Por Mark Blyth, no site Outras Palavras:
"Os homens concordaram com [uma] posse desigual da terra". John Locke
John Locke foi um dos mais famosos filósofos de Inglaterra. Escrevendo no rescaldo das guerras civis inglesas do século XVII, preocupou-se com a fundamentação apropriada do governo civil. Em vez de exercícios de cátedra, os escritos de Locke eram uma propaganda essencial das classes mercantis emergentes que pouco a pouco estavam tomando o poder das elites aristocráticas britânicas. Fez parte de um movimento que culminou na Revolução Gloriosa de 1688, que retirou o poder do rei e o deu - e muito bem - a pessoas como Locke.
Além de filosofar sobre os direitos dos cidadãos em uma comunidade e sobre os limites do poder dos reis que procuram governá-los, Locke foi um revolucionário econômico. Baseou a sua noção do que constitui um governo legítimo em direitos individuais de propriedade, sem os quais não pode haver liberalismo econômico, separação entre Estado e mercado, ou capitalismo tal como o conhecemos hoje. A visão de Locke é delineada em seu Segundo Tratado do Governo(1690). Para criar a separação entre Estado e mercado, Locke teve de fazer várias coisas: explicar naturalmente a desigualdade do rendimento e da riqueza, legitimar a propriedade privada da terra, explicar a emergência dos mercados de trabalho e despolitizar a invenção do recurso chamado “dinheiro” que tornava todas essas coisas possíveis. Na base, o liberalismo de Locke é um liberalismo econômico que coloca o indivíduo contra o Estado. A história intelectual da austeridade começa aqui.
John Locke imagina o mercado
Locke começa por se interrogar sobre como é possível “Deus, que deu o mundo aos homens por igual”, permitir a acumulação desigual, ou até ilimitada, da riqueza. A resposta está na concepção de propriedade de Locke. Para Locke, a propriedade reside em todos nós, em nossas pessoas, mas só é importante porque é alienável com o nosso trabalho. Isto é, quando trabalhamos em qualquer coisa, como a terra, o nosso trabalho torna-a nossa. Como Locke defendia, “então, seja o que for que ele retire do estado natural [e] misture com o seu trabalho, [ele] torna-o, assim, sua propriedade”. Ora, talvez você pense que outras pessoas à época objetariam que alguém tomasse posse da terra comum desta maneira. Mas Locke insiste em que “a tomada desta ou daquela parte [da terra] não depende do consentimento expresso de todo o povo” porque “ainda ficava bastante e igualmente boa [para todos]”.
Despachado o problema da distribuição presumindo a abundância infinita, Locke mantém que o único argumento verdadeiro contra a propriedade privada é a questão do desperdício, de que se tome mais do que o que pode ser usado, coisa que Deus não gostaria. Felizmente, o tempo e os hábitos deram-nos um recurso chamado “dinheiro” que nos permite ultrapassar o problema do desperdício, porque podemos guarda-lo e trocá-lo por produtos a qualquer momento. Isto também tem o cômodo efeito colateral de criar um mercado de trabalho, uma vez que se pode colocar as pessoas a trabalhar para nós em nossa propriedade e depois, através do recurso dinheiro, levá-las a alienar (dar) os frutos do seu trabalho em nosso favor como uma troca livre. Isto permite a Locke concluir que “os homens concordaram com uma posse desproporcionada e desigual da terra (…) por consentimento voluntário descobriram um modo do homem possuir justamente mais terra do que o respectivo produto que consegue usar, recebendo (…) o excedente em ouro e prata, que se podem entesourar sem prejuízo para ninguém”.
No contexto de um país assolado pela guerra, pelo regicídio e pela rebelião, este ponto de vista pode parecer algo sanguinário: desigualdade ilimitada da propriedade explicada naturalmente pela falta de visão de Deus na questão do desperdício. Mas permite que Locke explique como inevitável, e por isso boa, a criação de mercados na terra, no trabalho e no capital, que era exatamente o projeto político em que as pessoas da sua classe estavam empenhadas naquele momento. O seu passo seguinte foi proteger essas novas instituições do mercado de sua nêmesis emergente do capitalismo: o Estado.
John Locke imagina o Estado
O famoso direito de rebelião de Locke, bem como sua profunda suspeita contra o governo apenas faz sentido se relacionado com a violação dos direitos de propriedade privada que acabara de atribuir a si próprio. No mundo de Locke, o poder da legislatura é “limitado ao bem público da sociedade” que se define como estar livre da intervenção do governo nos assuntos privados, especialmente no que diz respeito à propriedade, a menos que os cidadãos concordem. Como diz Locke em relação aos impostos, “lançar e criar impostos (…) sem [o] consentimento do povo (…) invade a lei fundamental da propriedade”. Tendo feito isso, os legisladores “põem-se num estado de guerra com o povo” de tal modo que é o governo, e não o povo ,o “culpado de rebelião”, perdendo o direito de governar.
Lembre-se que estes argumentos estão sendo desenvolvidos na Inglaterra do século XVII, onde a dívida pública é a dívida dos reis, que invocam os direitos dados por Deus para se apropriarem compulsivamente da propriedade dos outros. O fato de Locke empregar igualmente raciocínios especiosos para explicar a razão pela qual ele e os seus confrades da comunidade haviam de ter a parte do mundo que queriam é irrelevante. O que ele pretende é defender do Estado, a todo o custo, esses ganhos e minimizar a capacidade do Estado de extrair mais recursos. É nesta fundamentação minimalista de que o Estado pode e deve fazer, deixada em testamento por Locke, que os liberais posteriores se baseiam. Essa fundamentação tem dificuldades, devido à sua arquitetura, em apoiar qualquer visão do Estado que se estenda para além da proteção da propriedade. Mas até essa estreita atividade custa dinheiro, e isso exige que o Estado o arranje. Assim, nasceu o dilema liberal que gera a austeridade. O Estado: não se pode viver com ele, não se pode viver sem ele, não se quer pagar por ele.
David Hume: “O crédito público destruirá a nação”
Assentando os seus tijolos intelectuais nas estreitas fundações de Locke estão os dois gigantes gêmeos do Iluminismo escocês: Adam Smith e David Hume. Voltando-nos primeiro para Hume, as suas contribuições para a economia política são numerosas. A ideia de que um incentivo monetário pode, a curto prazo, estimular a atividade econômica, mas, a longo prazo, ou tem de aparecer como inflação ou se dissipar sem afetar verdadeiras variáveis, é o aspecto principal do seu ensaio On Money. Esta é a linha padrão da teoria macroeconômica contemporânea, em que é conhecida como “tese da neutralidade monetária de longo prazo”. Também lhe devem os pormenores das ideias sobre balança comercial de Richard Cantillon através do seu mecanismo de “fluxo de preço-espécie”, o mecanismo subjacente ao padrão-ouro do século XIX. Nós, porém, estamos interessados em Hume por conta de seus textos sobre “crédito público” - aquilo a que chamamos “dívida governamental”.
Hume, tal como Locke, vê o dinheiro como um instrumento, como “apenas a representação de mão de obra e mercadorias (…) um método de as classificar ou calcular”. Na versão de Hume dos acontecimentos, porém, o dinheiro não existe para ultrapassar o problema do desperdício ou os problemas contabilísticos de Deus. Antes, o dinheiro segue o comércio, que coloca as classes mercantis de Locke, e não o Estado, no centro de tudo. Para Hume, os comerciantes são o catalisador do comércio e os criadores de riqueza. São, segundo Hume, “uma das raças humanas mais úteis, que serve de agente entre (…) partes do Estado”. Como consequência, “é necessário, e razoável, que uma parte considerável das mercadorias e do trabalho [produzido] pertença ao comerciante, para com quem, em grande medida, estão em dívida”. Enquanto “advogados e médicos não geram indústria”, só os comerciantes podem “aumentar a indústria e, também aumentando a frugalidade, dar um grande controle dessa indústria a membros particulares da sociedade”. Esses “membros particulares da sociedade” seriam, claro, Hume e outros como ele: as classes mercantis.
O que poderia ameaçar uma situação tão feliz em que o crescimento natural do comércio é ao mesmo tempo causado e catalisado pelas classes mercantis? Seriam, com certeza, as exigências de receita do Estado, especialmente na forma de dívida. Hume não põe panos quentes na questão da dívida governamental. É uma coisa má. Se a razão que aponta parece hoje familiar é porque, como Hirschman nos avisou, os mesmos argumentos andaram no ar nos últimos séculos, com poucas modificações.
David Hume se desespera com a dívida
O problema básico de Hume com a dívida pública é sua falta de limite, pelo menos até as taxas de juros da dívida se tornarem esmagadoras. Além disso, a dívida é fácil de cobrar uma vez que os custos são ocultos e intergeracionais, o que faz com que os Estados adorem a dívida. Como diz Hume, “é muito tentador para um ministro empregar esse expediente, na medida em que lhe permite fazer uma grande figura durante a sua administração, sem sobrecarregar o povo com impostos (…) Abusar-se-á, por isso (…) quase inevitavelmente dessa prática, em todos os governos”. Nessa medida, o governo emitirá a dívida a uma taxa que excede a taxa de juros que poderia obter em qualquer outro lugar, encontrando assim compradores disponíveis à custa de desviar fundos da indústria. Como consequência, o capital ficará concentrado em títulos de dívida que “banem ouro e prata do comércio do Estado (…) e por esse meio tornam todos os fornecimentos e a mão de obra mais caros do que seriam de outro modo”.
Quando essa emissão de dívida acabar atingindo um teto, os governos precisarão vender mais dívida aos estrangeiros, e isso resultará em estrangeiros possuindo “uma grande quota dos nossos fundos nacionais [o que] tornará o público (…) tributário deles”. E se tudo isto acabar por se passar, como inevitavelmente tem de acontecer, segundo Hume, desfaz-se a liberdade. Com os impostos nos seus limites a pagarem juros sobre a dívida, não há espaço para absorver qualquer espécie de choque financeiro. Consequentemente, será emitida ainda mais dívida, “uma tributação contínua dos que recebem anuidades”, o que resulta em um governo que “hipotecou todas as suas receitas [e que] se afundará em um estado de languidez, inatividade e impotência”.
Se tudo isso parece familiar é porque é familiar. As afirmações de Hume não são um eco das de hoje - as afirmações de hoje são réplicas diretas das de Hume. Quanto à dívida ser politicamente mais fácil do que impostos, basta ver as críticas da Europa do Norte às políticas orçamentárias da Grécia e da Itália. Quanto à dívida governamental tirar o lugar de outros investimentos, ver o tsunami de críticas aos incentivos de Obama. Quanto à dívida subir os preços e comprometer a capacidade do Estado de amortecer outros choques, ver as volumosas críticas à flexibilização quantitativa e os receios de que um pico das taxas de juros dos EUA provoque exatamente isso. Quanto ao medo de que os estrangeiros se tornem donos dos Estados Unidos, basta pesquisar no Google “China owns USA”. A pesquisa dá 25 milhões de resultados ainda que a afirmação pura e simplesmente não seja verdadeira - os estrangeiros detêm menos de um terço da dívida extraordinária dos EUA.
A despeito deste ataque violento de críticas familiares, devemos recordar que Hume previu o fim da Grã-Bretanha devido à emissão excessiva de dívida no momento em que o país estava para dominar o mundo durante um século. É difícil estar mais errado; mesmo assim, os argumentos contra a dívida, essencialmente na mesma forma, continuam a ser usados hoje, três séculos depois. Ao que parece, os fatos raramente triunfam sobre uma boa ideologia liberal e, quando se trata de uma boa ideologia liberal, não se pode bater Adam Smith.
Adam Smith: A prática de financiamento [dívida] debilitou gradualmente todos os Estados que a adotaram
Contemporâneo de Hume, o ainda mais famoso Adam Smith também foi perturbado pelo problema da dívida pública. A diferença entre Hume e Smith é que, apesar de identificar o problema, Hume não apresenta solução, considerando inevitável a escorregadela para a insolvência e o enfraquecimento. Smith vai um passo mais longe: identifica tanto o problema como a solução. Para resolver o problema da dívida, devíamos adotar o princípio da austeridade - também conhecido como a avareza dos escoceses.
A economia de Smith é um pouco como Shakespeare - muitas vezes citada, raramente lida. Das suas notas acerca da divisão do trabalho na afamada fábrica de alfinetes até à “mão invisível” que guia ações egoístas para fins comuns, são bem conhecidos as citações de Smith. Os pormenores do que Smith disse sobre a economia são de longe menos conhecidos e muito surpreendentes. Smith reuniu grande parte da obra dispersa de economistas sobre a natureza do dinheiro, do crescimento econômico, do papel do capital e do trabalho, e de uma quantidade de outros assuntos, e depois teve o bom senso de pôr tudo num local acessível: A Riqueza das Nações. Como observou Albert Hirschman, este livro não era um projeto acadêmico; era uma defesa do capitalismo antes do seu triunfo, e também uma defesa muito bem-sucedida.
Para o que aqui nos interessa, encontramos em Smith uma sensibilidade particular ao Estado e à sua dívida que nos aproxima da ideia moderna de austeridade, mas de um ângulo surpreendente: a importância do hábito e da parcimônia pessoal como motor do crescimento capitalista. Mine-se essa sensibilidade e é o próprio capitalismo que treme. Para compreender totalmente o que Smith tinha a dizer acerca de dívida e parcimônia, precisamos começar pelo que ele disse acerca da atividade bancária, e daí passar às poupanças, ao investimento, ao crescimento e, o que talvez seja mais surpreendente, à necessidade do Estado engendrada pelos problemas da desigualdade e da política de classes, e ao problema do modo de como pagar.
A parcimônia produtiva de Adam Smith
Para Smith, a atividade bancária tem tudo a ver com a confiança no banqueiro. Se os clientes tiverem confiança nas promissórias de um banqueiro (o seu papel-moeda), este conseguirá emprestar mais em papel do que o que guarda em reservas de ouro para cobrir os seus depósitos. Hoje, isso é chamado de “sistema bancário de reservas fracionárias”. Todavia, Smith, tal como Hume, considera o dinheiro incapaz de afetar variáveis reais a longo prazo, porque adicionar papel-moeda à economia não levará ao crescimento. Porém, se muitos banqueiros de confiança produzirem mais papel-moeda do que a economia consegue absorver e, o que é crucial, se esse papel-moeda for considerado “tão bom como ouro” - para usar a expressão no seu contexto apropriado -, o ouro que está apoiando esse papel-moeda no cofre do banco será desprovido de função internamente. Felizmente, pode ser mandado para o estrangeiro, permitindo assim que o país de origem importe mais.
Smith sustenta que as importações podem ser de dois tipos: “bens (…) provavelmente para serem consumidos por pessoas ociosas que não produzem nada” ou bens que “podem comprar uma quantidade adicional de materiais (…) e empregar (…) pessoas das indústrias”. “Na medida em que for empregue da primeira maneira, promove a prosperidade (…) Na medida em que for empregue da segunda maneira, promove a indústria”. É, então, a frugalidade inerente aos Escoceses — a sua avareza — que parece ser a chave do crescimento (indústria). Por que ser parcimonioso e comprar bens de investimento em vez de vinhos estrangeiros? Fazemo-lo, segundo Smith, por causa de um sentimento que vem “conosco do útero e nunca nos deixa até irmos para a sepultura” - um sentimento que leva ao crescimento econômico.
Para Smith, o ato de poupar promove investimento, e não consumo. Por quê? Porque a riqueza da nação é o seu rendimento total. Retire-se desse rendimento o que é utilizado para a reprodução do trabalho (salários) e o que fica é lucro. Os lucros são então reinvestidos na economia através das poupanças dos comerciantes, que são emprestadas aos membros produtivos da sociedade (outros comerciantes) para investir. Hoje isto é chamado de “economia do lado da oferta”. O investimento promove o consumo e torna-o possível - e não o contrário. Por causa disso, “a maior parte [do investimento] destinar-se-á naturalmente ao emprego da indústria”. Subjacente a esta visão global está uma psicologia particularmente escocesa que vale a pena desembrulhar porque sugere a razão pela qual a ideia de austeridade tem tal força moral, ainda hoje.
Para Smith, porque a poupança leva ao investimento, não há defasagens nem perdas de rendimento; nem é possível a acumulação ou a incerteza. Consequentemente, a dívida não tem papel no seu sistema enquanto a poupança é ao mesmo tempo boa e natural para nós. Como diz Smith: “A parcimônia, e não a indústria, é a causa imediata do aumento do capital (…) seja o que for que a indústria compre, se a parcimônia não poupasse e guardasse, o capital nunca seria maior”. A frugalidade torna-se assim uma virtude, enquanto a prodigalidade se torna um vício tal que, “se a prodigalidade de uns não fosse compensada pela frugalidade de outros, a conduta de todos os pródigos, ao alimentar os ociosos com o pão dos industriosos… empobreceria todo o país”.
O que nos salva da pobreza e do enfraquecimento do Estado é, então, este sentimento: de que as pessoas são por natureza poupadoras parcimoniosas estruturadas para investir. O capitalismo de Smith está assentado em uma predisposição psicológica para poupar em vez de gastar. Como Smith diz de algo esperançoso, embora “alguns homens aumentem muito consideravelmente a sua despesa conquanto a sua receita não aumente, podemos estar certos de que nenhuma classe ou ordem de homens alguma vez o faz (…) porque os princípios da prudência comum (…) influenciam sempre (…) a maioria de cada classe”. Claramente, Smith não imaginava o devedor hipotecário norte-americano do século XXI nem o Banco Central Europeu. Mas o que ele viu, e receou, foi algo que transtornaria esse desejo natural de poupar e investir: dinheiro fácil, que é o que os mercados de crédito (dívida) oferecem. Em suma, desvirtuando a sensibilidade de poupar através dos empréstimos ao governo, “grandes nações são (…) empobrecidas pela (…) prodigalidade e má conduta pública”. Mais uma vez, o mercado não pode errar, então a culpa tem de ficar com o Estado.
Smith (relutantemente) traz o Estado de volta…
Smith reconhece inteiramente que o mercado não pode existir sem o Estado. Na verdade, o livro A Riqueza das Nações detalha a necessidade do Estado fornecer defesa externa, justiça interna, e até o treino e formação de trabalhadores. O mais interessante é que é irresistivelmente honesto em relação aos efeitos políticos do capitalismo, assinalando que “onde houver propriedade há grande desigualdade”, de tal modo que “a aquisição de propriedade valiosa e extensa (…) exige necessariamente o estabelecimento de um governo civil”. Um governo civil que, “se é instituído para segurança da propriedade, é na realidade instituído para defesa dos ricos contra os pobres, ou daqueles que têm alguma propriedade contra os que não têm nada”. Esta aceitação coloca Smith a uma grande distância do contrato voluntário de Locke entre homens e de novo perto do dilema liberal sobre o Estado: não se pode viver com ele, não se pode viver sem ele, mas o pior é que não se quer pagá-lo, e é isso que mina o próprio capitalismo.
Tendo admitido que precisa do Estado, Smith tem de encontrar agora uma maneira de paga-lo, o que necessita impostos. O primeiro princípio da tributação de Smith é a progressividade. Isto é, “os súditos de todos os Estados deveriam contribuir (…) em proporção para a receita de que gozam respectivamente sob a proteção do governo”. Isso parece implicar que os ricos deveriam suportar uma parte maior do fardo fiscal, uma vez que gozam de mais receitas protegidas pelo Estado. Porém, o exame feito por Smith de diferentes formas de tributação leva-o a minimizar a importância da progressividade, recomendando impostos sobre consumos de luxos — tudo o que vá além do meramente essencial — como a melhor maneira de financiar o Estado. Todavia, os impostos sobre o consumo talvez sejam a forma mais regressiva de imposto. Portanto, como é que isso convive com a sua ideia de proporcionalidade?
Convive bem se começarmos pela observação de que “a totalidade do consumo das classes inferiores da população… é em todos os países muito maior… do que o da classe média… e superior”. Por isso, tributar qualquer coisa exceto artigos luxuosos “recairia totalmente sobre as classes superiores da população”, o que diminuiria a sua parcimônia e, assim, baixaria o crescimento. Mas não há maneira de um imposto sobre consumo não essencial bastar para financiar um Estado do tamanho imaginado por Smith. Então, como é que se pode financiar o governo? A resposta é dívida governamental, e Smith não gosta dessa resposta.
O problema de Smith com a dívida é que os Estados, ao contrário dos comerciantes, não são poupadores por natureza. Na verdade, para seu desgosto, “a parcimônia que leva à acumulação tornou-se quase tão rara nos governos republicanos (dirigidos por comerciantes) como nos monárquicos”. Como consequência, os comerciantes são indiretamente sobrecarregados com “enormes dívidas que presentemente oprimem e provavelmente arruinarão a longo prazo todos os grandes Estados da Europa”. De modo semelhante ao que afirma Hume, essa ruína ocorrerá porque os “grandes Estados” estão cheios de comerciantes com muito dinheiro que podem emprestar ao governo; e emprestarão dadas as boas condições que recebem. Este dinheiro fácil abala o incentivo para poupar tanto na classe mercantil como no Estado, e enfraquece o incentivo do Estado para tributar, tal como Hume sugeriu.
Como resultado, emite-se mais dívida. Finalmente, esta estratégia atinge um teto, e “os impostos [são] então lançados com o único objetivo de pagar o juro do dinheiro que se pediu emprestado com base neles”. Quando isto se passa, toda a classe mercantil deve vender e sair do país, deixando-o na bancarrota, uma vez que a única opção possível que o governo tem é dar um calote na dívida que contraiu.
O que torna a dívida governamental insuportável para Smith não é só o calote a que leva inevitavelmente: ele receia ainda mais as consequências distributivas dessa inadimplência. Para protelar o calote inevitável do fundo soberano, os credores serão pagos com moeda desvalorizada. Esses credores são, claro, “pessoas ricas, mais em posição de credoras do que de devedoras” e, como consequência desse financiamento inflacionário, as suas fortunas, e daí a sua capacidade de investir através da poupança, serão destruídas. Como resultado, “os devedores ociosos e esbanjadores [ganharão] às custas do credor frugal (…) transportando capital (…) para aqueles que têm probabilidades de (…) destruir-lo”. Em suma, o dinheiro fácil oferecido por meio da compra de dívida governamental subverte a poupança, a máquina de crescimento e o progresso. É por isso que se deve resistir à dívida governamental e se deve abraçar a austeridade, para poupar.
Locke, Hume e Smith: produzindo a austeridade por padrão
Perceba que nenhum destes teóricos faz uma defesa direta da austeridade, daí o nosso foco na ausência de um projeto austeridade. Locke, Hume e Smith estão muito ocupados com a construção e a contenção dos Estados, Estados que ainda não estão gastando o suficiente para garantirem uma política de cortes na despesa, mas cujas dívidas são, ainda assim, profundamente perturbadoras. Encontramos a gênese da austeridade aqui no receio patológico da dívida governamental que está no cerne do liberalismo econômico. A dívida governamental perverte os poupadores, distrai os comerciantes e arruína a riqueza acumulada.
Locke põe o liberalismo a limitar todos os custos do Estado. Hume não vê uma verdadeira necessidade do Estado uma vez que os comerciantes são a classe produtiva para quem o dinheiro deveria fluir. Smith considera que o Estado tem um papel, mas depois sente grande dificuldade em financiá-lo. Quer pagar o mínimo possível de impostos possível, mas reconhece que sem esse apoio o capitalismo que defende não pode ser politicamente sustentado. A parcimônia (poupança) de Smith e não a prodigalidade (consumo) comanda tudo, e ainda assim a dívida governamental, uma dívida que será emitida, sendo os impostos insuficientes e os Estados pródigos, abala a nossa propensão natural para poupar, ameaçando assim todo o esquema de Smith, tão familiar que o vemos repetido sem modificações hoje em dia. Mas é Smith quem transforma a dívida em uma moralidade. Nos dá os argumentos morais contra a dívida que ainda hoje ressoam.
Para ser justo, não é que Smith e Hume faziam isso tudo apenas pela vontade de se esquivarem dos impostos. Muito antes do tempo de Locke, os Estados acumulavam dívida e faliam com uma regularidade monótona, empobrecendo, no caminho, quem lhes emprestava. Em sua própria vida, tanto Hume como Smith viram exemplos de financiamento da dívida que correram mal. No entanto, Smith viveu o trauma do colapso do Ayr Bank, um banco escocês financiado por dívida que ameaçou a solvência do principal benfeitor de Smith, o duque de Buccleuch. Nos seus escritos, Hume refletiu sobre a tentativa anterior de John Law, outro escocês, de pagar a dívida nacional da França, emitindo ações em uma companhia gigantesca de trading que usava o Banco de França como seu agente fiscal. Em 1721, quando a bolha daí resultante estourou, a França foi à bancarrota — outra vez.
Contudo, em termos do modo como vemos hoje a austeridade, a crítica moral que Smith faz da dívida parece tão familiar quanto a crítica econômica de Hume. Poupar é uma virtude, gastar é um vício. Os países que poupam devem estar fazendo o que é correto, enquanto os gastadores devem estar arranjando problemas. Na crise do euro, vemos países poupadores do norte da Europa lado a lado com libertinos do sul da Europa, apesar do fato de ser manifestadamente impossível obter demasiado dinheiro emprestado sem haver muitos empréstimos. Note-se, de igual modo, que as afirmações dos países ocidentais de que os seus problemas de dívida estão nos países asiáticos merecem pouca simpatia. A moralidade não está do lado dos pródigos. Dentro da zona do euro, os países com excedentes não têm problemas em manter um excedente comercial permanente, mas criticam os outros por terem déficits, como se pudesse existir um sem o outro.
Finalmente, as preocupações de Smith acerca da poupança contra a dívida e da parcimônia contra o consumo encontram eco imediato na invocação pela chanceler Merkel dos valores de uma dona de casa da Suábia como cura para os problemas da zona do euro, sendo poupar, ser parcimonioso e evitar dívidas a chave do êxito. Trezentos anos mais tarde, o mantra continua a ser a mesma. A austeridade tal como a conhecemos hoje, enquanto política ativa de cortes orçamentários e de deflação, pode não ser imediatamente evidente na história do início do pensamento econômico. Mas as condições de seu aparecimento - parcimônia, frugalidade, moralidade e um medo patológico das consequências da dívida governamental - estão bem enraizadas no registo fóssil do liberalismo econômico desde o início.
Sofrimento crescente: a austeridade se encontra com o Estado moderno
Os economistas liberais do século XIX trabalharam sobre as bases lançadas por Locke, Hume e Smith, e, ao fazê-lo, replicaram e ampliaram o problema do Estado do “não se pode viver com ele, não se pode viver sem ele, não se quer pagar por ele” que assombra o liberalismo econômico. Liberais posteriores, como David Ricardo, colocaram-se firmemente ao lado do “não se pode viver com ele” da barreira quando tratou do Estado. Ricardo foi precursor do estudo dos agregados (terra, trabalho e capital) como atores coletivos cujos interesses eram de soma zero uns em relação aos outros. Ricardo imaginou uma economia altamente competitiva de pequenas empresas em que os lucros inicialmente elevados dos primeiros a entrar num mercado convergiam para uma taxa média de lucro muito baixa quando mais pessoas entravam e a tecnologia se difundia pelo setor. Nesse ponto baixo, o capital e o trabalho sairiam do mercado, procurando novas áreas de lucro, iniciando assim outra vez o ciclo de investimento.
Não havia papel positivo para o Estado na visão de Ricardo. Na verdade, a única coisa que tinha de ser evitada era qualquer tentativa do Estado em amortecer ajustamentos do mercado, por mais construtivos que esses ajustamentos pudessem ser. Segundo a opinião de Ricardo, mesmo que “as condições dos trabalhadores sejam muito miseráveis”, o governo não deve tentar compensar a sua sorte. Tentativas de “corrigir a situação dos pobres (…) em vez de tornar os pobres ricos (…) tornam o rico pobre”. Como tal, o papel adequado do Estado é ensinar aos pobres o “valor da independência” em vez de alterar a distribuição do mercado. O Estado deve policiar as fronteiras da propriedade, mas não deve alterar a distribuição dessa propriedade. O sotaque lockiano de Ricardo continua a ser pronunciado.
Todavia, o Estado alterou o seu papel ao longo do século XIX, apesar das advertências de Ricardo. As próprias atividades do nacionalismo e construção do Estado no século XIX exigiam um Estado de longe mais intervencionista até do que Smith imaginara. Além disso, o próprio êxito do capitalismo trouxe uma variedade de movimentos sociais que exigia representação política, compensação econômica e proteção social, coisas que custavam dinheiro e ameaçavam a propriedade privada. Economistas como John Stuart Mill, que estavam do lado oposto da barreira, o do “não se pode viver sem ele”, esforçavam-se para lidar com este novo mundo à medida que o século XIX avançava.
O mais famoso tratado filosófico de Mill, Sobre a Liberdade, tentou encontrar um caminho entre as reivindicações abusivas das massas e a proteção dos direitos individuais liberais, enquanto os seus Princípios de Economia Política demarcavam de forma cada vez mais precisa as áreas de legítima ação do Estado, mesmo na área da dívida governamental. Isto é, em vez de repetir a tese do “inevitável enfraquecimento do Estado através da dívida” de Hume e de Smith, Mill defendia que desde que os pedidos de empréstimo do governo não concorressem por capital, fazendo assim subir as taxas de juros, a emissão de dívida era aceitável, ainda que os impostos fossem preferíveis242. Mais uma vez, tal como Hume e Smith, vemos que um lado do liberalismo rejeita o Estado enquanto o outro aceita que ele tenha um papel limitado.
Um lado do liberalismo, como vimos com Locke e Hume, nega um papel ao Estado e depois, em Smith, reconhece a sua existência. Ricardo exemplificou esta tradição em que o mercado é colocado como o oposto do Estado. Os escritos de Mill mostram-nos outro lado do liberalismo do século XIX que se adapta ao crescimento do Estado e à sua exigência de receitas. A tensão entre Ricardo e Mill relativamente ao papel do Estado não era única. Antes, era e continua a ser endêmica no liberalismo econômico. O resultado foi fazer o pensamento liberal seguir dois caminhos muito diferentes durante o fim do século XIX e o início do século XX. Um caminho levou ao novo liberalismo, movimento inicialmente britânico que conduziu o liberalismo para além de Ricardo e de Mill, em uma direção mais intervencionista. O outro caminho levou à Áustria, onde o liberalismo fez uma virada mais fundamentalista.
Novo liberalismo e neoliberalismos
O novo liberalismo da Grã-Bretanha nasceu quando as elites do Partido Liberal britânico se puseram essencialmente ao lado de Mill em relação a Ricardo. Assim procuraram desenvolver o papel do Estado como defensor do capitalismo e como instrumento de reforma social em um tempo de conflito de classes e de democracia de massas incipiente. Em suma, para manter o primado da iniciativa privada e das instituições liberais de mercado, a pobreza e a desigualdade que Ricardo encarava como naturais e inevitáveis não podiam continuar a ser toleradas. Além disso, os novos liberais britânicos não viam necessariamente este abraço ao Estado como um mal, como uma maquiagem para evitar a revolução. Pelo contrário, o novo liberalismo reconhecia a responsabilidade do Estado na gestão corrente e na reforma das instituições capitalistas.
As consequências a longo prazo desta transformação do liberalismo britânico foram dramáticas. Pensões universais, seguro desemprego e a intensificação da regulação industrial, tudo se seguiu no século XX. Vinte anos mais tarde, os herdeiros deste movimento foram os grandes reformadores sociais e econômicos das décadas de 1930 e 1940, como T. H. Marshall, John Meynard Keynes e William Beveridge. Eles, por sua vez, levaram o novo liberalismo ainda mais longe, lançando as fundações de um Estado de Bem-Estar social abrangente.
Se o novo liberalismo foi aquilo a que podíamos chamar “a modificação de Mill” — uma adaptação pragmática às complexidades da economia moderna -, a economia austríaca foi a “rejeição de Ricardo” - uma reação fundamentalista contra a economia moderna. Os economistas austríacos acreditavam que o liberalismo se defendia melhor não através de mais redistribuição e gestão estatal, mas através da completa retirada do Estado de seu papel na economia. Recorrendo a um termo que hoje é um lugar-comum, os economistas austríacos foram os neoliberais originais. Discuto mais profundamente as ideias austríacas no capítulo 5. Em suma, os economistas austríacos atacaram as novas ideias intervencionistas em duas frentes.
Primeiro, puseram em questão a afirmação dos novos liberais de que as operações do mercado livre não adulterado punham em perigo o capitalismo, usando o contra-argumento de que o mercado tinha uma estrutura evolutiva a longo prazo que a intervenção governamental não podia alterar nem prever. Como tal, a intervenção é sempre prejudicial, seja onde for. Além disso, por produzirem distorções de mercado e maus investimentos, as intervenções governamentais eram a fonte das explosões de crédito e falências.
Os mercados eram estáveis a menos que sofressem interferências. O capitalismo não era inerentemente instável: o governo é que o fazia assim. Segundo, os economistas austríacos nunca perderam o medo do Estado Leviatã, que continuavam a considerar o inimigo supremo dos valores liberais. Especificamente, faziam a acusação de que, uma vez que fossem autorizados a intervir, os governos usariam sempre as impressoras para financiar as suas atividades. Onde os novos liberais britânicos começaram a ver que as recessões eram passíveis de melhora através de mais despesa, os economistas austríacos viam nas recessões a dor necessária da austeridade após a “festa” intervencionista. Em suma, enquanto os novos liberais e os seus herdeiros de meados do século XX abraçavam o Estado e a intervenção, os economistas austríacos, em particular Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e Joseph Schumpeter, rejeitavam inteiramente essas noções.
John Maynard Keynes assinalou uma vez que:
as ideias de economistas e de filósofos políticos, tanto quando têm razão como quando não a têm, são mais poderosas do que normalmente se pensa. Na verdade, o mundo é governado por pouco mais: homens práticos, que se creem bastante isentos de quaisquer influências intelectuais, são normalmente escravos de algum economista defunto.
As ideias de hoje acerca da austeridade não são exceção a esta regra. Os herdeiros de meados do século do novo liberalismo e da Escola Austríaca ainda definem as condições básicas do debate da austeridade oitenta anos depois. Agora, seguimos essas ideias através da Grande Depressão e do período entre-guerras, usando as obras de Keynes e de Schumpeter como nossos modelos.
"Os homens concordaram com [uma] posse desigual da terra". John Locke
John Locke foi um dos mais famosos filósofos de Inglaterra. Escrevendo no rescaldo das guerras civis inglesas do século XVII, preocupou-se com a fundamentação apropriada do governo civil. Em vez de exercícios de cátedra, os escritos de Locke eram uma propaganda essencial das classes mercantis emergentes que pouco a pouco estavam tomando o poder das elites aristocráticas britânicas. Fez parte de um movimento que culminou na Revolução Gloriosa de 1688, que retirou o poder do rei e o deu - e muito bem - a pessoas como Locke.
Além de filosofar sobre os direitos dos cidadãos em uma comunidade e sobre os limites do poder dos reis que procuram governá-los, Locke foi um revolucionário econômico. Baseou a sua noção do que constitui um governo legítimo em direitos individuais de propriedade, sem os quais não pode haver liberalismo econômico, separação entre Estado e mercado, ou capitalismo tal como o conhecemos hoje. A visão de Locke é delineada em seu Segundo Tratado do Governo(1690). Para criar a separação entre Estado e mercado, Locke teve de fazer várias coisas: explicar naturalmente a desigualdade do rendimento e da riqueza, legitimar a propriedade privada da terra, explicar a emergência dos mercados de trabalho e despolitizar a invenção do recurso chamado “dinheiro” que tornava todas essas coisas possíveis. Na base, o liberalismo de Locke é um liberalismo econômico que coloca o indivíduo contra o Estado. A história intelectual da austeridade começa aqui.
John Locke imagina o mercado
Locke começa por se interrogar sobre como é possível “Deus, que deu o mundo aos homens por igual”, permitir a acumulação desigual, ou até ilimitada, da riqueza. A resposta está na concepção de propriedade de Locke. Para Locke, a propriedade reside em todos nós, em nossas pessoas, mas só é importante porque é alienável com o nosso trabalho. Isto é, quando trabalhamos em qualquer coisa, como a terra, o nosso trabalho torna-a nossa. Como Locke defendia, “então, seja o que for que ele retire do estado natural [e] misture com o seu trabalho, [ele] torna-o, assim, sua propriedade”. Ora, talvez você pense que outras pessoas à época objetariam que alguém tomasse posse da terra comum desta maneira. Mas Locke insiste em que “a tomada desta ou daquela parte [da terra] não depende do consentimento expresso de todo o povo” porque “ainda ficava bastante e igualmente boa [para todos]”.
Despachado o problema da distribuição presumindo a abundância infinita, Locke mantém que o único argumento verdadeiro contra a propriedade privada é a questão do desperdício, de que se tome mais do que o que pode ser usado, coisa que Deus não gostaria. Felizmente, o tempo e os hábitos deram-nos um recurso chamado “dinheiro” que nos permite ultrapassar o problema do desperdício, porque podemos guarda-lo e trocá-lo por produtos a qualquer momento. Isto também tem o cômodo efeito colateral de criar um mercado de trabalho, uma vez que se pode colocar as pessoas a trabalhar para nós em nossa propriedade e depois, através do recurso dinheiro, levá-las a alienar (dar) os frutos do seu trabalho em nosso favor como uma troca livre. Isto permite a Locke concluir que “os homens concordaram com uma posse desproporcionada e desigual da terra (…) por consentimento voluntário descobriram um modo do homem possuir justamente mais terra do que o respectivo produto que consegue usar, recebendo (…) o excedente em ouro e prata, que se podem entesourar sem prejuízo para ninguém”.
No contexto de um país assolado pela guerra, pelo regicídio e pela rebelião, este ponto de vista pode parecer algo sanguinário: desigualdade ilimitada da propriedade explicada naturalmente pela falta de visão de Deus na questão do desperdício. Mas permite que Locke explique como inevitável, e por isso boa, a criação de mercados na terra, no trabalho e no capital, que era exatamente o projeto político em que as pessoas da sua classe estavam empenhadas naquele momento. O seu passo seguinte foi proteger essas novas instituições do mercado de sua nêmesis emergente do capitalismo: o Estado.
John Locke imagina o Estado
O famoso direito de rebelião de Locke, bem como sua profunda suspeita contra o governo apenas faz sentido se relacionado com a violação dos direitos de propriedade privada que acabara de atribuir a si próprio. No mundo de Locke, o poder da legislatura é “limitado ao bem público da sociedade” que se define como estar livre da intervenção do governo nos assuntos privados, especialmente no que diz respeito à propriedade, a menos que os cidadãos concordem. Como diz Locke em relação aos impostos, “lançar e criar impostos (…) sem [o] consentimento do povo (…) invade a lei fundamental da propriedade”. Tendo feito isso, os legisladores “põem-se num estado de guerra com o povo” de tal modo que é o governo, e não o povo ,o “culpado de rebelião”, perdendo o direito de governar.
Lembre-se que estes argumentos estão sendo desenvolvidos na Inglaterra do século XVII, onde a dívida pública é a dívida dos reis, que invocam os direitos dados por Deus para se apropriarem compulsivamente da propriedade dos outros. O fato de Locke empregar igualmente raciocínios especiosos para explicar a razão pela qual ele e os seus confrades da comunidade haviam de ter a parte do mundo que queriam é irrelevante. O que ele pretende é defender do Estado, a todo o custo, esses ganhos e minimizar a capacidade do Estado de extrair mais recursos. É nesta fundamentação minimalista de que o Estado pode e deve fazer, deixada em testamento por Locke, que os liberais posteriores se baseiam. Essa fundamentação tem dificuldades, devido à sua arquitetura, em apoiar qualquer visão do Estado que se estenda para além da proteção da propriedade. Mas até essa estreita atividade custa dinheiro, e isso exige que o Estado o arranje. Assim, nasceu o dilema liberal que gera a austeridade. O Estado: não se pode viver com ele, não se pode viver sem ele, não se quer pagar por ele.
David Hume: “O crédito público destruirá a nação”
Assentando os seus tijolos intelectuais nas estreitas fundações de Locke estão os dois gigantes gêmeos do Iluminismo escocês: Adam Smith e David Hume. Voltando-nos primeiro para Hume, as suas contribuições para a economia política são numerosas. A ideia de que um incentivo monetário pode, a curto prazo, estimular a atividade econômica, mas, a longo prazo, ou tem de aparecer como inflação ou se dissipar sem afetar verdadeiras variáveis, é o aspecto principal do seu ensaio On Money. Esta é a linha padrão da teoria macroeconômica contemporânea, em que é conhecida como “tese da neutralidade monetária de longo prazo”. Também lhe devem os pormenores das ideias sobre balança comercial de Richard Cantillon através do seu mecanismo de “fluxo de preço-espécie”, o mecanismo subjacente ao padrão-ouro do século XIX. Nós, porém, estamos interessados em Hume por conta de seus textos sobre “crédito público” - aquilo a que chamamos “dívida governamental”.
Hume, tal como Locke, vê o dinheiro como um instrumento, como “apenas a representação de mão de obra e mercadorias (…) um método de as classificar ou calcular”. Na versão de Hume dos acontecimentos, porém, o dinheiro não existe para ultrapassar o problema do desperdício ou os problemas contabilísticos de Deus. Antes, o dinheiro segue o comércio, que coloca as classes mercantis de Locke, e não o Estado, no centro de tudo. Para Hume, os comerciantes são o catalisador do comércio e os criadores de riqueza. São, segundo Hume, “uma das raças humanas mais úteis, que serve de agente entre (…) partes do Estado”. Como consequência, “é necessário, e razoável, que uma parte considerável das mercadorias e do trabalho [produzido] pertença ao comerciante, para com quem, em grande medida, estão em dívida”. Enquanto “advogados e médicos não geram indústria”, só os comerciantes podem “aumentar a indústria e, também aumentando a frugalidade, dar um grande controle dessa indústria a membros particulares da sociedade”. Esses “membros particulares da sociedade” seriam, claro, Hume e outros como ele: as classes mercantis.
O que poderia ameaçar uma situação tão feliz em que o crescimento natural do comércio é ao mesmo tempo causado e catalisado pelas classes mercantis? Seriam, com certeza, as exigências de receita do Estado, especialmente na forma de dívida. Hume não põe panos quentes na questão da dívida governamental. É uma coisa má. Se a razão que aponta parece hoje familiar é porque, como Hirschman nos avisou, os mesmos argumentos andaram no ar nos últimos séculos, com poucas modificações.
David Hume se desespera com a dívida
O problema básico de Hume com a dívida pública é sua falta de limite, pelo menos até as taxas de juros da dívida se tornarem esmagadoras. Além disso, a dívida é fácil de cobrar uma vez que os custos são ocultos e intergeracionais, o que faz com que os Estados adorem a dívida. Como diz Hume, “é muito tentador para um ministro empregar esse expediente, na medida em que lhe permite fazer uma grande figura durante a sua administração, sem sobrecarregar o povo com impostos (…) Abusar-se-á, por isso (…) quase inevitavelmente dessa prática, em todos os governos”. Nessa medida, o governo emitirá a dívida a uma taxa que excede a taxa de juros que poderia obter em qualquer outro lugar, encontrando assim compradores disponíveis à custa de desviar fundos da indústria. Como consequência, o capital ficará concentrado em títulos de dívida que “banem ouro e prata do comércio do Estado (…) e por esse meio tornam todos os fornecimentos e a mão de obra mais caros do que seriam de outro modo”.
Quando essa emissão de dívida acabar atingindo um teto, os governos precisarão vender mais dívida aos estrangeiros, e isso resultará em estrangeiros possuindo “uma grande quota dos nossos fundos nacionais [o que] tornará o público (…) tributário deles”. E se tudo isto acabar por se passar, como inevitavelmente tem de acontecer, segundo Hume, desfaz-se a liberdade. Com os impostos nos seus limites a pagarem juros sobre a dívida, não há espaço para absorver qualquer espécie de choque financeiro. Consequentemente, será emitida ainda mais dívida, “uma tributação contínua dos que recebem anuidades”, o que resulta em um governo que “hipotecou todas as suas receitas [e que] se afundará em um estado de languidez, inatividade e impotência”.
Se tudo isso parece familiar é porque é familiar. As afirmações de Hume não são um eco das de hoje - as afirmações de hoje são réplicas diretas das de Hume. Quanto à dívida ser politicamente mais fácil do que impostos, basta ver as críticas da Europa do Norte às políticas orçamentárias da Grécia e da Itália. Quanto à dívida governamental tirar o lugar de outros investimentos, ver o tsunami de críticas aos incentivos de Obama. Quanto à dívida subir os preços e comprometer a capacidade do Estado de amortecer outros choques, ver as volumosas críticas à flexibilização quantitativa e os receios de que um pico das taxas de juros dos EUA provoque exatamente isso. Quanto ao medo de que os estrangeiros se tornem donos dos Estados Unidos, basta pesquisar no Google “China owns USA”. A pesquisa dá 25 milhões de resultados ainda que a afirmação pura e simplesmente não seja verdadeira - os estrangeiros detêm menos de um terço da dívida extraordinária dos EUA.
A despeito deste ataque violento de críticas familiares, devemos recordar que Hume previu o fim da Grã-Bretanha devido à emissão excessiva de dívida no momento em que o país estava para dominar o mundo durante um século. É difícil estar mais errado; mesmo assim, os argumentos contra a dívida, essencialmente na mesma forma, continuam a ser usados hoje, três séculos depois. Ao que parece, os fatos raramente triunfam sobre uma boa ideologia liberal e, quando se trata de uma boa ideologia liberal, não se pode bater Adam Smith.
Adam Smith: A prática de financiamento [dívida] debilitou gradualmente todos os Estados que a adotaram
Contemporâneo de Hume, o ainda mais famoso Adam Smith também foi perturbado pelo problema da dívida pública. A diferença entre Hume e Smith é que, apesar de identificar o problema, Hume não apresenta solução, considerando inevitável a escorregadela para a insolvência e o enfraquecimento. Smith vai um passo mais longe: identifica tanto o problema como a solução. Para resolver o problema da dívida, devíamos adotar o princípio da austeridade - também conhecido como a avareza dos escoceses.
A economia de Smith é um pouco como Shakespeare - muitas vezes citada, raramente lida. Das suas notas acerca da divisão do trabalho na afamada fábrica de alfinetes até à “mão invisível” que guia ações egoístas para fins comuns, são bem conhecidos as citações de Smith. Os pormenores do que Smith disse sobre a economia são de longe menos conhecidos e muito surpreendentes. Smith reuniu grande parte da obra dispersa de economistas sobre a natureza do dinheiro, do crescimento econômico, do papel do capital e do trabalho, e de uma quantidade de outros assuntos, e depois teve o bom senso de pôr tudo num local acessível: A Riqueza das Nações. Como observou Albert Hirschman, este livro não era um projeto acadêmico; era uma defesa do capitalismo antes do seu triunfo, e também uma defesa muito bem-sucedida.
Para o que aqui nos interessa, encontramos em Smith uma sensibilidade particular ao Estado e à sua dívida que nos aproxima da ideia moderna de austeridade, mas de um ângulo surpreendente: a importância do hábito e da parcimônia pessoal como motor do crescimento capitalista. Mine-se essa sensibilidade e é o próprio capitalismo que treme. Para compreender totalmente o que Smith tinha a dizer acerca de dívida e parcimônia, precisamos começar pelo que ele disse acerca da atividade bancária, e daí passar às poupanças, ao investimento, ao crescimento e, o que talvez seja mais surpreendente, à necessidade do Estado engendrada pelos problemas da desigualdade e da política de classes, e ao problema do modo de como pagar.
A parcimônia produtiva de Adam Smith
Para Smith, a atividade bancária tem tudo a ver com a confiança no banqueiro. Se os clientes tiverem confiança nas promissórias de um banqueiro (o seu papel-moeda), este conseguirá emprestar mais em papel do que o que guarda em reservas de ouro para cobrir os seus depósitos. Hoje, isso é chamado de “sistema bancário de reservas fracionárias”. Todavia, Smith, tal como Hume, considera o dinheiro incapaz de afetar variáveis reais a longo prazo, porque adicionar papel-moeda à economia não levará ao crescimento. Porém, se muitos banqueiros de confiança produzirem mais papel-moeda do que a economia consegue absorver e, o que é crucial, se esse papel-moeda for considerado “tão bom como ouro” - para usar a expressão no seu contexto apropriado -, o ouro que está apoiando esse papel-moeda no cofre do banco será desprovido de função internamente. Felizmente, pode ser mandado para o estrangeiro, permitindo assim que o país de origem importe mais.
Smith sustenta que as importações podem ser de dois tipos: “bens (…) provavelmente para serem consumidos por pessoas ociosas que não produzem nada” ou bens que “podem comprar uma quantidade adicional de materiais (…) e empregar (…) pessoas das indústrias”. “Na medida em que for empregue da primeira maneira, promove a prosperidade (…) Na medida em que for empregue da segunda maneira, promove a indústria”. É, então, a frugalidade inerente aos Escoceses — a sua avareza — que parece ser a chave do crescimento (indústria). Por que ser parcimonioso e comprar bens de investimento em vez de vinhos estrangeiros? Fazemo-lo, segundo Smith, por causa de um sentimento que vem “conosco do útero e nunca nos deixa até irmos para a sepultura” - um sentimento que leva ao crescimento econômico.
Para Smith, o ato de poupar promove investimento, e não consumo. Por quê? Porque a riqueza da nação é o seu rendimento total. Retire-se desse rendimento o que é utilizado para a reprodução do trabalho (salários) e o que fica é lucro. Os lucros são então reinvestidos na economia através das poupanças dos comerciantes, que são emprestadas aos membros produtivos da sociedade (outros comerciantes) para investir. Hoje isto é chamado de “economia do lado da oferta”. O investimento promove o consumo e torna-o possível - e não o contrário. Por causa disso, “a maior parte [do investimento] destinar-se-á naturalmente ao emprego da indústria”. Subjacente a esta visão global está uma psicologia particularmente escocesa que vale a pena desembrulhar porque sugere a razão pela qual a ideia de austeridade tem tal força moral, ainda hoje.
Para Smith, porque a poupança leva ao investimento, não há defasagens nem perdas de rendimento; nem é possível a acumulação ou a incerteza. Consequentemente, a dívida não tem papel no seu sistema enquanto a poupança é ao mesmo tempo boa e natural para nós. Como diz Smith: “A parcimônia, e não a indústria, é a causa imediata do aumento do capital (…) seja o que for que a indústria compre, se a parcimônia não poupasse e guardasse, o capital nunca seria maior”. A frugalidade torna-se assim uma virtude, enquanto a prodigalidade se torna um vício tal que, “se a prodigalidade de uns não fosse compensada pela frugalidade de outros, a conduta de todos os pródigos, ao alimentar os ociosos com o pão dos industriosos… empobreceria todo o país”.
O que nos salva da pobreza e do enfraquecimento do Estado é, então, este sentimento: de que as pessoas são por natureza poupadoras parcimoniosas estruturadas para investir. O capitalismo de Smith está assentado em uma predisposição psicológica para poupar em vez de gastar. Como Smith diz de algo esperançoso, embora “alguns homens aumentem muito consideravelmente a sua despesa conquanto a sua receita não aumente, podemos estar certos de que nenhuma classe ou ordem de homens alguma vez o faz (…) porque os princípios da prudência comum (…) influenciam sempre (…) a maioria de cada classe”. Claramente, Smith não imaginava o devedor hipotecário norte-americano do século XXI nem o Banco Central Europeu. Mas o que ele viu, e receou, foi algo que transtornaria esse desejo natural de poupar e investir: dinheiro fácil, que é o que os mercados de crédito (dívida) oferecem. Em suma, desvirtuando a sensibilidade de poupar através dos empréstimos ao governo, “grandes nações são (…) empobrecidas pela (…) prodigalidade e má conduta pública”. Mais uma vez, o mercado não pode errar, então a culpa tem de ficar com o Estado.
Smith (relutantemente) traz o Estado de volta…
Smith reconhece inteiramente que o mercado não pode existir sem o Estado. Na verdade, o livro A Riqueza das Nações detalha a necessidade do Estado fornecer defesa externa, justiça interna, e até o treino e formação de trabalhadores. O mais interessante é que é irresistivelmente honesto em relação aos efeitos políticos do capitalismo, assinalando que “onde houver propriedade há grande desigualdade”, de tal modo que “a aquisição de propriedade valiosa e extensa (…) exige necessariamente o estabelecimento de um governo civil”. Um governo civil que, “se é instituído para segurança da propriedade, é na realidade instituído para defesa dos ricos contra os pobres, ou daqueles que têm alguma propriedade contra os que não têm nada”. Esta aceitação coloca Smith a uma grande distância do contrato voluntário de Locke entre homens e de novo perto do dilema liberal sobre o Estado: não se pode viver com ele, não se pode viver sem ele, mas o pior é que não se quer pagá-lo, e é isso que mina o próprio capitalismo.
Tendo admitido que precisa do Estado, Smith tem de encontrar agora uma maneira de paga-lo, o que necessita impostos. O primeiro princípio da tributação de Smith é a progressividade. Isto é, “os súditos de todos os Estados deveriam contribuir (…) em proporção para a receita de que gozam respectivamente sob a proteção do governo”. Isso parece implicar que os ricos deveriam suportar uma parte maior do fardo fiscal, uma vez que gozam de mais receitas protegidas pelo Estado. Porém, o exame feito por Smith de diferentes formas de tributação leva-o a minimizar a importância da progressividade, recomendando impostos sobre consumos de luxos — tudo o que vá além do meramente essencial — como a melhor maneira de financiar o Estado. Todavia, os impostos sobre o consumo talvez sejam a forma mais regressiva de imposto. Portanto, como é que isso convive com a sua ideia de proporcionalidade?
Convive bem se começarmos pela observação de que “a totalidade do consumo das classes inferiores da população… é em todos os países muito maior… do que o da classe média… e superior”. Por isso, tributar qualquer coisa exceto artigos luxuosos “recairia totalmente sobre as classes superiores da população”, o que diminuiria a sua parcimônia e, assim, baixaria o crescimento. Mas não há maneira de um imposto sobre consumo não essencial bastar para financiar um Estado do tamanho imaginado por Smith. Então, como é que se pode financiar o governo? A resposta é dívida governamental, e Smith não gosta dessa resposta.
O problema de Smith com a dívida é que os Estados, ao contrário dos comerciantes, não são poupadores por natureza. Na verdade, para seu desgosto, “a parcimônia que leva à acumulação tornou-se quase tão rara nos governos republicanos (dirigidos por comerciantes) como nos monárquicos”. Como consequência, os comerciantes são indiretamente sobrecarregados com “enormes dívidas que presentemente oprimem e provavelmente arruinarão a longo prazo todos os grandes Estados da Europa”. De modo semelhante ao que afirma Hume, essa ruína ocorrerá porque os “grandes Estados” estão cheios de comerciantes com muito dinheiro que podem emprestar ao governo; e emprestarão dadas as boas condições que recebem. Este dinheiro fácil abala o incentivo para poupar tanto na classe mercantil como no Estado, e enfraquece o incentivo do Estado para tributar, tal como Hume sugeriu.
Como resultado, emite-se mais dívida. Finalmente, esta estratégia atinge um teto, e “os impostos [são] então lançados com o único objetivo de pagar o juro do dinheiro que se pediu emprestado com base neles”. Quando isto se passa, toda a classe mercantil deve vender e sair do país, deixando-o na bancarrota, uma vez que a única opção possível que o governo tem é dar um calote na dívida que contraiu.
O que torna a dívida governamental insuportável para Smith não é só o calote a que leva inevitavelmente: ele receia ainda mais as consequências distributivas dessa inadimplência. Para protelar o calote inevitável do fundo soberano, os credores serão pagos com moeda desvalorizada. Esses credores são, claro, “pessoas ricas, mais em posição de credoras do que de devedoras” e, como consequência desse financiamento inflacionário, as suas fortunas, e daí a sua capacidade de investir através da poupança, serão destruídas. Como resultado, “os devedores ociosos e esbanjadores [ganharão] às custas do credor frugal (…) transportando capital (…) para aqueles que têm probabilidades de (…) destruir-lo”. Em suma, o dinheiro fácil oferecido por meio da compra de dívida governamental subverte a poupança, a máquina de crescimento e o progresso. É por isso que se deve resistir à dívida governamental e se deve abraçar a austeridade, para poupar.
Locke, Hume e Smith: produzindo a austeridade por padrão
Perceba que nenhum destes teóricos faz uma defesa direta da austeridade, daí o nosso foco na ausência de um projeto austeridade. Locke, Hume e Smith estão muito ocupados com a construção e a contenção dos Estados, Estados que ainda não estão gastando o suficiente para garantirem uma política de cortes na despesa, mas cujas dívidas são, ainda assim, profundamente perturbadoras. Encontramos a gênese da austeridade aqui no receio patológico da dívida governamental que está no cerne do liberalismo econômico. A dívida governamental perverte os poupadores, distrai os comerciantes e arruína a riqueza acumulada.
Locke põe o liberalismo a limitar todos os custos do Estado. Hume não vê uma verdadeira necessidade do Estado uma vez que os comerciantes são a classe produtiva para quem o dinheiro deveria fluir. Smith considera que o Estado tem um papel, mas depois sente grande dificuldade em financiá-lo. Quer pagar o mínimo possível de impostos possível, mas reconhece que sem esse apoio o capitalismo que defende não pode ser politicamente sustentado. A parcimônia (poupança) de Smith e não a prodigalidade (consumo) comanda tudo, e ainda assim a dívida governamental, uma dívida que será emitida, sendo os impostos insuficientes e os Estados pródigos, abala a nossa propensão natural para poupar, ameaçando assim todo o esquema de Smith, tão familiar que o vemos repetido sem modificações hoje em dia. Mas é Smith quem transforma a dívida em uma moralidade. Nos dá os argumentos morais contra a dívida que ainda hoje ressoam.
Para ser justo, não é que Smith e Hume faziam isso tudo apenas pela vontade de se esquivarem dos impostos. Muito antes do tempo de Locke, os Estados acumulavam dívida e faliam com uma regularidade monótona, empobrecendo, no caminho, quem lhes emprestava. Em sua própria vida, tanto Hume como Smith viram exemplos de financiamento da dívida que correram mal. No entanto, Smith viveu o trauma do colapso do Ayr Bank, um banco escocês financiado por dívida que ameaçou a solvência do principal benfeitor de Smith, o duque de Buccleuch. Nos seus escritos, Hume refletiu sobre a tentativa anterior de John Law, outro escocês, de pagar a dívida nacional da França, emitindo ações em uma companhia gigantesca de trading que usava o Banco de França como seu agente fiscal. Em 1721, quando a bolha daí resultante estourou, a França foi à bancarrota — outra vez.
Contudo, em termos do modo como vemos hoje a austeridade, a crítica moral que Smith faz da dívida parece tão familiar quanto a crítica econômica de Hume. Poupar é uma virtude, gastar é um vício. Os países que poupam devem estar fazendo o que é correto, enquanto os gastadores devem estar arranjando problemas. Na crise do euro, vemos países poupadores do norte da Europa lado a lado com libertinos do sul da Europa, apesar do fato de ser manifestadamente impossível obter demasiado dinheiro emprestado sem haver muitos empréstimos. Note-se, de igual modo, que as afirmações dos países ocidentais de que os seus problemas de dívida estão nos países asiáticos merecem pouca simpatia. A moralidade não está do lado dos pródigos. Dentro da zona do euro, os países com excedentes não têm problemas em manter um excedente comercial permanente, mas criticam os outros por terem déficits, como se pudesse existir um sem o outro.
Finalmente, as preocupações de Smith acerca da poupança contra a dívida e da parcimônia contra o consumo encontram eco imediato na invocação pela chanceler Merkel dos valores de uma dona de casa da Suábia como cura para os problemas da zona do euro, sendo poupar, ser parcimonioso e evitar dívidas a chave do êxito. Trezentos anos mais tarde, o mantra continua a ser a mesma. A austeridade tal como a conhecemos hoje, enquanto política ativa de cortes orçamentários e de deflação, pode não ser imediatamente evidente na história do início do pensamento econômico. Mas as condições de seu aparecimento - parcimônia, frugalidade, moralidade e um medo patológico das consequências da dívida governamental - estão bem enraizadas no registo fóssil do liberalismo econômico desde o início.
Sofrimento crescente: a austeridade se encontra com o Estado moderno
Os economistas liberais do século XIX trabalharam sobre as bases lançadas por Locke, Hume e Smith, e, ao fazê-lo, replicaram e ampliaram o problema do Estado do “não se pode viver com ele, não se pode viver sem ele, não se quer pagar por ele” que assombra o liberalismo econômico. Liberais posteriores, como David Ricardo, colocaram-se firmemente ao lado do “não se pode viver com ele” da barreira quando tratou do Estado. Ricardo foi precursor do estudo dos agregados (terra, trabalho e capital) como atores coletivos cujos interesses eram de soma zero uns em relação aos outros. Ricardo imaginou uma economia altamente competitiva de pequenas empresas em que os lucros inicialmente elevados dos primeiros a entrar num mercado convergiam para uma taxa média de lucro muito baixa quando mais pessoas entravam e a tecnologia se difundia pelo setor. Nesse ponto baixo, o capital e o trabalho sairiam do mercado, procurando novas áreas de lucro, iniciando assim outra vez o ciclo de investimento.
Não havia papel positivo para o Estado na visão de Ricardo. Na verdade, a única coisa que tinha de ser evitada era qualquer tentativa do Estado em amortecer ajustamentos do mercado, por mais construtivos que esses ajustamentos pudessem ser. Segundo a opinião de Ricardo, mesmo que “as condições dos trabalhadores sejam muito miseráveis”, o governo não deve tentar compensar a sua sorte. Tentativas de “corrigir a situação dos pobres (…) em vez de tornar os pobres ricos (…) tornam o rico pobre”. Como tal, o papel adequado do Estado é ensinar aos pobres o “valor da independência” em vez de alterar a distribuição do mercado. O Estado deve policiar as fronteiras da propriedade, mas não deve alterar a distribuição dessa propriedade. O sotaque lockiano de Ricardo continua a ser pronunciado.
Todavia, o Estado alterou o seu papel ao longo do século XIX, apesar das advertências de Ricardo. As próprias atividades do nacionalismo e construção do Estado no século XIX exigiam um Estado de longe mais intervencionista até do que Smith imaginara. Além disso, o próprio êxito do capitalismo trouxe uma variedade de movimentos sociais que exigia representação política, compensação econômica e proteção social, coisas que custavam dinheiro e ameaçavam a propriedade privada. Economistas como John Stuart Mill, que estavam do lado oposto da barreira, o do “não se pode viver sem ele”, esforçavam-se para lidar com este novo mundo à medida que o século XIX avançava.
O mais famoso tratado filosófico de Mill, Sobre a Liberdade, tentou encontrar um caminho entre as reivindicações abusivas das massas e a proteção dos direitos individuais liberais, enquanto os seus Princípios de Economia Política demarcavam de forma cada vez mais precisa as áreas de legítima ação do Estado, mesmo na área da dívida governamental. Isto é, em vez de repetir a tese do “inevitável enfraquecimento do Estado através da dívida” de Hume e de Smith, Mill defendia que desde que os pedidos de empréstimo do governo não concorressem por capital, fazendo assim subir as taxas de juros, a emissão de dívida era aceitável, ainda que os impostos fossem preferíveis242. Mais uma vez, tal como Hume e Smith, vemos que um lado do liberalismo rejeita o Estado enquanto o outro aceita que ele tenha um papel limitado.
Um lado do liberalismo, como vimos com Locke e Hume, nega um papel ao Estado e depois, em Smith, reconhece a sua existência. Ricardo exemplificou esta tradição em que o mercado é colocado como o oposto do Estado. Os escritos de Mill mostram-nos outro lado do liberalismo do século XIX que se adapta ao crescimento do Estado e à sua exigência de receitas. A tensão entre Ricardo e Mill relativamente ao papel do Estado não era única. Antes, era e continua a ser endêmica no liberalismo econômico. O resultado foi fazer o pensamento liberal seguir dois caminhos muito diferentes durante o fim do século XIX e o início do século XX. Um caminho levou ao novo liberalismo, movimento inicialmente britânico que conduziu o liberalismo para além de Ricardo e de Mill, em uma direção mais intervencionista. O outro caminho levou à Áustria, onde o liberalismo fez uma virada mais fundamentalista.
Novo liberalismo e neoliberalismos
O novo liberalismo da Grã-Bretanha nasceu quando as elites do Partido Liberal britânico se puseram essencialmente ao lado de Mill em relação a Ricardo. Assim procuraram desenvolver o papel do Estado como defensor do capitalismo e como instrumento de reforma social em um tempo de conflito de classes e de democracia de massas incipiente. Em suma, para manter o primado da iniciativa privada e das instituições liberais de mercado, a pobreza e a desigualdade que Ricardo encarava como naturais e inevitáveis não podiam continuar a ser toleradas. Além disso, os novos liberais britânicos não viam necessariamente este abraço ao Estado como um mal, como uma maquiagem para evitar a revolução. Pelo contrário, o novo liberalismo reconhecia a responsabilidade do Estado na gestão corrente e na reforma das instituições capitalistas.
As consequências a longo prazo desta transformação do liberalismo britânico foram dramáticas. Pensões universais, seguro desemprego e a intensificação da regulação industrial, tudo se seguiu no século XX. Vinte anos mais tarde, os herdeiros deste movimento foram os grandes reformadores sociais e econômicos das décadas de 1930 e 1940, como T. H. Marshall, John Meynard Keynes e William Beveridge. Eles, por sua vez, levaram o novo liberalismo ainda mais longe, lançando as fundações de um Estado de Bem-Estar social abrangente.
Se o novo liberalismo foi aquilo a que podíamos chamar “a modificação de Mill” — uma adaptação pragmática às complexidades da economia moderna -, a economia austríaca foi a “rejeição de Ricardo” - uma reação fundamentalista contra a economia moderna. Os economistas austríacos acreditavam que o liberalismo se defendia melhor não através de mais redistribuição e gestão estatal, mas através da completa retirada do Estado de seu papel na economia. Recorrendo a um termo que hoje é um lugar-comum, os economistas austríacos foram os neoliberais originais. Discuto mais profundamente as ideias austríacas no capítulo 5. Em suma, os economistas austríacos atacaram as novas ideias intervencionistas em duas frentes.
Primeiro, puseram em questão a afirmação dos novos liberais de que as operações do mercado livre não adulterado punham em perigo o capitalismo, usando o contra-argumento de que o mercado tinha uma estrutura evolutiva a longo prazo que a intervenção governamental não podia alterar nem prever. Como tal, a intervenção é sempre prejudicial, seja onde for. Além disso, por produzirem distorções de mercado e maus investimentos, as intervenções governamentais eram a fonte das explosões de crédito e falências.
Os mercados eram estáveis a menos que sofressem interferências. O capitalismo não era inerentemente instável: o governo é que o fazia assim. Segundo, os economistas austríacos nunca perderam o medo do Estado Leviatã, que continuavam a considerar o inimigo supremo dos valores liberais. Especificamente, faziam a acusação de que, uma vez que fossem autorizados a intervir, os governos usariam sempre as impressoras para financiar as suas atividades. Onde os novos liberais britânicos começaram a ver que as recessões eram passíveis de melhora através de mais despesa, os economistas austríacos viam nas recessões a dor necessária da austeridade após a “festa” intervencionista. Em suma, enquanto os novos liberais e os seus herdeiros de meados do século XX abraçavam o Estado e a intervenção, os economistas austríacos, em particular Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e Joseph Schumpeter, rejeitavam inteiramente essas noções.
John Maynard Keynes assinalou uma vez que:
as ideias de economistas e de filósofos políticos, tanto quando têm razão como quando não a têm, são mais poderosas do que normalmente se pensa. Na verdade, o mundo é governado por pouco mais: homens práticos, que se creem bastante isentos de quaisquer influências intelectuais, são normalmente escravos de algum economista defunto.
As ideias de hoje acerca da austeridade não são exceção a esta regra. Os herdeiros de meados do século do novo liberalismo e da Escola Austríaca ainda definem as condições básicas do debate da austeridade oitenta anos depois. Agora, seguimos essas ideias através da Grande Depressão e do período entre-guerras, usando as obras de Keynes e de Schumpeter como nossos modelos.
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