; ainda assim, a vitória de Bolsonaro parece que vai conseguir a proeza de aumentá-los um pouco mais. Há um nítido objetivo neste sentido. Palavras de ordem de que, agora, a repressão está liberada sem limites, têm sido ouvidas por transeuntes em São Paulo e indígenas nas reservas de Roraima.
Com a morte como método, cercear a celebração da liberdade virou um alvo prioritário.
Indignado com o sucesso do desfile da Mangueira, ao final, campeã do Carnaval carioca, Carlos Bolsonaro tentou fazer uma espécie de ligação entre Marielle (homenageada no enredo) e um ex-presidente da agremiação preso por envolvimento criminoso – ocultando, todavia, a filiação política e a circunstância dele como apoiador de seu pai. Não se entendia muito bem por que o assaque gratuito à memória de Marielle naquele momento, mas o tempo logo ia se encarregar de explicar.
De toda a forma, o Carnaval foi mesmo um momento lúgubre para a família.
O presidente foi ridicularizado ao redor do mundo, porque, irritado com blocos e com o firme propósito de difamá-los e assim deslegitimar as críticas, divulgou vídeo de escatologia sexual sem restrições a seus mais de três milhões de seguidores. Dias depois, replicou matéria com afirmações falsas contra uma jornalista do Estado de S. Paulo – aproveitando para desgastar também o pai desta jornalista, desafeto por função, eis que especializado na cobertura e desvelamento das práticas das milícias no Rio de Janeiro, que parece ser um calcanhar de Aquiles da nova gestão.
O apreço de Bolsonaro pelas milícias vem, aliás, de longa data. Em 2013, no plenário da Câmara, o deputado as estimulou explicitamente: “Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o meu apoio.”
O apoio da família, é bem verdade, nunca lhes faltou – entre títulos, homenagens e cargos no gabinete do filho Flávio Bolsonaro, capitaneado pelo assessor, motorista e coletor de salários, Fabrício Queiroz.
Em fevereiro de 2018, mesmo candidato, Bolsonaro permaneceu defendendo as milícias: “Tem gente que é favorável à milícia, que é a maneira que eles têm de se ver livres da violência. Naquela região onde a milícia é paga, não tem violência”.
O trato com a morte parece ser o salvo-conduto que as garante na proximidade do poder.
Às vésperas de completar um ano do assassinato de Marielle e Anderson, a polícia civil do Estado do Rio de Janeiro e o Ministério Público finalmente apresentaram os suspeitos da execução dos crimes. Houve comoção porque os acusados eram provenientes da Polícia Militar. Um dos matadores residia no mesmo condomínio luxoso de Bolsonaro (seus filhos inclusive teriam sido namorados), enquanto a fotografia do outro réu ao lado do presidente correu a internet em busca de uma explicação que, afinal, não veio.
Preocupações supostamente desnecessárias, diria Eduardo Bolsonaro, para quem a morte de Marielle não tinha diferença nenhuma das mais de sessenta mil que acontecem anualmente no Brasil. “Ninguém a conhecia antes do assassinato”, vociferou o deputado, na mesma linha do pai que fez questão de marcar seu desconhecimento – a despeito dela ter sido colega da Câmara Municipal do filho Carlos.
Os assassinatos de Marielle e Anderson foram tudo menos corriqueiros: os dados da investigação demonstraram uma preocupação intensa dos autores em esconder os passos ao mesmo tempo em que eram percorridos – até uma falsa máscara de braço teria sido empregada para disfarçar, a eventuais câmaras, a cor da pele do homicida. No mesmo dia da prisão preventiva, ademais, foram apreendidos 117 fuzis importados de alta potência – o grau de profissionalismo exala de todos os poros.
O Brasil inteiro se pergunta, então, quem mandou matar Marielle – mas o presidente da República, entrevistado no mesmo dia das prisões, disse que quer saber, primeiro, quem mandou matá-lo, ignorando que os indícios consistentes em relação a Adélio Bispo, revelados pela própria Polícia Federal que está sob o comando do ministro Moro, é de que o atentado foi obra de um agente com desequilíbrio emocional e sem rastros de mandantes. Em tudo diverso dos indícios de profissionalismo do caso Marielle, servindo a provocação apenas para engrossar a cortina de fumaça.
O que liga Bolsonaro a uma política de morte, todavia, nem são as inúmeras coincidências que impressionam, mas as políticas que defendeu em toda uma vida parlamentar, quando louvou um reconhecido torturador no plenário da Câmara ou quando lamentou que poucos haviam sido mortos durante a ditadura; quando dizia que só cachorros procuravam ossos (em referência aos desaparecidos), ou quando assentou os excessos do coitadismo, sobretudo em relação às vítimas da homofobia. Ele não se constrangeu de levar tais temas para dentro do Palácio do Planalto. A desmontagem dos instrumentos de proteção a vulneráveis tem sido uma das primeiras providências de governo.
Na esfera da segurança pública, suas principais propostas foram intrinsecamente ligadas à morte. Primeiro, flexibilizar a posse de arma de fogo por decreto, invertendo por completo o espírito do Estatuto do Desarmamento; depois, um pacote de projetos de lei capitaneado por mecanismos para diminuir a responsabilidade penal e expandir as hipóteses de ação preventiva pelos agentes de segurança.
O pacote Moro, chamado de “anticrime”, poderia tranquilamente ser rebatizado de “mais mortes”. Abandona preocupações concretas com o fortalecimento do papel investigativo da polícia, necessário diante do baixíssimo grau de resoluções dos homicídios e aumenta consideravelmente as hipóteses em que a morte se afirme como política policial – o que constrange os mais comezinhos princípios do direito internacional dos direitos humanos e, de quebra, a garantia da dignidade humana, que encima a Constituição.
A proposta, enfim, não deixa de ser uma fidedigna tradução da caricatural lei do abate aventada pelo governador Wilson Witzel, para que os policiais antecipem suas ações sobre indivíduos que tenham posse de fuzis. O que a investigação do caso Marielle vem mostrando, no entanto, é que os fuzis não estão nas comunidades. Estão na posse de quem reside em luxuosos condomínios da Barra da Tijuca. Na favela, ficam apenas os corpos.
Na Câmara dos Deputados, noticiou a imprensa, um grupo de parlamentares atrapalhou uma sessão em homenagem ao aniversário da morte de Marielle Franco com barulho de latidos de cachorro. Entre seus líderes, estava o deputado Daniel Silveira, do partido do presidente da República, que se popularizou por quebrar, em um comício ao lado do então candidato Witzel, uma placa de rua com o nome da vereadora assassinada – estilizando uma segunda morte da vereadora.
O assassinato de Marielle põe a nu a força da ideia da morte como política; da violência como silenciamento; da imbricação partidária com milícias, poder paralelo financiador das campanhas políticas. É por isso que incomoda tanto quando Marielle é homenageada ou celebrada. A lembrança traz à tona um cipoal de ligações escusas e verdades altamente inconvenientes.
A morte de Marielle é um encontro do Brasil com o país que ele está se tornando. Um país no qual a violência é o padrão de linguagem, a paranoia o condimento de gestão, e o cerco ao conhecimento, a interdição ao debate e a repulsa à política completam o ciclo destrutivo. Instrumentos tradicionais de democracia são desprezados cada qual a seu modo e tempo. Por fim, capitulam diante do exercício da morte.
Neste jogo não há vencedores. Apenas alguns sobreviventes.
* Marcelo Semer é é juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, é também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.
Há um ano atrás, quando a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram cruelmente assassinados, a campanha presidencial já estava a todo vapor. Os pretendentes ao Planalto cuidaram de manifestar solidariedade e indignação com o bárbaro crime. Exceto o então deputado Jair Bolsonaro, que preferiu o silêncio, sob o pretexto de que uma manifestação sua seria “muito polêmica”.
Não se sabe exatamente que tipo de polêmica Bolsonaro pretendia estabelecer com a repulsa generalizada, no país e fora dele, a um homicídio de natureza política, justo ele, ironicamente, que viria a ser vítima de um atentado na campanha. Fato é que vários de seus apoiadores distribuíram fake news pelas redes sociais simulando aproximações da vereadora com bicheiros ou traficantes. Todas falsas. O desprezo para com a morte mais tarde viria se somar ao insulto com as ameaças, e novas fake news contra o deputado reeleito Jean Wyllys, que abdicou da posse e saiu do país justamente com medo de ser a próxima vítima.
A campanha seguiu adiante e nem o episódio da facada foi suficiente para que a morte deixasse de ser um assunto vulgar. Bolsonaro fez arminha com as mãos, ensinando o movimento que se tornou seu símbolo a crianças de tenra idade; simulou metralhar adversários e encerrou a campanha com um virulento discurso onde insinuava, se eleito, mandar seus desafetos para a Ponta da Praia – local conhecido como desova de corpos durante a ditadura.
Os índices de violência policial contra civis no país provavelmente são os mais altos do mundo; ainda assim, a vitória de Bolsonaro parece que vai conseguir a proeza de aumentá-los um pouco mais. Há um nítido objetivo neste sentido. Palavras de ordem de que, agora, a repressão está liberada sem limites, têm sido ouvidas por transeuntes em São Paulo e indígenas nas reservas de Roraima.
Com a morte como método, cercear a celebração da liberdade virou um alvo prioritário.
Indignado com o sucesso do desfile da Mangueira, ao final, campeã do Carnaval carioca, Carlos Bolsonaro tentou fazer uma espécie de ligação entre Marielle (homenageada no enredo) e um ex-presidente da agremiação preso por envolvimento criminoso – ocultando, todavia, a filiação política e a circunstância dele como apoiador de seu pai. Não se entendia muito bem por que o assaque gratuito à memória de Marielle naquele momento, mas o tempo logo ia se encarregar de explicar.
De toda a forma, o Carnaval foi mesmo um momento lúgubre para a família.
O presidente foi ridicularizado ao redor do mundo, porque, irritado com blocos e com o firme propósito de difamá-los e assim deslegitimar as críticas, divulgou vídeo de escatologia sexual sem restrições a seus mais de três milhões de seguidores. Dias depois, replicou matéria com afirmações falsas contra uma jornalista do Estado de S. Paulo – aproveitando para desgastar também o pai desta jornalista, desafeto por função, eis que especializado na cobertura e desvelamento das práticas das milícias no Rio de Janeiro, que parece ser um calcanhar de Aquiles da nova gestão.
O apreço de Bolsonaro pelas milícias vem, aliás, de longa data. Em 2013, no plenário da Câmara, o deputado as estimulou explicitamente: “Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o meu apoio.”
O apoio da família, é bem verdade, nunca lhes faltou – entre títulos, homenagens e cargos no gabinete do filho Flávio Bolsonaro, capitaneado pelo assessor, motorista e coletor de salários, Fabrício Queiroz.
Em fevereiro de 2018, mesmo candidato, Bolsonaro permaneceu defendendo as milícias: “Tem gente que é favorável à milícia, que é a maneira que eles têm de se ver livres da violência. Naquela região onde a milícia é paga, não tem violência”.
O trato com a morte parece ser o salvo-conduto que as garante na proximidade do poder.
Às vésperas de completar um ano do assassinato de Marielle e Anderson, a polícia civil do Estado do Rio de Janeiro e o Ministério Público finalmente apresentaram os suspeitos da execução dos crimes. Houve comoção porque os acusados eram provenientes da Polícia Militar. Um dos matadores residia no mesmo condomínio luxoso de Bolsonaro (seus filhos inclusive teriam sido namorados), enquanto a fotografia do outro réu ao lado do presidente correu a internet em busca de uma explicação que, afinal, não veio.
Preocupações supostamente desnecessárias, diria Eduardo Bolsonaro, para quem a morte de Marielle não tinha diferença nenhuma das mais de sessenta mil que acontecem anualmente no Brasil. “Ninguém a conhecia antes do assassinato”, vociferou o deputado, na mesma linha do pai que fez questão de marcar seu desconhecimento – a despeito dela ter sido colega da Câmara Municipal do filho Carlos.
Os assassinatos de Marielle e Anderson foram tudo menos corriqueiros: os dados da investigação demonstraram uma preocupação intensa dos autores em esconder os passos ao mesmo tempo em que eram percorridos – até uma falsa máscara de braço teria sido empregada para disfarçar, a eventuais câmaras, a cor da pele do homicida. No mesmo dia da prisão preventiva, ademais, foram apreendidos 117 fuzis importados de alta potência – o grau de profissionalismo exala de todos os poros.
O Brasil inteiro se pergunta, então, quem mandou matar Marielle – mas o presidente da República, entrevistado no mesmo dia das prisões, disse que quer saber, primeiro, quem mandou matá-lo, ignorando que os indícios consistentes em relação a Adélio Bispo, revelados pela própria Polícia Federal que está sob o comando do ministro Moro, é de que o atentado foi obra de um agente com desequilíbrio emocional e sem rastros de mandantes. Em tudo diverso dos indícios de profissionalismo do caso Marielle, servindo a provocação apenas para engrossar a cortina de fumaça.
O que liga Bolsonaro a uma política de morte, todavia, nem são as inúmeras coincidências que impressionam, mas as políticas que defendeu em toda uma vida parlamentar, quando louvou um reconhecido torturador no plenário da Câmara ou quando lamentou que poucos haviam sido mortos durante a ditadura; quando dizia que só cachorros procuravam ossos (em referência aos desaparecidos), ou quando assentou os excessos do coitadismo, sobretudo em relação às vítimas da homofobia. Ele não se constrangeu de levar tais temas para dentro do Palácio do Planalto. A desmontagem dos instrumentos de proteção a vulneráveis tem sido uma das primeiras providências de governo.
Na esfera da segurança pública, suas principais propostas foram intrinsecamente ligadas à morte. Primeiro, flexibilizar a posse de arma de fogo por decreto, invertendo por completo o espírito do Estatuto do Desarmamento; depois, um pacote de projetos de lei capitaneado por mecanismos para diminuir a responsabilidade penal e expandir as hipóteses de ação preventiva pelos agentes de segurança.
O pacote Moro, chamado de “anticrime”, poderia tranquilamente ser rebatizado de “mais mortes”. Abandona preocupações concretas com o fortalecimento do papel investigativo da polícia, necessário diante do baixíssimo grau de resoluções dos homicídios e aumenta consideravelmente as hipóteses em que a morte se afirme como política policial – o que constrange os mais comezinhos princípios do direito internacional dos direitos humanos e, de quebra, a garantia da dignidade humana, que encima a Constituição.
A proposta, enfim, não deixa de ser uma fidedigna tradução da caricatural lei do abate aventada pelo governador Wilson Witzel, para que os policiais antecipem suas ações sobre indivíduos que tenham posse de fuzis. O que a investigação do caso Marielle vem mostrando, no entanto, é que os fuzis não estão nas comunidades. Estão na posse de quem reside em luxuosos condomínios da Barra da Tijuca. Na favela, ficam apenas os corpos.
Na Câmara dos Deputados, noticiou a imprensa, um grupo de parlamentares atrapalhou uma sessão em homenagem ao aniversário da morte de Marielle Franco com barulho de latidos de cachorro. Entre seus líderes, estava o deputado Daniel Silveira, do partido do presidente da República, que se popularizou por quebrar, em um comício ao lado do então candidato Witzel, uma placa de rua com o nome da vereadora assassinada – estilizando uma segunda morte da vereadora.
O assassinato de Marielle põe a nu a força da ideia da morte como política; da violência como silenciamento; da imbricação partidária com milícias, poder paralelo financiador das campanhas políticas. É por isso que incomoda tanto quando Marielle é homenageada ou celebrada. A lembrança traz à tona um cipoal de ligações escusas e verdades altamente inconvenientes.
A morte de Marielle é um encontro do Brasil com o país que ele está se tornando. Um país no qual a violência é o padrão de linguagem, a paranoia o condimento de gestão, e o cerco ao conhecimento, a interdição ao debate e a repulsa à política completam o ciclo destrutivo. Instrumentos tradicionais de democracia são desprezados cada qual a seu modo e tempo. Por fim, capitulam diante do exercício da morte.
Neste jogo não há vencedores. Apenas alguns sobreviventes.
* Marcelo Semer é é juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, é também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.
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