Por Juliano Giassi Goularti, no site Brasil Debate:
“Mudar o mundo meu amigo Sancho não é loucura, não é utopia, é justiça.” Dom Quixote de la Mancha em diálogo com Sancho Pança – Miguel de Cervantes.
No debate constitucional, em 1988, o legislador constituinte estabeleceu um conjunto de princípios tributários baseados na justiça fiscal e social. A começar, a Carta Magna definiu que a tributação deve ser, preferencialmente, direta, de caráter pessoal e progressiva. No entanto, a nova ordem neoliberal que estava em curso nos anos 1990 não somente minou os avanços definidos na Constituição, mas tratou de agravar as distorções sociais, sobretudo, aprofundando a regressividade do sistema tributário brasileiro.
Constituindo um projeto de contrarreforma tributária, ao longo do governo Fernando Henrique Cardoso, as correlações de forças desfavoráveis aos trabalhadores foram alterando, paulatinamente, a legislação infraconstitucional, tornando nulos os princípios básicos de se fazer justiça social. Isto é, negou-se a preferência à tributação direta, progressiva e isonômica, privilegiando-se a tributação indireta. Logo, o sistema tributário é luta de classe entre quem paga menos e quem paga mais.
Para compreender a regressividade e a progressividade de nosso sistema tributário, deve se avaliar sua base de incidência, como renda, propriedade, produção, circulação e consumo. A base é direta quando a tributação incide sobre renda e patrimônio e indireta quando incide sobre produção e consumo. Nessa sistemática, no Brasil, o tributo é regressivo à medida que tem uma relação inversa com o nível de renda do contribuinte. Nos países europeus ocorre o inverso, ou seja, o imposto é progressivo na medida em que cresce a renda.
Dentro da correlação de forças sociais, devemos não somente olhar para a participação da carga tributária no PIB (Produto Interno Bruto), como desvendar os hieróglifos de quem paga essa conta, ou melhor dizendo, quem financia o Estado brasileiro. Considerando que esta correlação não é favorável aos trabalhadores, o resultado recai sobre a população de baixa renda, que suporta uma elevada tributação. Destarte, a carga indireta sobre a classe de renda familiar de até R$ 400,00 é de 25,07%, podendo chegar até 9,33% da renda para quem ganha acima de R$ 6.000,00 (Pintos-Payeras) [1].
Na contramão da justiça social, a tributação sobre patrimônio no país é insignificante (1,17%do PIB). Agravando o quadro, em 1995, o governo brasileiro (lei n.° 9.249/95) concedeu isenção do IR (Imposto de Renda) à remessa de lucros e dividendos ao exterior fazendo com que o lucro das multinacionais e a renda dos ricos não fossem tributadas. Facilitando o livre fluxo de recursos financeiros, a lei, ainda em vigor, coopera para que o topo da pirâmide social pague menos impostos que a classe de baixa renda, agravando assim a concentração de renda no país.
Nesse caminho, as mudanças na legislação tributária favoreceram o grande capital e frações de classe que estão no topo da pirâmide, que passaram a pagar menos tributo sobre a sua renda. Em paralelo, as modificações limitaram a combater a sonegação de impostos, que deve alcançar R$ 500 bilhões este ano, afirma Heráclio Camargo, presidente do SINPROFAZ (Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional).
Convêm ainda duas lembranças: i) desde 2000, a política de parcelamento de débitos tributários, Refis (Refinanciamento de Dívidas Tributárias) perdoa multas e juros estimulando o não pagamento do imposto; e, ii) a lei n.° 9.393/96 desonerou o patrimônio rural – ITR (Imposto sobre Propriedade Territorial Rural) – contribuindo para concentração, ainda mais agressiva, de terra e deixando de ser um instrumento incentivador da reforma agrária.
Além disso, para supostamente evitar a queda do PIB, pós-2007, o governo federal apostou nas desonerações enquanto política anticíclica para manter o nível de atividade econômica e alavancar o investimento privado. Elevado de 16,7%, em 2007, para 20,8%, em 2010, 23,8%, em 2014, e 18,5%, em 2015, da RARF (Receita Administrada pela Receita Federal), o governo acabou colocando em curso uma socialização das desonerações tributárias como meio de contemplar todos os setores.
Acontece que essa opção política castiga os trabalhadores, desmontando o financiamento da seguridade social para atender aos anseios especificamente da acumulação de capitais, ao liberar o empresário da contribuição. Ou seja, as desonerações são regressivas e seletivas, revelando-se outro escândalo contra o Estado e a sociedade brasileira.
No âmbito da luta de classe que assegura a regressividade da política tributária, há uma severa transferência de renda do Estado para o capital portador de juros. Consagrando como sócio privilegiado, com o processo de financeirização da riqueza e expansão da dívida pública – em 2016, os juros nominais totalizaram R$ 407 bilhões (6,46% do PIB) – parcela expressiva da arrecadação federal é transferida para os rentistas, restringindo a capacidade de fazer política social e alavancar o investimento público. Em síntese, a regressividade retira dinheiro dos mais pobres e transfere aos mais ricos através das desonerações, dos juros da dívida e dos programas de Refis.
Neste sentido, a estrutura do sistema tributário registra e revela sobre qual fração de classe recai o maior ou menor ônus e as que mais ou menos se beneficiam. Assim, a tributação espelha os interesses das frações de classe dominantes que detêm o controle ideológico da política econômica. Ainda mais, as empresas nacionais e estrangeiras que fazem uso do planejamento tributário escapam da tributação por meio de arranjos legais e ilegais, fazendo uso da elisão e sonegação. Para tanto, esse sistema em vigência corrobora para concentração de renda e patrimônio, agravando, assim, o ônus fiscal dos mais pobres e aliviando as camadas que habitam o andar de cima.
Para tanto, faz-se necessário acirrar a luta de classe que assegure a progressividade da política tributária, tornando a classe trabalhadora sócia privilegiada do sistema tributário e do orçamento público. Isto é, acirrar a luta de classe dentro do sistema tributário de modo que o IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas), previsto na Constituição, seja regulamentado, que se inverta a lógica com a tributação direta e progressiva sobre renda e patrimônio, que se criminalize a pessoa física ou jurídica que cometer crimes contra o fisco (ex: sonegação e elisão fiscal), se estabeleça cruzamento de dados, a exemplo da CPMF, e se reveja a política suicida de desoneração.
Nota
[1] José Adrian Pintos-Payeras – A Carga Tributária no Brasil: um modelo para análise dos impactos das políticas tributárias na arrecadação e distribuição.
No debate constitucional, em 1988, o legislador constituinte estabeleceu um conjunto de princípios tributários baseados na justiça fiscal e social. A começar, a Carta Magna definiu que a tributação deve ser, preferencialmente, direta, de caráter pessoal e progressiva. No entanto, a nova ordem neoliberal que estava em curso nos anos 1990 não somente minou os avanços definidos na Constituição, mas tratou de agravar as distorções sociais, sobretudo, aprofundando a regressividade do sistema tributário brasileiro.
Constituindo um projeto de contrarreforma tributária, ao longo do governo Fernando Henrique Cardoso, as correlações de forças desfavoráveis aos trabalhadores foram alterando, paulatinamente, a legislação infraconstitucional, tornando nulos os princípios básicos de se fazer justiça social. Isto é, negou-se a preferência à tributação direta, progressiva e isonômica, privilegiando-se a tributação indireta. Logo, o sistema tributário é luta de classe entre quem paga menos e quem paga mais.
Para compreender a regressividade e a progressividade de nosso sistema tributário, deve se avaliar sua base de incidência, como renda, propriedade, produção, circulação e consumo. A base é direta quando a tributação incide sobre renda e patrimônio e indireta quando incide sobre produção e consumo. Nessa sistemática, no Brasil, o tributo é regressivo à medida que tem uma relação inversa com o nível de renda do contribuinte. Nos países europeus ocorre o inverso, ou seja, o imposto é progressivo na medida em que cresce a renda.
Dentro da correlação de forças sociais, devemos não somente olhar para a participação da carga tributária no PIB (Produto Interno Bruto), como desvendar os hieróglifos de quem paga essa conta, ou melhor dizendo, quem financia o Estado brasileiro. Considerando que esta correlação não é favorável aos trabalhadores, o resultado recai sobre a população de baixa renda, que suporta uma elevada tributação. Destarte, a carga indireta sobre a classe de renda familiar de até R$ 400,00 é de 25,07%, podendo chegar até 9,33% da renda para quem ganha acima de R$ 6.000,00 (Pintos-Payeras) [1].
Na contramão da justiça social, a tributação sobre patrimônio no país é insignificante (1,17%do PIB). Agravando o quadro, em 1995, o governo brasileiro (lei n.° 9.249/95) concedeu isenção do IR (Imposto de Renda) à remessa de lucros e dividendos ao exterior fazendo com que o lucro das multinacionais e a renda dos ricos não fossem tributadas. Facilitando o livre fluxo de recursos financeiros, a lei, ainda em vigor, coopera para que o topo da pirâmide social pague menos impostos que a classe de baixa renda, agravando assim a concentração de renda no país.
Nesse caminho, as mudanças na legislação tributária favoreceram o grande capital e frações de classe que estão no topo da pirâmide, que passaram a pagar menos tributo sobre a sua renda. Em paralelo, as modificações limitaram a combater a sonegação de impostos, que deve alcançar R$ 500 bilhões este ano, afirma Heráclio Camargo, presidente do SINPROFAZ (Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional).
Convêm ainda duas lembranças: i) desde 2000, a política de parcelamento de débitos tributários, Refis (Refinanciamento de Dívidas Tributárias) perdoa multas e juros estimulando o não pagamento do imposto; e, ii) a lei n.° 9.393/96 desonerou o patrimônio rural – ITR (Imposto sobre Propriedade Territorial Rural) – contribuindo para concentração, ainda mais agressiva, de terra e deixando de ser um instrumento incentivador da reforma agrária.
Além disso, para supostamente evitar a queda do PIB, pós-2007, o governo federal apostou nas desonerações enquanto política anticíclica para manter o nível de atividade econômica e alavancar o investimento privado. Elevado de 16,7%, em 2007, para 20,8%, em 2010, 23,8%, em 2014, e 18,5%, em 2015, da RARF (Receita Administrada pela Receita Federal), o governo acabou colocando em curso uma socialização das desonerações tributárias como meio de contemplar todos os setores.
Acontece que essa opção política castiga os trabalhadores, desmontando o financiamento da seguridade social para atender aos anseios especificamente da acumulação de capitais, ao liberar o empresário da contribuição. Ou seja, as desonerações são regressivas e seletivas, revelando-se outro escândalo contra o Estado e a sociedade brasileira.
No âmbito da luta de classe que assegura a regressividade da política tributária, há uma severa transferência de renda do Estado para o capital portador de juros. Consagrando como sócio privilegiado, com o processo de financeirização da riqueza e expansão da dívida pública – em 2016, os juros nominais totalizaram R$ 407 bilhões (6,46% do PIB) – parcela expressiva da arrecadação federal é transferida para os rentistas, restringindo a capacidade de fazer política social e alavancar o investimento público. Em síntese, a regressividade retira dinheiro dos mais pobres e transfere aos mais ricos através das desonerações, dos juros da dívida e dos programas de Refis.
Neste sentido, a estrutura do sistema tributário registra e revela sobre qual fração de classe recai o maior ou menor ônus e as que mais ou menos se beneficiam. Assim, a tributação espelha os interesses das frações de classe dominantes que detêm o controle ideológico da política econômica. Ainda mais, as empresas nacionais e estrangeiras que fazem uso do planejamento tributário escapam da tributação por meio de arranjos legais e ilegais, fazendo uso da elisão e sonegação. Para tanto, esse sistema em vigência corrobora para concentração de renda e patrimônio, agravando, assim, o ônus fiscal dos mais pobres e aliviando as camadas que habitam o andar de cima.
Para tanto, faz-se necessário acirrar a luta de classe que assegure a progressividade da política tributária, tornando a classe trabalhadora sócia privilegiada do sistema tributário e do orçamento público. Isto é, acirrar a luta de classe dentro do sistema tributário de modo que o IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas), previsto na Constituição, seja regulamentado, que se inverta a lógica com a tributação direta e progressiva sobre renda e patrimônio, que se criminalize a pessoa física ou jurídica que cometer crimes contra o fisco (ex: sonegação e elisão fiscal), se estabeleça cruzamento de dados, a exemplo da CPMF, e se reveja a política suicida de desoneração.
Nota
[1] José Adrian Pintos-Payeras – A Carga Tributária no Brasil: um modelo para análise dos impactos das políticas tributárias na arrecadação e distribuição.
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