Por Altamiro Borges
O ministro Marco Aurélio Mello decidiu submeter ao pleno do Supremo Tribunal Federal uma ação ajuizada pelo PT contra o decreto do “capetão” Jair Bolsonaro que extingue os conselhos, comitês e outros colegiados da administração pública federal. Ainda não há data definida para o julgamento da liminar, mas a tendência é que o assunto seja agendado pelo ministro Dias Toffoli, presidente do STF, antes que o decreto fascistoide entre em vigor, em 28 de junho, e destrua o pouco que ainda resta de canais democráticos no Brasil.
Na ação, o PT apresentou quatro argumentos para sustentar que o decreto é inconstitucional e exigir a sua revogação. “O primeiro é que o presidente não tem atribuição para criar ou extinguir órgãos públicos. O segundo é que um decreto não tem o condão de alterar disposições previstas em lei – como é o caso de alguns conselhos. O terceiro é que, ao não especificar quais colegiados serão atingidos, o decreto violou o princípio da segurança jurídica, pois criou incertezas na administração pública. Por fim, o PT argumentou que a extinção de instituições que permitem a democracia participativa viola o princípio constitucional da participação popular”, informa a Folha.
Entre os colegiados que o truculento Jair Bolsonaro pretende extinguir estão os que tratam de temas como relações de trabalho, Previdência, políticas indigenistas, direitos dos idosos e da população LGBT. O decreto inclui todos os conselhos, comitês, comissões, grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns, salas e ‘qualquer outra denominação’ dada aos colegiados. “Levantamento feito pela advogada e doutoranda em Ciência Política pela USP Carla Bezerra mostra que, dos conselhos criados até 2014 e que têm participação da sociedade civil, ao menos 34 podem ser afetados pelo decreto presidencial”.
Quando baixou mais essa medida autoritária, Jair Bolsonaro disparou no seu Twitter: “Gigantesca economia, desburocratização e redução do poder de entidades aparelhadas politicamente usando nomes bonitos para impor suas vontades, ignorando a lei e atrapalhando propositalmente o desenvolvimento do Brasil”. Mas a iniciativa, que agora será julgada pelo STF, foi contestada por várias entidades, que apontaram os prejuízos na elaboração de políticas públicas e na participação da sociedade. Em um manifesto, 39 organizações não governamentais (ONGs) afirmaram que o decreto “vai na contramão do desenvolvimento democrático”.
Segundo Laila Belix, integrante do Pacto pela Democracia, fórum que estruturou o manifesto, “o governo não fez nenhum estudo aprofundado das estruturas para identificar o que é fundamental para a formulação de políticas públicas, para identificar o que tem caráter mais estratégico. Não sabe quantos existem e coloca no mesmo balaio estruturas que não são iguais, que têm funções e papéis diferentes... Os conselhos têm a função de discutir o que vai ser proposto pelo governo e acompanhar e monitorar o que foi feito em planos e processos participativos. Se não há a estrutura, não há esse espaço de debate e monitoramento”.
Ela cita entre os colegiados ameaçados de extinção alguns que são emblemáticos, como a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, o Comitê Gestor da Internet, o Comitê de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. O risco é tamanho que o Ministério Público Federal e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão também já manifestaram preocupação com a medida do “capetão”. Ainda sobre o tema, vale conferir o alerta redigido por José Antônio Moroni, que é integrante do colegiado de gestão do Inesc.
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Extinção de conselhos reforça ideia de Estado autoritário e não público
José Antônio Moroni – Folha de S.Paulo, 03 de maio de 2019
Os desejos de participar da esfera pública, assim como os de liberdade e igualdade, sempre estiveram presentes nas lutas sociais nos diferentes períodos da história e de diversas formas.
Participar significa incidir nas questões que dizem respeito à vida concreta das pessoas, mas também nos processos de tomada de decisão do Estado e dos governos. Fruto desse processo é que hoje culturas e países diversos reconhecem a participação como um direito humano fundamental.
Para dar concretude a esse direito, reconstruíram a sua institucionalidade, incorporando os espaços institucionais de participação no arcabouço das instituições democráticas. É um novo desenho democrático, que reconhece outras formas legítimas de participação na esfera pública que não apenas a via da representação eleitoral.
Vivemos numa sociedade diversa, plural e complexa, onde o exercício do poder (tomar decisões) deve refletir essa diversidade e, para isso, é necessário ampliar o que se entende por instituições democráticas.
A democracia não pode ser reduzida apenas aos procedimentos eleitorais, que, na maioria das vezes, reproduzem as relações de poder estabelecidas na sociedade.
Precisamos construir instituições democráticas e, ao mesmo tempo, essas instituições precisam ser plurais para incorporar as diferentes demandas, sujeitos e vozes de uma sociedade complexa.
Somente esse mosaico democrático é capaz de processar as transformações que tanto queremos. Em outras palavras, superar essa crise de perspectiva que a humanidade vive somente com a “democratização da democracia”.
A concepção minimalista de democracia onde a participação não tem lugar, aliada a uma igualdade estabelecida apenas do ponto de vista formal, gera uma sociedade baseada no privilégio (que é para poucos) e não no direito (que é para todos).
A base política desta concepção é um Estado autoritário, opaco, patrimonialista e fomentador da desigualdade. Um Estado a serviço da manutenção deste “status quo”.
No processo constituinte de 1988, os movimentos sociais levaram para o debate a seguinte questão: “Como democratizar o Estado?” Em resposta a esta questão, a Constituição incorpora a dimensão da participação em espaços de decisão sobre diversas políticas.
Portanto participar tem relação direta com democratizar. O Brasil já tinha experiências de conselhos, principalmente no âmbito local. O primeiro criado foi o da saúde, em 1937.
Esse princípio constitucional que gera o sistema de participação institucionalizada foi um avanço significativo na direção da democratização do Estado e na concretização do direito humano a participar, reconhecido e reeditado em vários outros países.
Também foi importante na identificação da multiplicidade dos sujeitos políticos e na construção de suas identidades. Saímos da homogeneidade da luta baseada na relação capital x trabalho, fundamental numa sociedade capitalista, e afirmamos que a sociedade é mais complexa e precisa ter outros olhares.
Portanto a criação destes espaços institucionais de participação, cuja face mais conhecida se expressa por meio dos conselhos, é fruto de uma longa caminhada feita pela sociedade para exercer o seu direito de participar das decisões públicas, tentando redesenhar os processos democráticos, criando uma nova institucionalidade democrática.
Conselhos, comitês, fóruns e conferências têm prestado, principalmente, ao longo das três últimas décadas, um papel fundamental na esfera pública.
Isso ocorre ao vocalizar demandas de segmentos da sociedade que nunca tiveram espaço nessa arena, apoiando a implementação de políticas públicas e a deliberação mais equânime do orçamento público e sustentando os períodos de transição governamentais ao diminuir o impacto de soluções de continuidade.
Sem estes espaços resta o balcão de negócios que sabemos bem como funciona.
Neste sentido, o decreto 9.759/2019, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro e que pode extinguir esses espaços de participação institucionalizada na esfera federal, vai na contramão de todo o processo de tentativas de “democratizar a democracia”.
O decreto, anunciado como um gesto para desburocratizar e trazer mais economia para a administração pública, reforça a concepção de Estado autoritário e não público. Um Estado que está a serviço das elites econômicas, culturais e políticas. Um flagrante exercício da velha política, que perde a oportunidade de apostar na colaboração estratégica entre sociedade civil organizada e Estado.
Uma política que afasta a população dos núcleos de tomada das decisões é uma política que reforça o poder das velhas e novas oligarquias e do poder paralelo ao Estado.
* José Antônio Moroni é integrante do colegiado de gestão do Inesc e da plataforma dos movimentos sociais pela reforma do sistema político.
O ministro Marco Aurélio Mello decidiu submeter ao pleno do Supremo Tribunal Federal uma ação ajuizada pelo PT contra o decreto do “capetão” Jair Bolsonaro que extingue os conselhos, comitês e outros colegiados da administração pública federal. Ainda não há data definida para o julgamento da liminar, mas a tendência é que o assunto seja agendado pelo ministro Dias Toffoli, presidente do STF, antes que o decreto fascistoide entre em vigor, em 28 de junho, e destrua o pouco que ainda resta de canais democráticos no Brasil.
Na ação, o PT apresentou quatro argumentos para sustentar que o decreto é inconstitucional e exigir a sua revogação. “O primeiro é que o presidente não tem atribuição para criar ou extinguir órgãos públicos. O segundo é que um decreto não tem o condão de alterar disposições previstas em lei – como é o caso de alguns conselhos. O terceiro é que, ao não especificar quais colegiados serão atingidos, o decreto violou o princípio da segurança jurídica, pois criou incertezas na administração pública. Por fim, o PT argumentou que a extinção de instituições que permitem a democracia participativa viola o princípio constitucional da participação popular”, informa a Folha.
Entre os colegiados que o truculento Jair Bolsonaro pretende extinguir estão os que tratam de temas como relações de trabalho, Previdência, políticas indigenistas, direitos dos idosos e da população LGBT. O decreto inclui todos os conselhos, comitês, comissões, grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns, salas e ‘qualquer outra denominação’ dada aos colegiados. “Levantamento feito pela advogada e doutoranda em Ciência Política pela USP Carla Bezerra mostra que, dos conselhos criados até 2014 e que têm participação da sociedade civil, ao menos 34 podem ser afetados pelo decreto presidencial”.
Quando baixou mais essa medida autoritária, Jair Bolsonaro disparou no seu Twitter: “Gigantesca economia, desburocratização e redução do poder de entidades aparelhadas politicamente usando nomes bonitos para impor suas vontades, ignorando a lei e atrapalhando propositalmente o desenvolvimento do Brasil”. Mas a iniciativa, que agora será julgada pelo STF, foi contestada por várias entidades, que apontaram os prejuízos na elaboração de políticas públicas e na participação da sociedade. Em um manifesto, 39 organizações não governamentais (ONGs) afirmaram que o decreto “vai na contramão do desenvolvimento democrático”.
Segundo Laila Belix, integrante do Pacto pela Democracia, fórum que estruturou o manifesto, “o governo não fez nenhum estudo aprofundado das estruturas para identificar o que é fundamental para a formulação de políticas públicas, para identificar o que tem caráter mais estratégico. Não sabe quantos existem e coloca no mesmo balaio estruturas que não são iguais, que têm funções e papéis diferentes... Os conselhos têm a função de discutir o que vai ser proposto pelo governo e acompanhar e monitorar o que foi feito em planos e processos participativos. Se não há a estrutura, não há esse espaço de debate e monitoramento”.
Ela cita entre os colegiados ameaçados de extinção alguns que são emblemáticos, como a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, o Comitê Gestor da Internet, o Comitê de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. O risco é tamanho que o Ministério Público Federal e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão também já manifestaram preocupação com a medida do “capetão”. Ainda sobre o tema, vale conferir o alerta redigido por José Antônio Moroni, que é integrante do colegiado de gestão do Inesc.
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Extinção de conselhos reforça ideia de Estado autoritário e não público
José Antônio Moroni – Folha de S.Paulo, 03 de maio de 2019
Os desejos de participar da esfera pública, assim como os de liberdade e igualdade, sempre estiveram presentes nas lutas sociais nos diferentes períodos da história e de diversas formas.
Participar significa incidir nas questões que dizem respeito à vida concreta das pessoas, mas também nos processos de tomada de decisão do Estado e dos governos. Fruto desse processo é que hoje culturas e países diversos reconhecem a participação como um direito humano fundamental.
Para dar concretude a esse direito, reconstruíram a sua institucionalidade, incorporando os espaços institucionais de participação no arcabouço das instituições democráticas. É um novo desenho democrático, que reconhece outras formas legítimas de participação na esfera pública que não apenas a via da representação eleitoral.
Vivemos numa sociedade diversa, plural e complexa, onde o exercício do poder (tomar decisões) deve refletir essa diversidade e, para isso, é necessário ampliar o que se entende por instituições democráticas.
A democracia não pode ser reduzida apenas aos procedimentos eleitorais, que, na maioria das vezes, reproduzem as relações de poder estabelecidas na sociedade.
Precisamos construir instituições democráticas e, ao mesmo tempo, essas instituições precisam ser plurais para incorporar as diferentes demandas, sujeitos e vozes de uma sociedade complexa.
Somente esse mosaico democrático é capaz de processar as transformações que tanto queremos. Em outras palavras, superar essa crise de perspectiva que a humanidade vive somente com a “democratização da democracia”.
A concepção minimalista de democracia onde a participação não tem lugar, aliada a uma igualdade estabelecida apenas do ponto de vista formal, gera uma sociedade baseada no privilégio (que é para poucos) e não no direito (que é para todos).
A base política desta concepção é um Estado autoritário, opaco, patrimonialista e fomentador da desigualdade. Um Estado a serviço da manutenção deste “status quo”.
No processo constituinte de 1988, os movimentos sociais levaram para o debate a seguinte questão: “Como democratizar o Estado?” Em resposta a esta questão, a Constituição incorpora a dimensão da participação em espaços de decisão sobre diversas políticas.
Portanto participar tem relação direta com democratizar. O Brasil já tinha experiências de conselhos, principalmente no âmbito local. O primeiro criado foi o da saúde, em 1937.
Esse princípio constitucional que gera o sistema de participação institucionalizada foi um avanço significativo na direção da democratização do Estado e na concretização do direito humano a participar, reconhecido e reeditado em vários outros países.
Também foi importante na identificação da multiplicidade dos sujeitos políticos e na construção de suas identidades. Saímos da homogeneidade da luta baseada na relação capital x trabalho, fundamental numa sociedade capitalista, e afirmamos que a sociedade é mais complexa e precisa ter outros olhares.
Portanto a criação destes espaços institucionais de participação, cuja face mais conhecida se expressa por meio dos conselhos, é fruto de uma longa caminhada feita pela sociedade para exercer o seu direito de participar das decisões públicas, tentando redesenhar os processos democráticos, criando uma nova institucionalidade democrática.
Conselhos, comitês, fóruns e conferências têm prestado, principalmente, ao longo das três últimas décadas, um papel fundamental na esfera pública.
Isso ocorre ao vocalizar demandas de segmentos da sociedade que nunca tiveram espaço nessa arena, apoiando a implementação de políticas públicas e a deliberação mais equânime do orçamento público e sustentando os períodos de transição governamentais ao diminuir o impacto de soluções de continuidade.
Sem estes espaços resta o balcão de negócios que sabemos bem como funciona.
Neste sentido, o decreto 9.759/2019, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro e que pode extinguir esses espaços de participação institucionalizada na esfera federal, vai na contramão de todo o processo de tentativas de “democratizar a democracia”.
O decreto, anunciado como um gesto para desburocratizar e trazer mais economia para a administração pública, reforça a concepção de Estado autoritário e não público. Um Estado que está a serviço das elites econômicas, culturais e políticas. Um flagrante exercício da velha política, que perde a oportunidade de apostar na colaboração estratégica entre sociedade civil organizada e Estado.
Uma política que afasta a população dos núcleos de tomada das decisões é uma política que reforça o poder das velhas e novas oligarquias e do poder paralelo ao Estado.
* José Antônio Moroni é integrante do colegiado de gestão do Inesc e da plataforma dos movimentos sociais pela reforma do sistema político.
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