Por Wladimir Pomar, no sítio Correio da Cidadania:
Já nos referimos, em vários momentos, ao uso do conceito de mobilidade como instrumento incorreto para a análise das classes sociais. O que não significa descartar o conceito para as situações em que camadas de uma classe transitam de camadas inferiores para camadas superiores, ou vice-versa, e setores de uma classe transitem para outra classe. No entanto, tomar a mobilidade social como base para a transformação de uma classe em outra, como tem sido abusivamente utilizado no Brasil, sem ter por base transformações nas relações de propriedade ou de produção, não é apropriado.
Eliana Vicente, por exemplo, diz que vários setores da sociedade afirmam ter havido um intenso e profundo processo de mobilidade social no país. Isso parece ser verdade. Setores até então excluídos do mercado, constituindo parte do que alguns chamam de exército industrial de reserva, outros de lumpemproletariado, e ainda outros de ralé, ascenderam para a classe dos trabalhadores assalariados. A grande maioria o fez na condição de trabalhadores de salário mínimo no setor de serviços. Isso representou uma mobilidade social, mudança de uma classe para outra, ambas historicamente existentes no contexto das relações capitalistas de produção.
Mas Vicente tenta modificar e generalizar o conceito de mobilidade social ao dizer que o fenômeno da chamada “nova classe média” tem chamado atenção na história recente, a partir do grande crescimento desse segmento nos países emergentes como China, Índia e Brasil. Segundo ela, estima-se que 400 milhões de pessoas façam parte dessa “nova classe média global”. Com isso, ela esquece seu próprio alerta de que a denominação de “nova classe média” pode confundir e obscurecer o entendimento das questões relativas às desigualdades e ao consumo.
A realidade tem mostrado que o fenômeno que mais chama a atenção em anos recentes, na China, Índia e mesmo Brasil, tem sido a emergência de uma nova classe trabalhadora assalariada. Na China, essa nova classe trabalhadora parece somar mais de 400 milhões de pessoas. Na Índia, mais de 200 milhões. E no Brasil ,cerca de 50 milhões. Aqui ela é oriunda da ralé urbana desamparada desde os anos 1970. Na China, ela decorre da transformação do campesinato em classe assalariada, representando uma revolução social. Na Índia, a nova classe trabalhadora assalariada vem tanto da revolução agrícola quanto da ralé urbana.
Paralelamente, tanto na China, quanto na Índia e no Brasil, conformou-se ainda uma pequena-burguesia urbana e rural, proprietária de meios de produção, circulação e distribuição, que os opera com sua própria força de trabalho e também com forças de trabalho assalariadas. Essa pequena burguesia, que pode ser chamada de classe média, deve englobar mais de 400 milhões de pessoas apenas na China, principalmente situada nas áreas rurais. No Brasil, os dados a respeito são extremamente confusos, já que as estatísticas dificilmente comprovam a expropriação do campesinato pelo agronegócio e a correta relação entre a abertura e o fechamento de pequenas firmas industriais, comerciais e de serviços.
De qualquer modo, há evidências daquilo que Vicente chama de mudanças socioeconômicas relativas às camadas populares, desde 2002, com a estabilidade da moeda, a bancarização e o acesso fácil ao crédito, os planos sociais de distribuição de renda e o aumento gradativo dos salários. Isso tudo teria resultado num aumento da participação da população na aquisição de bens de consumo e consequente aquecimento da economia do país, levando as camadas emergentes a serem vistas como “novos consumidores”.
Ou seja, a partir daí, e na errônea suposição de que pobre não consome, criou-se a lenda de uma nova classe média de baixas rendas, desdenhando a propriedade de meios de produção como critério de caracterização. Não por acaso, alguns afirmam que a estratificação dos ocupados, indicativo das oportunidades individuais, mostra expressiva redução daqueles que se encontravam na situação de miseráveis, com a correspondente expansão da massa trabalhadora pobre, mas sobretudo da baixa classe média ou remediada.
Elísio Estanque supõe que “classe média” e “classe trabalhadora” surgem no Brasil como figurantes que jamais entraram no mesmo filme, mas onde, agora, se pretende travestir a segunda (ou parte dela) em imitação barata da primeira. O que não é de todo verdadeiro, do ponto de vista histórico. Elas são figurantes do mesmo filme de desenvolvimento capitalista, ora se confrontando, ora se aliando.
Durante o auge do milagre econômico da ditadura militar, a maior parte da classe média e também da classe trabalhadora viveu contente com o crescimento e com os empregos e os salários que este propiciava, só descobrindo as mazelas do regime e de seu desenvolvimento quando a crise se abateu sobre o país. Foi nessas condições que amplos setores da classe média se aliaram aos trabalhadores industriais, em apoio às greves destes, e em que a maior parte da classe média se aliou à classe trabalhadora na luta contra a ditadura, pelas Diretas Já! e pela democracia.
Estanque talvez tenha razão em apreciar que, no caso português, compôs-se uma “peça teatral” que começou na celebração festiva do 25 de abril de 1974, com a dança transclassista de conflito, evoluindo mais tarde para uma farsa em que a classe trabalhadora fingiu ser “classe de serviço” da classe dominante. Hoje, porém, há sério risco de, em seu último ato, a dita farsa culminar em tragédia, com uma ilusória “classe média” sofrendo o drama do empobrecimento e um operariado, que já era pobre e decrépito, a engrossar a pobreza resignada.
Ou seja, do ponto de vista da mobilidade social, tanto a classe média quanto a classe trabalhadora se deixaram enganar por uma falsa ascensão, agora voltando ao ponto anterior de empobrecimento. Ainda segundo Estanque, em Portugal, a “classe-média-que-não-chegou-a-ser” está se desfazendo no ar. Dito de outro modo, os segmentos da classe trabalhadora dos serviços e da administração pública – que chegaram a adotar comportamentos e subjetividades típicas do (velho) ethos da (velha) classe média assalariada – foram confrontados com a violência da crise que lhes mostrou a dura realidade de uma reproletarização.
Estanque se refere aqui, como grande parte dos estudiosos brasileiros, aos setores da classe dos trabalhadores assalariados que recebem altos salários, seja por sua qualificação técnica, seja porque aproveitam seus postos na empresa privada ou na instituição pública para realizar negócios de interesse particular. Estes trabalhadores, em geral, seguem dois caminhos, de duplo sentido, em suas tentativas de mobilidade social.
Uns acumulam capitais, na forma de equipamentos, máquinas, outros meios de produção, circulação e distribuição, ou ações de empresas, e ascendem da classe trabalhadora para a pequena-burguesia. A história conhece vários casos dessa mobilidade social, que os levou inclusive a ingressar na burguesia. Mas não é incomum que a concorrência e as crises capitalistas os façam realizar o caminho inverso da (re)proletarização.
Outros dilapidam seus salários de diferentes formas, mas adotam o que Estanque chama de comportamentos e subjetividades típicas, não da classe trabalhadora assalariada, como ele pensa, mas sim da pequena-burguesia ou mesmo da burguesia. Neste último caso, em geral os comportamentos não passam de uma paródia farsesca. Mais do que os outros, que acumularam capitais, correm o perigo da (re)proletarização ou da queda na ralé.
Estanque também sustenta que a pirâmide social brasileira se renovou, mas se renovou renovando também a instabilidade, a flexibilidade e a precariedade. A taxa de rotatividade era de cerca de 37% do emprego formal, em 2009, sobretudo para os empregos de mais baixos salários, que representam 85,3% para a faixa que ganha salário mínimo ou menos. Portanto, se há uma deslocação da base da pirâmide (da “escada”), o conjunto dos estratos superiores move-se em simultâneo, com a agravante de que os que já estavam no topo avançam mais rápido e perdem-se de vista.
Assim, ao contrário de um suposto nivelamento, o que acontece é que quem já se encontrava no topo tem maiores chances de tirar proveito dos novos meios tecnológicos, de modalidades emergentes de consumo e de negócios que a sociedade vai disponibilizando. Em outras palavras, a melhoria das condições de vida da classe trabalhadora assalariada brasileira, e de parte da ralé que ascendeu a ela, comparada com o enriquecimento dos donos de capital, mostra que o fosso entre ambas as classes se aprofundou, ao invés de ser reduzido. É essa situação que está na raiz das manifestações populares de junho de 2013 no Brasil.
Já nos referimos, em vários momentos, ao uso do conceito de mobilidade como instrumento incorreto para a análise das classes sociais. O que não significa descartar o conceito para as situações em que camadas de uma classe transitam de camadas inferiores para camadas superiores, ou vice-versa, e setores de uma classe transitem para outra classe. No entanto, tomar a mobilidade social como base para a transformação de uma classe em outra, como tem sido abusivamente utilizado no Brasil, sem ter por base transformações nas relações de propriedade ou de produção, não é apropriado.
Eliana Vicente, por exemplo, diz que vários setores da sociedade afirmam ter havido um intenso e profundo processo de mobilidade social no país. Isso parece ser verdade. Setores até então excluídos do mercado, constituindo parte do que alguns chamam de exército industrial de reserva, outros de lumpemproletariado, e ainda outros de ralé, ascenderam para a classe dos trabalhadores assalariados. A grande maioria o fez na condição de trabalhadores de salário mínimo no setor de serviços. Isso representou uma mobilidade social, mudança de uma classe para outra, ambas historicamente existentes no contexto das relações capitalistas de produção.
Mas Vicente tenta modificar e generalizar o conceito de mobilidade social ao dizer que o fenômeno da chamada “nova classe média” tem chamado atenção na história recente, a partir do grande crescimento desse segmento nos países emergentes como China, Índia e Brasil. Segundo ela, estima-se que 400 milhões de pessoas façam parte dessa “nova classe média global”. Com isso, ela esquece seu próprio alerta de que a denominação de “nova classe média” pode confundir e obscurecer o entendimento das questões relativas às desigualdades e ao consumo.
A realidade tem mostrado que o fenômeno que mais chama a atenção em anos recentes, na China, Índia e mesmo Brasil, tem sido a emergência de uma nova classe trabalhadora assalariada. Na China, essa nova classe trabalhadora parece somar mais de 400 milhões de pessoas. Na Índia, mais de 200 milhões. E no Brasil ,cerca de 50 milhões. Aqui ela é oriunda da ralé urbana desamparada desde os anos 1970. Na China, ela decorre da transformação do campesinato em classe assalariada, representando uma revolução social. Na Índia, a nova classe trabalhadora assalariada vem tanto da revolução agrícola quanto da ralé urbana.
Paralelamente, tanto na China, quanto na Índia e no Brasil, conformou-se ainda uma pequena-burguesia urbana e rural, proprietária de meios de produção, circulação e distribuição, que os opera com sua própria força de trabalho e também com forças de trabalho assalariadas. Essa pequena burguesia, que pode ser chamada de classe média, deve englobar mais de 400 milhões de pessoas apenas na China, principalmente situada nas áreas rurais. No Brasil, os dados a respeito são extremamente confusos, já que as estatísticas dificilmente comprovam a expropriação do campesinato pelo agronegócio e a correta relação entre a abertura e o fechamento de pequenas firmas industriais, comerciais e de serviços.
De qualquer modo, há evidências daquilo que Vicente chama de mudanças socioeconômicas relativas às camadas populares, desde 2002, com a estabilidade da moeda, a bancarização e o acesso fácil ao crédito, os planos sociais de distribuição de renda e o aumento gradativo dos salários. Isso tudo teria resultado num aumento da participação da população na aquisição de bens de consumo e consequente aquecimento da economia do país, levando as camadas emergentes a serem vistas como “novos consumidores”.
Ou seja, a partir daí, e na errônea suposição de que pobre não consome, criou-se a lenda de uma nova classe média de baixas rendas, desdenhando a propriedade de meios de produção como critério de caracterização. Não por acaso, alguns afirmam que a estratificação dos ocupados, indicativo das oportunidades individuais, mostra expressiva redução daqueles que se encontravam na situação de miseráveis, com a correspondente expansão da massa trabalhadora pobre, mas sobretudo da baixa classe média ou remediada.
Elísio Estanque supõe que “classe média” e “classe trabalhadora” surgem no Brasil como figurantes que jamais entraram no mesmo filme, mas onde, agora, se pretende travestir a segunda (ou parte dela) em imitação barata da primeira. O que não é de todo verdadeiro, do ponto de vista histórico. Elas são figurantes do mesmo filme de desenvolvimento capitalista, ora se confrontando, ora se aliando.
Durante o auge do milagre econômico da ditadura militar, a maior parte da classe média e também da classe trabalhadora viveu contente com o crescimento e com os empregos e os salários que este propiciava, só descobrindo as mazelas do regime e de seu desenvolvimento quando a crise se abateu sobre o país. Foi nessas condições que amplos setores da classe média se aliaram aos trabalhadores industriais, em apoio às greves destes, e em que a maior parte da classe média se aliou à classe trabalhadora na luta contra a ditadura, pelas Diretas Já! e pela democracia.
Estanque talvez tenha razão em apreciar que, no caso português, compôs-se uma “peça teatral” que começou na celebração festiva do 25 de abril de 1974, com a dança transclassista de conflito, evoluindo mais tarde para uma farsa em que a classe trabalhadora fingiu ser “classe de serviço” da classe dominante. Hoje, porém, há sério risco de, em seu último ato, a dita farsa culminar em tragédia, com uma ilusória “classe média” sofrendo o drama do empobrecimento e um operariado, que já era pobre e decrépito, a engrossar a pobreza resignada.
Ou seja, do ponto de vista da mobilidade social, tanto a classe média quanto a classe trabalhadora se deixaram enganar por uma falsa ascensão, agora voltando ao ponto anterior de empobrecimento. Ainda segundo Estanque, em Portugal, a “classe-média-que-não-chegou-a-ser” está se desfazendo no ar. Dito de outro modo, os segmentos da classe trabalhadora dos serviços e da administração pública – que chegaram a adotar comportamentos e subjetividades típicas do (velho) ethos da (velha) classe média assalariada – foram confrontados com a violência da crise que lhes mostrou a dura realidade de uma reproletarização.
Estanque se refere aqui, como grande parte dos estudiosos brasileiros, aos setores da classe dos trabalhadores assalariados que recebem altos salários, seja por sua qualificação técnica, seja porque aproveitam seus postos na empresa privada ou na instituição pública para realizar negócios de interesse particular. Estes trabalhadores, em geral, seguem dois caminhos, de duplo sentido, em suas tentativas de mobilidade social.
Uns acumulam capitais, na forma de equipamentos, máquinas, outros meios de produção, circulação e distribuição, ou ações de empresas, e ascendem da classe trabalhadora para a pequena-burguesia. A história conhece vários casos dessa mobilidade social, que os levou inclusive a ingressar na burguesia. Mas não é incomum que a concorrência e as crises capitalistas os façam realizar o caminho inverso da (re)proletarização.
Outros dilapidam seus salários de diferentes formas, mas adotam o que Estanque chama de comportamentos e subjetividades típicas, não da classe trabalhadora assalariada, como ele pensa, mas sim da pequena-burguesia ou mesmo da burguesia. Neste último caso, em geral os comportamentos não passam de uma paródia farsesca. Mais do que os outros, que acumularam capitais, correm o perigo da (re)proletarização ou da queda na ralé.
Estanque também sustenta que a pirâmide social brasileira se renovou, mas se renovou renovando também a instabilidade, a flexibilidade e a precariedade. A taxa de rotatividade era de cerca de 37% do emprego formal, em 2009, sobretudo para os empregos de mais baixos salários, que representam 85,3% para a faixa que ganha salário mínimo ou menos. Portanto, se há uma deslocação da base da pirâmide (da “escada”), o conjunto dos estratos superiores move-se em simultâneo, com a agravante de que os que já estavam no topo avançam mais rápido e perdem-se de vista.
Assim, ao contrário de um suposto nivelamento, o que acontece é que quem já se encontrava no topo tem maiores chances de tirar proveito dos novos meios tecnológicos, de modalidades emergentes de consumo e de negócios que a sociedade vai disponibilizando. Em outras palavras, a melhoria das condições de vida da classe trabalhadora assalariada brasileira, e de parte da ralé que ascendeu a ela, comparada com o enriquecimento dos donos de capital, mostra que o fosso entre ambas as classes se aprofundou, ao invés de ser reduzido. É essa situação que está na raiz das manifestações populares de junho de 2013 no Brasil.
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