Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
No dia marcado para a votação da reforma trabalhista, não há mais nada para discutir nem esclarecer sobre a decisão de 81 senadores que terão a palavra final num projeto que atinge todo brasileiro que paga o pão com o suor do próprio rosto.
Os argumentos são conhecidos. Os dados estão na mesa e devem permanecer na consciência de cada parlamentar - e cada eleitor. No plenário, pela televisão, todos seremos testemunhas de uma tentativa de crime histórico.
Entre 1943, quando a CLT foi criada, e 2017, quando corre o risco de se transformar num pedaço de papel, num retrato da parede, como dizia o poeta, o país teve 21 presidentes. Dez foram eleitos, cumprindo 13 mandatos. Cinco foram escolhidos pela ditadura militar. Capaz de sobreviver a duas dezenas mudanças de governo – em média com três anos e meio de mandato – a CLT ajudou a construir o Brasil como um país diferenciado entre as economias abaixo da linha do Equador.
Não há pós-verdade nem pós-modernidade nesse terreno. Num país onde a informalidade do mercado de trabalho atinge metade da população trabalhadora, e até mais do que isso, não há dúvida de que, para muitos brasileiros, a vida continua ruim com a CLT. Mas ficará muito pior - sem ela.
Capaz de assegurar um grau mínimo de civilização e inclusão social num país que herdou a mais prolongada escravidão da América, a defesa da CLT é uma linha divisória entre a dignidade e a indecência.
Em vez de minorar o sofrimento e o sacrifício daqueles milhões que são mantidos a margem de conquistas históricas, e que deveriam ser incluídos em patamares mais elevados de direitos e dignidade, o projeto tenta rebaixar aqueles que tiveram a oportunidade de ficar acima do sufoco.
O projeto pode ser rejeitado de peito aberto, no microfone, num gesto que honra a biografia de todo homem público. O vídeo pode ser guardado para filhos e netos.
Mas também pode ser derrubado pela abstenção de parlamentares que vierem a comparecer no plenário e simplesmente se recusarem a votar sim ou não. Também vale ficar no gabinete e mesmo em casa. Em qualquer caso, a prioridade é impedir um retrocesso criminoso, condenado expressamente, duas vezes, pela Organização Internacional do Trabalho. Seja numa consulta específica, feita por centrais sindicais brasileiras, seja num estudo ampliado, envolvendo a experiência de 110 países que serviram de laboratório para experimentos de desregulamentação e flexibilização de leis trabalhistas entre 2008-2016.
Estamos falando de um momento particular em 70 anos de luta de classes no país.
Os senadores que ajudarem a aprovar um projeto que joga no lixo um esforço de mais sete décadas colocam-se na árvore genealógica dos antigos capitães do mato e dos modernos traficantes de mão-de-obra.
Assumem o papel de auxiliar a burguesia brasileira -- sim, vamos chamar as coisas pelo nome -- a vencer a única causa capaz de unificar seus interesses, diferenças e contradições ao longo de décadas, como demonstrou um mestre insubstituível, Wanderley Guilherme dos Santos no livro "Décadas de Espanto e uma Apologia Democrática."
Essa vontade de revanche dos fortes contra os fracos é a grande fonte de energias malignas que empurraram o país para tantas aventuras condenáveis contra a democracia no século XX, como a tragédia de 1954, o golpe de 1964, o golpe dentro do golpe de 1968, a deposição de Dilma sem crime de responsabilidade em 2016.
Em 2017, a reforma pretende jogar no lixo um projeto -- incompleto mas real, até hoje uma utopia necessária -- de construir um mercado interno de massas, com empregos razoáveis e a liberdade essencial de um povo que conquista o direito de viver sem medo, de que falava Franklin D. Roosevelt, o presidente que liderou a saída do capitalismo norte-americano da catástrofe de 1929.
Se você tem dúvidas sobre a comunicação entre Roosevelt e Getúlio, o criador da CLT, basta recordar, como homenagem à memória de um país onde é costume desprezá-la, um fato pouco conhecido. Num discurso em 1936, o presidente eleito quatro vezes seguidas para a Casa Branca declarou que Vargas "tinha sido uma das pessoas que inventou o New Deal", aquela política econômica que ajudou os Estados Unidos a sair da crise de 1929 -- a única comparável à derrocada financeira de oitenta anos depois, que os engravatados do mercado financeiro pretendem resolver com programas de austeridade e desregulamentação que só produziram mais miséria e sofrimento.
Derrubar a reforma também representa um golpe de misericórdia contra o governo Michel Temer, que hoje naufraga em seus próprios venenos.
Também é uma forma de confrontar o golpe dentro do golpe, que trabalha pela ascensão de Rodrigo Maia, mais uma vez às costas do eleitor.
Investindo num universo que conhece como poucos -- os baixos instintos dos parlamentares brasileiros -- o Planalto investiu pesado para dividir a resistência dos trabalhadores, livrando a cara de lideranças sindicais sem escrúpulos para manter a reforma de pé.
Mas a adesão à paralisação de 30 de junho, comparativamente menor que à greve geral de 28 de abril, é a prova de enfraquecimento e covardia das cúpulas -- e não de uma redução na vontade de luta das bases. Nos últimos dias, caravanas de vários pontos do país foram organizadas em direção a Brasília. A ação direta sobre os senadores cresce nas horas anteriores a votação.
O problema central do governo permanece.
Quando se constatou que a reforma continha artigos chocantes e inaceitáveis, mesmo para estômagos pouco sensíveis, chegou-se a uma solução baseada na palavra de Temer. Assim: em tratativas informais, o presidente recebe a reforma de bandeja, em troca do compromisso de vetar pontos mais dolorosos e baixar uma Medida Provisória com alterações combinadas. Não custa lembrar que, nessa altura do processo, nada pode ser modificado, nem uma vírgula. Pelo regimento, a mudança de um simples artigo obrigaria uma segunda votação na Câmara de Deputados e este risco é tudo que o Planalto não quer correr, na fase em que desce a ladeira.
Então ficamos assim. A salvação de uma reforma condenado pelos brasileiros na base de 5 contra 1 ficou na dependência da palavra de um presidente politicamente moribundo.
Aquele que foi se encontrar com o Rei da Noruega pensando que era o "Rei da Suécia". Que já anunciou manifestações favoráveis ao Brasil por parte de "empresários soviéticos" - categoria social 100% fictícia, pois os empresários foram extintos da Rússia quando o país se tornou União Soviética, e ressuscitados depois que o regime dos sovietes havia acabado há muitos e muitos anos. O presidente que tenta promover uma regressão histórica na vida do cidadão comum foi e voltou do G-20 sem deixar claro se pretendia ficar ou partir. Mesmo assim evidenciou de forma absoluta a completa insignificância que o chefe de governo brasileiro adquiriu ao lado de outros governantes -- muito deles nada recomendáveis, vamos admitir.
Essa é a decisão a ser tomada. O país inteiro sabe o que ela significa.
Derrotar a reforma é resistir à indigência política que envenena e destrói os avanços de nossa história.
No dia marcado para a votação da reforma trabalhista, não há mais nada para discutir nem esclarecer sobre a decisão de 81 senadores que terão a palavra final num projeto que atinge todo brasileiro que paga o pão com o suor do próprio rosto.
Os argumentos são conhecidos. Os dados estão na mesa e devem permanecer na consciência de cada parlamentar - e cada eleitor. No plenário, pela televisão, todos seremos testemunhas de uma tentativa de crime histórico.
Entre 1943, quando a CLT foi criada, e 2017, quando corre o risco de se transformar num pedaço de papel, num retrato da parede, como dizia o poeta, o país teve 21 presidentes. Dez foram eleitos, cumprindo 13 mandatos. Cinco foram escolhidos pela ditadura militar. Capaz de sobreviver a duas dezenas mudanças de governo – em média com três anos e meio de mandato – a CLT ajudou a construir o Brasil como um país diferenciado entre as economias abaixo da linha do Equador.
Não há pós-verdade nem pós-modernidade nesse terreno. Num país onde a informalidade do mercado de trabalho atinge metade da população trabalhadora, e até mais do que isso, não há dúvida de que, para muitos brasileiros, a vida continua ruim com a CLT. Mas ficará muito pior - sem ela.
Capaz de assegurar um grau mínimo de civilização e inclusão social num país que herdou a mais prolongada escravidão da América, a defesa da CLT é uma linha divisória entre a dignidade e a indecência.
Em vez de minorar o sofrimento e o sacrifício daqueles milhões que são mantidos a margem de conquistas históricas, e que deveriam ser incluídos em patamares mais elevados de direitos e dignidade, o projeto tenta rebaixar aqueles que tiveram a oportunidade de ficar acima do sufoco.
O projeto pode ser rejeitado de peito aberto, no microfone, num gesto que honra a biografia de todo homem público. O vídeo pode ser guardado para filhos e netos.
Mas também pode ser derrubado pela abstenção de parlamentares que vierem a comparecer no plenário e simplesmente se recusarem a votar sim ou não. Também vale ficar no gabinete e mesmo em casa. Em qualquer caso, a prioridade é impedir um retrocesso criminoso, condenado expressamente, duas vezes, pela Organização Internacional do Trabalho. Seja numa consulta específica, feita por centrais sindicais brasileiras, seja num estudo ampliado, envolvendo a experiência de 110 países que serviram de laboratório para experimentos de desregulamentação e flexibilização de leis trabalhistas entre 2008-2016.
Estamos falando de um momento particular em 70 anos de luta de classes no país.
Os senadores que ajudarem a aprovar um projeto que joga no lixo um esforço de mais sete décadas colocam-se na árvore genealógica dos antigos capitães do mato e dos modernos traficantes de mão-de-obra.
Assumem o papel de auxiliar a burguesia brasileira -- sim, vamos chamar as coisas pelo nome -- a vencer a única causa capaz de unificar seus interesses, diferenças e contradições ao longo de décadas, como demonstrou um mestre insubstituível, Wanderley Guilherme dos Santos no livro "Décadas de Espanto e uma Apologia Democrática."
Essa vontade de revanche dos fortes contra os fracos é a grande fonte de energias malignas que empurraram o país para tantas aventuras condenáveis contra a democracia no século XX, como a tragédia de 1954, o golpe de 1964, o golpe dentro do golpe de 1968, a deposição de Dilma sem crime de responsabilidade em 2016.
Em 2017, a reforma pretende jogar no lixo um projeto -- incompleto mas real, até hoje uma utopia necessária -- de construir um mercado interno de massas, com empregos razoáveis e a liberdade essencial de um povo que conquista o direito de viver sem medo, de que falava Franklin D. Roosevelt, o presidente que liderou a saída do capitalismo norte-americano da catástrofe de 1929.
Se você tem dúvidas sobre a comunicação entre Roosevelt e Getúlio, o criador da CLT, basta recordar, como homenagem à memória de um país onde é costume desprezá-la, um fato pouco conhecido. Num discurso em 1936, o presidente eleito quatro vezes seguidas para a Casa Branca declarou que Vargas "tinha sido uma das pessoas que inventou o New Deal", aquela política econômica que ajudou os Estados Unidos a sair da crise de 1929 -- a única comparável à derrocada financeira de oitenta anos depois, que os engravatados do mercado financeiro pretendem resolver com programas de austeridade e desregulamentação que só produziram mais miséria e sofrimento.
Derrubar a reforma também representa um golpe de misericórdia contra o governo Michel Temer, que hoje naufraga em seus próprios venenos.
Também é uma forma de confrontar o golpe dentro do golpe, que trabalha pela ascensão de Rodrigo Maia, mais uma vez às costas do eleitor.
Investindo num universo que conhece como poucos -- os baixos instintos dos parlamentares brasileiros -- o Planalto investiu pesado para dividir a resistência dos trabalhadores, livrando a cara de lideranças sindicais sem escrúpulos para manter a reforma de pé.
Mas a adesão à paralisação de 30 de junho, comparativamente menor que à greve geral de 28 de abril, é a prova de enfraquecimento e covardia das cúpulas -- e não de uma redução na vontade de luta das bases. Nos últimos dias, caravanas de vários pontos do país foram organizadas em direção a Brasília. A ação direta sobre os senadores cresce nas horas anteriores a votação.
O problema central do governo permanece.
Quando se constatou que a reforma continha artigos chocantes e inaceitáveis, mesmo para estômagos pouco sensíveis, chegou-se a uma solução baseada na palavra de Temer. Assim: em tratativas informais, o presidente recebe a reforma de bandeja, em troca do compromisso de vetar pontos mais dolorosos e baixar uma Medida Provisória com alterações combinadas. Não custa lembrar que, nessa altura do processo, nada pode ser modificado, nem uma vírgula. Pelo regimento, a mudança de um simples artigo obrigaria uma segunda votação na Câmara de Deputados e este risco é tudo que o Planalto não quer correr, na fase em que desce a ladeira.
Então ficamos assim. A salvação de uma reforma condenado pelos brasileiros na base de 5 contra 1 ficou na dependência da palavra de um presidente politicamente moribundo.
Aquele que foi se encontrar com o Rei da Noruega pensando que era o "Rei da Suécia". Que já anunciou manifestações favoráveis ao Brasil por parte de "empresários soviéticos" - categoria social 100% fictícia, pois os empresários foram extintos da Rússia quando o país se tornou União Soviética, e ressuscitados depois que o regime dos sovietes havia acabado há muitos e muitos anos. O presidente que tenta promover uma regressão histórica na vida do cidadão comum foi e voltou do G-20 sem deixar claro se pretendia ficar ou partir. Mesmo assim evidenciou de forma absoluta a completa insignificância que o chefe de governo brasileiro adquiriu ao lado de outros governantes -- muito deles nada recomendáveis, vamos admitir.
Essa é a decisão a ser tomada. O país inteiro sabe o que ela significa.
Derrotar a reforma é resistir à indigência política que envenena e destrói os avanços de nossa história.
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