Por Saul Leblon, no site Carta Maior:
Muitas vezes, a janela mais panorâmica de uma época não se materializa no indispensável esforço conceitual para descortinar a sua essência, mas em um evento simbólico catalisador.
O passo seguinte da história brasileira carece ainda dessa síntese que contenha as linhas de passagem para um novo ciclo de desenvolvimento.
A simplificação analítica, o simplismo ideológico são incompatíveis com essa sinapse entre o velho e o novo, projetando-se mais por aquilo que dissipam do que pelo que agregam.
Nenhum polo do espectro político está imune a essas armadilhas. Mas até pela supremacia do seu poder emissor é o conservadorismo que tem liderado o atropelo da tentativa e erro nesse embate.
Durante meses, por exemplo, o imperativo ‘não vai ter Copa’ - e tudo aquilo que ele encerra de denuncismo derrotista-- reinou soberano na mídia como uma metáfora esperta do ‘não vai ter Dilma’.
Quando os fatos desmentiram a pretensa equiparação do Brasil a um Titanic - a Copa, independente da seleção, é um sucesso de público, de infraestrutura e de qualidade esportiva - partiu-se para algo mais explícito.
O camarote vip do Itaú - o banco central do conservadorismo - entrou em cena para mostrar os sentimentos profundos da elite em relação ao país.
Repercutiu, mas não pegou.
Embora o martelete midiático tenha disseminado a bandeira do antipetismo bélico, a ponto de hoje contagiar setores populares, como admite - e sobretudo adverte - o ministro Gilberto Carvalho, o fato é que esse trunfo conservador não reúne a energia necessária para inaugurar uma nova época.
A grosseria dos finos exala, antes, seu despreparo para as tarefas do futuro.
Não quaisquer tarefas.
O país se depara com uma transição de ciclo econômico marcada por uma correlação de forças instável, desprovida de aderência institucional, ademais de submetida à determinação de um capitalismo global avesso a outro ordenamento que não o vale tudo dos mercados.
Um desaforo tosco é o que de mais eloquente as ‘classes altas’ tem a dizer sobre a sua capacitação para lidar com esse supermercado de encruzilhadas históricas.
Não é o único senão.
Nas últimas horas ruiu também a simbologia conservadora da retidão heroica e antipetista, atribuída à figura de Joaquim Barbosa.
Na última 3ª feira, o presidente do STF jogou a toalha respingada de ressentimentos, ao abandonar a execução da AP 470.
Não sem antes grunhir, em alemão, o menosprezo pelas questões mais gerais da construção da cidadania no país.
‘Es ist mir ganz egal' , sentenciou sobre as cotas reclamadas por negros e índios no Judiciário.
'Para mim é indiferente; não estou nem aí’.
Esse, o herói dos savonarolas de biografia inflamável.
Seria apenas o epitáfio de um bonapartismo destemperado, não fosse, sobretudo, a versão germânica da indiferença social.
A mesma inscrita no jogral dos que se avocam à parte e acima daquilo que distingue uma nação de um ajuntamento humano: a pactuação democrática de valores e projetos que selam um destino compartilhado.
O particularismo black bloc enfrenta agora seu novo revés no terreno da inflação.
Seja pela eficácia destrutiva da maior taxa de juro do planeta (em termos nominais o juro brasileiro só perde para o da Nigéria), seja pelo espraiamento das anomalias climáticas no mercado de alimentos, o fato é que os principais índices de inflação desabam.
E com eles a bandeira ‘popular’ de Aécio e assemelhados.
Mas há uma variável ainda mais adversa ao conservadorismo no plano da economia política.
O fato de o país viver um quadro de pleno emprego dá ao campo progressista um trunfo inestimável na negociação de um novo ciclo de crescimento.
Uma coisa é negociar com trabalhadores espremidos em filas de desempregados vendendo-se a qualquer preço. Outra, faze-lo em um mercado em que a demanda por mão-de-obra cresceu mais que a população economicamente ativa nos últimos anos.
O conjunto fragiliza um certo fatalismo com devotos dos dois lados da polaridade política, que encara as eleições como uma formalidade incapaz de alterar o calendário do arrocho, com o qual o país teria um encontro marcado após as eleições.
Tudo se passa, desse ponto de vista, como se houvesse uma concertación não escrita à moda chilena que tornaria irrelevante o titular da Presidência, diante dos limites impostos pela subordinação do Estado aos imperativos dos mercados local e global.
É essa, um pouco, a aposta da candidatura Campos, que se oferece à praça e à banca como a cola ambivalente capaz de dissolver os dois lados da disputa em um tertius eficiente e confiável.
O fato de ter fracassado até agora não implica o êxito efetivo do campo progressista em se libertar da indiferenciação que rebaixa o papel da democracia na definição do futuro.
Os desafios desse percurso não podem ser subestimados.
De modo muito grosseiro, trata-se de modular um estirão de ganhos de produtividade (daí a importância de se fortalecer seu principal núcleo irradiador, a indústria, ademais da infraestrutura e da educação) que financie novos degraus de acesso à cidadania plena.
A força e o consentimento necessários para conduzir esse ciclo - em uma chave que não seja a do arrocho - requisitam um salto de discernimento e organização social que assegure o mais amplo debate sobre metas, prazos, compromissos, concessões, conquistas e salvaguardas.
Não se trata, portanto, apenas de sobreviver à convalescência do modelo neoliberal.
O que está em jogo é erguer linhas de passagem para um futuro alternativo à lógica do cada um por si, derivada de determinações históricas devastadoras que se irradiam da supremacia global das finanças desreguladas, para todas as dimensões da vida, da economia e da sociabilidade em nosso tempo.
A dificuldade de se iniciar esse salto advém, em primeiro lugar, da inexistência de um espaço democrático de debate em que os interesses da sociedade deixem de figurar apenas como um acorde dissonante no monólogo da restauração neoliberal.
Cada um por si, e os mercados por cima de todos, ou a árdua construção de um democracia social negociada?
É em torno dessa disjuntiva que se abre a janela mais panorâmica da encruzilhada brasileira nos dias que correm.
Da ampliação da democracia participativa depende o futuro dos direitos trabalhistas, a sorte das famílias assalariadas, a repartição da renda e a cota de sacrifícios entre as classes sociais na definição de um novo ciclo de crescimento.
É essa moldura histórica que magnifica a importância da Política Nacional de Participação Social anunciada agora pelo governo.
Para que contemple as grandes escolhas do nosso tempo, porém, é crucial que o governo não se satisfaça em tê-la apenas como um aceno de participação ou um ornamento da democracia.
Os desafios são imensos. Maior, porém, é a responsabilidade do discernimento que sabe onde estão as respostas e tem o dever de validá-las.
Muitas vezes, a janela mais panorâmica de uma época não se materializa no indispensável esforço conceitual para descortinar a sua essência, mas em um evento simbólico catalisador.
O passo seguinte da história brasileira carece ainda dessa síntese que contenha as linhas de passagem para um novo ciclo de desenvolvimento.
A simplificação analítica, o simplismo ideológico são incompatíveis com essa sinapse entre o velho e o novo, projetando-se mais por aquilo que dissipam do que pelo que agregam.
Nenhum polo do espectro político está imune a essas armadilhas. Mas até pela supremacia do seu poder emissor é o conservadorismo que tem liderado o atropelo da tentativa e erro nesse embate.
Durante meses, por exemplo, o imperativo ‘não vai ter Copa’ - e tudo aquilo que ele encerra de denuncismo derrotista-- reinou soberano na mídia como uma metáfora esperta do ‘não vai ter Dilma’.
Quando os fatos desmentiram a pretensa equiparação do Brasil a um Titanic - a Copa, independente da seleção, é um sucesso de público, de infraestrutura e de qualidade esportiva - partiu-se para algo mais explícito.
O camarote vip do Itaú - o banco central do conservadorismo - entrou em cena para mostrar os sentimentos profundos da elite em relação ao país.
Repercutiu, mas não pegou.
Embora o martelete midiático tenha disseminado a bandeira do antipetismo bélico, a ponto de hoje contagiar setores populares, como admite - e sobretudo adverte - o ministro Gilberto Carvalho, o fato é que esse trunfo conservador não reúne a energia necessária para inaugurar uma nova época.
A grosseria dos finos exala, antes, seu despreparo para as tarefas do futuro.
Não quaisquer tarefas.
O país se depara com uma transição de ciclo econômico marcada por uma correlação de forças instável, desprovida de aderência institucional, ademais de submetida à determinação de um capitalismo global avesso a outro ordenamento que não o vale tudo dos mercados.
Um desaforo tosco é o que de mais eloquente as ‘classes altas’ tem a dizer sobre a sua capacitação para lidar com esse supermercado de encruzilhadas históricas.
Não é o único senão.
Nas últimas horas ruiu também a simbologia conservadora da retidão heroica e antipetista, atribuída à figura de Joaquim Barbosa.
Na última 3ª feira, o presidente do STF jogou a toalha respingada de ressentimentos, ao abandonar a execução da AP 470.
Não sem antes grunhir, em alemão, o menosprezo pelas questões mais gerais da construção da cidadania no país.
‘Es ist mir ganz egal' , sentenciou sobre as cotas reclamadas por negros e índios no Judiciário.
'Para mim é indiferente; não estou nem aí’.
Esse, o herói dos savonarolas de biografia inflamável.
Seria apenas o epitáfio de um bonapartismo destemperado, não fosse, sobretudo, a versão germânica da indiferença social.
A mesma inscrita no jogral dos que se avocam à parte e acima daquilo que distingue uma nação de um ajuntamento humano: a pactuação democrática de valores e projetos que selam um destino compartilhado.
O particularismo black bloc enfrenta agora seu novo revés no terreno da inflação.
Seja pela eficácia destrutiva da maior taxa de juro do planeta (em termos nominais o juro brasileiro só perde para o da Nigéria), seja pelo espraiamento das anomalias climáticas no mercado de alimentos, o fato é que os principais índices de inflação desabam.
E com eles a bandeira ‘popular’ de Aécio e assemelhados.
Mas há uma variável ainda mais adversa ao conservadorismo no plano da economia política.
O fato de o país viver um quadro de pleno emprego dá ao campo progressista um trunfo inestimável na negociação de um novo ciclo de crescimento.
Uma coisa é negociar com trabalhadores espremidos em filas de desempregados vendendo-se a qualquer preço. Outra, faze-lo em um mercado em que a demanda por mão-de-obra cresceu mais que a população economicamente ativa nos últimos anos.
O conjunto fragiliza um certo fatalismo com devotos dos dois lados da polaridade política, que encara as eleições como uma formalidade incapaz de alterar o calendário do arrocho, com o qual o país teria um encontro marcado após as eleições.
Tudo se passa, desse ponto de vista, como se houvesse uma concertación não escrita à moda chilena que tornaria irrelevante o titular da Presidência, diante dos limites impostos pela subordinação do Estado aos imperativos dos mercados local e global.
É essa, um pouco, a aposta da candidatura Campos, que se oferece à praça e à banca como a cola ambivalente capaz de dissolver os dois lados da disputa em um tertius eficiente e confiável.
O fato de ter fracassado até agora não implica o êxito efetivo do campo progressista em se libertar da indiferenciação que rebaixa o papel da democracia na definição do futuro.
Os desafios desse percurso não podem ser subestimados.
De modo muito grosseiro, trata-se de modular um estirão de ganhos de produtividade (daí a importância de se fortalecer seu principal núcleo irradiador, a indústria, ademais da infraestrutura e da educação) que financie novos degraus de acesso à cidadania plena.
A força e o consentimento necessários para conduzir esse ciclo - em uma chave que não seja a do arrocho - requisitam um salto de discernimento e organização social que assegure o mais amplo debate sobre metas, prazos, compromissos, concessões, conquistas e salvaguardas.
Não se trata, portanto, apenas de sobreviver à convalescência do modelo neoliberal.
O que está em jogo é erguer linhas de passagem para um futuro alternativo à lógica do cada um por si, derivada de determinações históricas devastadoras que se irradiam da supremacia global das finanças desreguladas, para todas as dimensões da vida, da economia e da sociabilidade em nosso tempo.
A dificuldade de se iniciar esse salto advém, em primeiro lugar, da inexistência de um espaço democrático de debate em que os interesses da sociedade deixem de figurar apenas como um acorde dissonante no monólogo da restauração neoliberal.
Cada um por si, e os mercados por cima de todos, ou a árdua construção de um democracia social negociada?
É em torno dessa disjuntiva que se abre a janela mais panorâmica da encruzilhada brasileira nos dias que correm.
Da ampliação da democracia participativa depende o futuro dos direitos trabalhistas, a sorte das famílias assalariadas, a repartição da renda e a cota de sacrifícios entre as classes sociais na definição de um novo ciclo de crescimento.
É essa moldura histórica que magnifica a importância da Política Nacional de Participação Social anunciada agora pelo governo.
Para que contemple as grandes escolhas do nosso tempo, porém, é crucial que o governo não se satisfaça em tê-la apenas como um aceno de participação ou um ornamento da democracia.
Os desafios são imensos. Maior, porém, é a responsabilidade do discernimento que sabe onde estão as respostas e tem o dever de validá-las.
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