Reconhecer que o custo do conservadorismo intelectual nas questões monetárias já foi alto demais e que a condução da política monetária pode estar, há décadas, equivocada, são os pontos altos da reflexão do professor André Lara Resende no artigo “Juros e Conservadorismo Intelectual”, publicado no jornal Valor Econômico.
O artigo, que causou certa agitação no meio acadêmico, apresenta uma crítica aos modelos usualmente utilizados para descrever a experiência brasileira e guiar a política monetária no país desde a adoção do regime de metas para inflação. Para ambos os propósitos, tais modelos se mostraram insuficientes – ou fracassaram de forma retumbante, fica ao gosto do analista. O artigo de Resende tem mérito em chamar a atenção para tal fato. Contudo, estes mesmos modelos estão longe de serem abandonados, como a réplica de Lisboa e Pessoa, publicada no mesmo veículo, revela.
A incapacidade explicativa da teoria convencional acerca de questões monetárias não é novidade. Diversos economistas, estrangeiros e brasileiros, que seguem linhas de pensamento menos convencionais já apontam isto há bastante tempo, ainda que suas críticas não ecoem nos círculos tradicionais ou sejam refletidas nos “modelos neokeynesianos mais recentes” de que fala Resende. O que o afrouxamento quantitativo trouxe de novidade foi uma nova amostra de evidência empírica para jogar uma pá de cal sobre os modelos convencionais.
Admitir que a condução da política monetária está equivocada há tempos configura um passo importante para que se possa avançar em ao menos três frentes de reflexão: entender a real dinâmica inflacionária brasileira; aprimorar o desenho institucional da política monetária levada a cabo pelo Banco Central do Brasil; promover uma redução sustentada da taxa básica de juros do país.
A teoria convencional tem dificuldades em explicar o comportamento da inflação no Brasil há tempos. A demanda agregada exerce uma influência tênue e não sistemática, sendo por vezes pouco significativa para explicar o fenômeno. São os custos agregados, que sofrem uma influência importante da taxa de câmbio e de suas variações, que parecem explicar melhor o comportamento inflacionário. Neste sentido, os choques de custos estão longe de constituir um passeio aleatório, de média zero, como postula a teoria convencional. Ao invés disso, os custos constituem um componente persistente e influente na inflação cotidiana.
A indexação também tem seu papel em explicar a inflação – este, há que se reconhecer, levado em conta por parte dos analistas de distintas filiações teóricas. Ela pode ser interpretada como um elemento do conflito distributivo que marca a disputa pela renda gerada no país, acirrado por características como a extrema desigualdade de renda e riqueza e a elevada remuneração dos rentistas através da taxa de juros.
A elevada taxa de juros acirra o conflito uma vez que pressiona para cima o patamar das margens praticadas pelos empresários, influenciando não só o nível dos preços, mas sua variação ao longo do tempo.
Vale notar, segundo esta explicação alternativa, é intuitivo que a taxa de juros tenha uma relação direta positiva com a inflação: por um lado, acirra o conflito distributivo; por outro, afeta diretamente o custo do crédito para os agentes, que fica mais caro quando o Banco Central eleva a taxa básica de juros. Há, contudo, efeitos indiretos que podem compensar ou não, a depender da conjuntura, os efeitos diretos mencionados no curto prazo, em particular, a influência que ela exerce sobre a taxa de câmbio.Trabalhos empíricos apresentam resultados controversos sobre esta relação, o que pode ser interpretado como reflexo de sua complexidade: há indicações que a influência dos juros na inflação não é sistemática e significativa, tampouco consistente ao longo do tempo. Outros custos parecem ser mais relevantes e com efeitos mais “bem-comportados”.
Um último aspecto relativo à dinâmica inflacionária diz respeito à integração entre os níveis macroeconômico e microeconômico de análise. É importante olhar o processo como um todo, mas há nuances setoriais e microeconômicas que ajudam a explicar o quadro mais amplo.
Ainda há poucos estudos que olham efetivamente para como as empresas brasileiras se comportam ao precificar e quais “regras” utilizam. Neste âmbito, estudo recente de Correa, Petrassi e Santos (2016), do Banco Central do Brasil, aponta que a estratégia dominante de precificação de firmas do setor manufatureiro, serviços e comércio consiste na aplicação de uma margem (mark-up) sobre os custos na hora de definir os preços. Ora, se os custos seriam centrais para o comportamento padrão das firmas, porque relegá-los a um segundo plano na análise macroeconômica?
Esta outra interpretação da inflação abre espaço para uma redefinição profunda do arcabouço de política monetária institucionalizado no país. Se reconhecemos que elevar a taxa de juros influencia pouco a inflação, bem como pode impactá-la de forma adversa à esperada pelo modelo convencional, não há sentido em insistir na aplicação do regime de metas para inflação como é desenhado hoje.
Se o que importa são os custos e o conflito distributivo, é mais relevante atuar sobre o conflito diretamente como prática de política anti-inflacionária. Entretanto, constitui tarefa mais complexa, pois exige políticas de rendas, de salário mínimo, antitruste etc.
Isso abre espaço para que sejam atribuídos outros objetivos à política monetária e ao controle da taxa básica de juros, como, por exemplo, a estabilidade financeira do sistema financeiro e da economia como um todo. Discussões teóricas nesta linha avançaram substancialmente no mundo no pós-crise de 2008, ainda que órgãos como o Fundo Monetário Internacional insistam em desvincular o gerenciamento das taxas de juros das chamadas políticas macroprudenciais – “macro” porque afetam o sistema financeiro como um todo, “prudenciais” porque dizem respeito a ações precaucionais para tentar influenciar os ciclos de fragilização financeira.
O controle da taxa básica de juros poderia ser associado ao comportamento do endividamento das instituições financeiras e das firmas e pessoas, visando a influenciar os preços dos ativos financeiros, as margens de segurança (ou de liquidez) com que os agentes econômicos operam e o grau de fragilidade financeira a que o sistema econômico está exposto. É necessário avançar nas pesquisas nesta área, mas já há uma gama de trabalhos que podem orientar um desenho institucional de um novo regime monetário.
Por fim, as mudanças nas concepções da dinâmica inflacionária e da política monetária permitiriam avançar na redução da taxa básica de juros brasileira, objetivando aderir aos patamares internacionais em termos de juros reais e nominais de forma sustentada. A taxa hoje é elevada, mas não reduz sistematicamente a inflação; o é devido a uma convenção que prega o conservadorismo da política monetária desde que o Plano Real foi operacionalizado e, mais especificamente, desde que o regime de metas passou a reger a política monetária no país.
Responde a um arcabouço de política econômica no qual qualquer tentativa de reduzir a taxa de juros de modo sustentado será fadada ao fracasso, uma vez que são outras as variáveis que explicam a dinâmica inflacionária: qualquer elevação mais intensa da inflação vai ser seguida por uma elevação proporcional – e não necessariamente simétrica – das taxas de juros, para rezar segundo a cartilha do regime.
Desvincular a política monetária do combate inflacionário – que é um aspecto importante da política econômica, sim, que fique claro – abriria espaço para reduzir sistematicamente a taxa de juros e, com isso, gerar mudanças relevantes nos preços dos ativos e no comportamento dos mercados de crédito e de capitais. Em especial, juros mais baixos favoreceriam a trajetória de expansão da dívida pública e a completude da curva de ativos públicos e privados. Abrir espaço para um maior endividamento público teria consequências importantes, de longo prazo, para a provisão de serviços públicos de melhor qualidade e para o crescimento da economia.
Se pensarmos assim, podemos até medir o custo do conservadorismo intelectual a que se refere Resende: custou à sociedade brasileira uma larga conta de juros, a limitação dos gastos do Estado brasileiro e anos de crescimento econômico. Devemos, contudo, apontar: nem todos os atores da sociedade perderam com isso. O que ajuda a entender porque certas ideias persistem ao longo do tempo.
O artigo, que causou certa agitação no meio acadêmico, apresenta uma crítica aos modelos usualmente utilizados para descrever a experiência brasileira e guiar a política monetária no país desde a adoção do regime de metas para inflação. Para ambos os propósitos, tais modelos se mostraram insuficientes – ou fracassaram de forma retumbante, fica ao gosto do analista. O artigo de Resende tem mérito em chamar a atenção para tal fato. Contudo, estes mesmos modelos estão longe de serem abandonados, como a réplica de Lisboa e Pessoa, publicada no mesmo veículo, revela.
A incapacidade explicativa da teoria convencional acerca de questões monetárias não é novidade. Diversos economistas, estrangeiros e brasileiros, que seguem linhas de pensamento menos convencionais já apontam isto há bastante tempo, ainda que suas críticas não ecoem nos círculos tradicionais ou sejam refletidas nos “modelos neokeynesianos mais recentes” de que fala Resende. O que o afrouxamento quantitativo trouxe de novidade foi uma nova amostra de evidência empírica para jogar uma pá de cal sobre os modelos convencionais.
Admitir que a condução da política monetária está equivocada há tempos configura um passo importante para que se possa avançar em ao menos três frentes de reflexão: entender a real dinâmica inflacionária brasileira; aprimorar o desenho institucional da política monetária levada a cabo pelo Banco Central do Brasil; promover uma redução sustentada da taxa básica de juros do país.
A teoria convencional tem dificuldades em explicar o comportamento da inflação no Brasil há tempos. A demanda agregada exerce uma influência tênue e não sistemática, sendo por vezes pouco significativa para explicar o fenômeno. São os custos agregados, que sofrem uma influência importante da taxa de câmbio e de suas variações, que parecem explicar melhor o comportamento inflacionário. Neste sentido, os choques de custos estão longe de constituir um passeio aleatório, de média zero, como postula a teoria convencional. Ao invés disso, os custos constituem um componente persistente e influente na inflação cotidiana.
A indexação também tem seu papel em explicar a inflação – este, há que se reconhecer, levado em conta por parte dos analistas de distintas filiações teóricas. Ela pode ser interpretada como um elemento do conflito distributivo que marca a disputa pela renda gerada no país, acirrado por características como a extrema desigualdade de renda e riqueza e a elevada remuneração dos rentistas através da taxa de juros.
A elevada taxa de juros acirra o conflito uma vez que pressiona para cima o patamar das margens praticadas pelos empresários, influenciando não só o nível dos preços, mas sua variação ao longo do tempo.
Vale notar, segundo esta explicação alternativa, é intuitivo que a taxa de juros tenha uma relação direta positiva com a inflação: por um lado, acirra o conflito distributivo; por outro, afeta diretamente o custo do crédito para os agentes, que fica mais caro quando o Banco Central eleva a taxa básica de juros. Há, contudo, efeitos indiretos que podem compensar ou não, a depender da conjuntura, os efeitos diretos mencionados no curto prazo, em particular, a influência que ela exerce sobre a taxa de câmbio.Trabalhos empíricos apresentam resultados controversos sobre esta relação, o que pode ser interpretado como reflexo de sua complexidade: há indicações que a influência dos juros na inflação não é sistemática e significativa, tampouco consistente ao longo do tempo. Outros custos parecem ser mais relevantes e com efeitos mais “bem-comportados”.
Um último aspecto relativo à dinâmica inflacionária diz respeito à integração entre os níveis macroeconômico e microeconômico de análise. É importante olhar o processo como um todo, mas há nuances setoriais e microeconômicas que ajudam a explicar o quadro mais amplo.
Ainda há poucos estudos que olham efetivamente para como as empresas brasileiras se comportam ao precificar e quais “regras” utilizam. Neste âmbito, estudo recente de Correa, Petrassi e Santos (2016), do Banco Central do Brasil, aponta que a estratégia dominante de precificação de firmas do setor manufatureiro, serviços e comércio consiste na aplicação de uma margem (mark-up) sobre os custos na hora de definir os preços. Ora, se os custos seriam centrais para o comportamento padrão das firmas, porque relegá-los a um segundo plano na análise macroeconômica?
Esta outra interpretação da inflação abre espaço para uma redefinição profunda do arcabouço de política monetária institucionalizado no país. Se reconhecemos que elevar a taxa de juros influencia pouco a inflação, bem como pode impactá-la de forma adversa à esperada pelo modelo convencional, não há sentido em insistir na aplicação do regime de metas para inflação como é desenhado hoje.
Se o que importa são os custos e o conflito distributivo, é mais relevante atuar sobre o conflito diretamente como prática de política anti-inflacionária. Entretanto, constitui tarefa mais complexa, pois exige políticas de rendas, de salário mínimo, antitruste etc.
Isso abre espaço para que sejam atribuídos outros objetivos à política monetária e ao controle da taxa básica de juros, como, por exemplo, a estabilidade financeira do sistema financeiro e da economia como um todo. Discussões teóricas nesta linha avançaram substancialmente no mundo no pós-crise de 2008, ainda que órgãos como o Fundo Monetário Internacional insistam em desvincular o gerenciamento das taxas de juros das chamadas políticas macroprudenciais – “macro” porque afetam o sistema financeiro como um todo, “prudenciais” porque dizem respeito a ações precaucionais para tentar influenciar os ciclos de fragilização financeira.
O controle da taxa básica de juros poderia ser associado ao comportamento do endividamento das instituições financeiras e das firmas e pessoas, visando a influenciar os preços dos ativos financeiros, as margens de segurança (ou de liquidez) com que os agentes econômicos operam e o grau de fragilidade financeira a que o sistema econômico está exposto. É necessário avançar nas pesquisas nesta área, mas já há uma gama de trabalhos que podem orientar um desenho institucional de um novo regime monetário.
Por fim, as mudanças nas concepções da dinâmica inflacionária e da política monetária permitiriam avançar na redução da taxa básica de juros brasileira, objetivando aderir aos patamares internacionais em termos de juros reais e nominais de forma sustentada. A taxa hoje é elevada, mas não reduz sistematicamente a inflação; o é devido a uma convenção que prega o conservadorismo da política monetária desde que o Plano Real foi operacionalizado e, mais especificamente, desde que o regime de metas passou a reger a política monetária no país.
Responde a um arcabouço de política econômica no qual qualquer tentativa de reduzir a taxa de juros de modo sustentado será fadada ao fracasso, uma vez que são outras as variáveis que explicam a dinâmica inflacionária: qualquer elevação mais intensa da inflação vai ser seguida por uma elevação proporcional – e não necessariamente simétrica – das taxas de juros, para rezar segundo a cartilha do regime.
Desvincular a política monetária do combate inflacionário – que é um aspecto importante da política econômica, sim, que fique claro – abriria espaço para reduzir sistematicamente a taxa de juros e, com isso, gerar mudanças relevantes nos preços dos ativos e no comportamento dos mercados de crédito e de capitais. Em especial, juros mais baixos favoreceriam a trajetória de expansão da dívida pública e a completude da curva de ativos públicos e privados. Abrir espaço para um maior endividamento público teria consequências importantes, de longo prazo, para a provisão de serviços públicos de melhor qualidade e para o crescimento da economia.
Se pensarmos assim, podemos até medir o custo do conservadorismo intelectual a que se refere Resende: custou à sociedade brasileira uma larga conta de juros, a limitação dos gastos do Estado brasileiro e anos de crescimento econômico. Devemos, contudo, apontar: nem todos os atores da sociedade perderam com isso. O que ajuda a entender porque certas ideias persistem ao longo do tempo.
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