Por Thiago Celli Moreira de Araújo, na revista CartaCapital:
No curso dos últimos meses, rios de tinta já foram despejados em críticas ao atual governo, de sorte que esforços análogos de minha parte representariam, quando muito, apenas mais uma gota d’água em favor desta significativa corrente de resistência, o que penso ser, por ora, dispensável. O desastre estava prometido, mas infelizmente não conseguimos evitá-lo por razões as mais variadas, sobre as quais não me deterei.
Estamos diante de um fato: uma parcela significativa da sociedade brasileira depositou o seu voto em favor de um candidato que se propôs a “acabar com tudo isso que tá aí”. Dito e feito, mas não como sonhavam os otimistas.
Com pouco mais de uma centena de dias no poder, é difícil prever qual será a próxima lambança, mas em meio a esse verdadeiro deserto de retórica de digestão pesada em que nos vemos perdidos, dedico-me à rememoração de um clássico da filosofia política: O Espírito das Leis (1748) de Charles-Louis de Secondat (1689-1755), a.k.a. Barão de Montesquieu.
É evidente que meu intuito não é um exame rigoroso e pormenorizado da obra, e nem mesmo uma exposição geral das considerações do autor. No entanto, para fins didáticos, basta que o eventual leitor atente para o fato de que a obra foi escrita há mais de duzentos e cinquenta anos – num tempo em que ainda não se falava em marxismo cultural, embora a tolice e a imbecilidade já fossem multimilenárias – com o objetivo de fornecer uma explicação para as leis humanas e instituições sociais.
Ciente de que as leis e instituições criadas pelos homens são, sim, falíveis, Montesquieu defendia que sua análise deveria ser executada à luz da imensa variedade de fatores aos quais elas se adaptariam: riqueza, religião, extensão geográfica, clima, solo, população etc. Tratava-se, portanto, de perscrutação de base multifatorial, em que se verificariam as intenções do legislador, a relação estabelecida entre leis e instituições, bem como a ordem de coisas sobre as quais as mesmas foram estabelecidas.
Sob tal perspectiva, o filósofo francês identificara três tipos de governo: república, monarquia e despotismo. Deixando os dois primeiros de lado, vejamos o que ele tem a nos dizer sobre esse último.
O despotismo é a forma de governo em que uma única pessoa dirige tudo com base na sua própria vontade e caprichos. Ao contrário da monarquia, em que a honra atua como princípio nuclear, o despotismo encontra seu fundamento no medo. Estes princípios estão intimamente relacionados ao papel a ser desempenhado pela educação.
Nas monarquias, ela é importante, não tanto quanto nas repúblicas democráticas, é verdade, mas, ainda assim, o é. Ela tem a função de elevar (moralmente) as nossas ambições e o valor que atribuímos a nós mesmos, fornecendo um ideal de honra que a nós interessaria aspirar, cultivando, também, a polidez necessária ao convívio entre os cidadãos.
Nos regimes despóticos, no entanto, ela seria desnecessária, ao ponto de dever ser projetada, caso exista, para rebaixar a mente e quebrar o espírito dos indivíduos. Não é útil a um déspota que seus súditos passem a compartilhar um ideal de honra, pois a ele não agradaria que os mesmos pudessem reconhecer o seu próprio valor e, quem sabe, gerar distúrbios sociais em repúdio ao governo. Não, para o déspota a educação deve ser alienante ou inexistir.
Daí se entende o porquê de, para Montesquieu, o medo ser o componente central dos regimes despóticos: à população deve ser imposto um cenário em que se extinga até o mais elementar senso de ambição. Em decorrência disso, homens e mulheres são bestializados, de maneira que instinto, obediência e castigo passem a conformar a tríade que resume a vida social.
“O princípio do governo despótico está sujeito a uma contínua corrupção, porque mesmo em sua natureza, ele é corrupto”. Mas não se desesperem: donde o medo é a tônica da política, constata-se, também, a sua intrínseca fragilidade. Afinal, um governo que depende do medo é, ao fim e ao cabo, um governo fraco, e, não por acaso, seus líderes tendem ao enfraquecimento progressivo até que sejam, enfim, derrubados.
Vejam, para que um déspota se mantenha no poder, ele deve aderir ao imperativo de aterrorizar ininterruptamente o seu povo, deixando-o num estado constante de medo. Há inúmeras formas de fazê-lo, mas a punição parece ser o mecanismo mais usual.
Todavia, o autor de O Espírito das Leis nos adverte que esse tipo de expediente tem um prazo de validade: ao longo do tempo, as punições necessárias para manter o povo sob controle vão se tornando cada vez mais duras, até que chegue o momento em que elas percam por completo o seu potencial ameaçador. Ao tratar o povo como uma espécie de massa que só cresce à base de pancadas, o déspota acaba passando do ponto e se vê numa situação em que não há alternativas.
Tendo em vista que todos os seus caprichos e desejos são imediatamente atendidos, ele “não tem ocasião para deliberar, duvidar ou raciocinar; ele tem apenas as suas vontades”. Por essa razão, ele nunca é compelido a desenvolver coisas como inteligência, caráter ou resolução.
O déspota não passa, afinal, de um menino mimado que é “naturalmente preguiçoso, voluptuoso e ignorante”. Ele não é guiado por um desejo genuíno de governar, só o que ele tem são seus desejos vulgares.
Nesse sentido, é natural que ele acabe escolhendo um vizir para poupá-lo do trabalho exaustivo que é governar, retirando-se de cena para dedicar-se à satisfação de seus prazeres.
Com a sua ausência – e, acreditem, há pessoas que estão ausentes mesmo quando se fazem presentes – multiplicam-se as intrigas contra ele, e isto ocorre pois não existem vácuos de poder e, ademais, seus súditos necessariamente têm o governo em baixíssima conta. Forjados no medo e no terror, eles não têm por que temer derrubá-lo, pois, sejamos razoáveis, o que mais ele poderia fazer contra eles?
Numa encruzilhada como esta, é possível que ele se volte para o seu exército, visando a manutenção da ordem despótica, mas ele não pode confiar neles: empoderados pelo status quo brutalizado e repressivo, não tarda até que seus generais tentem alçar o poder. É nesse momento em que ele percebe que está só; irremediavelmente só, tendo se tornado refém do próprio medo que impingiu ao seu povo.
No curso dos últimos meses, rios de tinta já foram despejados em críticas ao atual governo, de sorte que esforços análogos de minha parte representariam, quando muito, apenas mais uma gota d’água em favor desta significativa corrente de resistência, o que penso ser, por ora, dispensável. O desastre estava prometido, mas infelizmente não conseguimos evitá-lo por razões as mais variadas, sobre as quais não me deterei.
Estamos diante de um fato: uma parcela significativa da sociedade brasileira depositou o seu voto em favor de um candidato que se propôs a “acabar com tudo isso que tá aí”. Dito e feito, mas não como sonhavam os otimistas.
Com pouco mais de uma centena de dias no poder, é difícil prever qual será a próxima lambança, mas em meio a esse verdadeiro deserto de retórica de digestão pesada em que nos vemos perdidos, dedico-me à rememoração de um clássico da filosofia política: O Espírito das Leis (1748) de Charles-Louis de Secondat (1689-1755), a.k.a. Barão de Montesquieu.
É evidente que meu intuito não é um exame rigoroso e pormenorizado da obra, e nem mesmo uma exposição geral das considerações do autor. No entanto, para fins didáticos, basta que o eventual leitor atente para o fato de que a obra foi escrita há mais de duzentos e cinquenta anos – num tempo em que ainda não se falava em marxismo cultural, embora a tolice e a imbecilidade já fossem multimilenárias – com o objetivo de fornecer uma explicação para as leis humanas e instituições sociais.
Ciente de que as leis e instituições criadas pelos homens são, sim, falíveis, Montesquieu defendia que sua análise deveria ser executada à luz da imensa variedade de fatores aos quais elas se adaptariam: riqueza, religião, extensão geográfica, clima, solo, população etc. Tratava-se, portanto, de perscrutação de base multifatorial, em que se verificariam as intenções do legislador, a relação estabelecida entre leis e instituições, bem como a ordem de coisas sobre as quais as mesmas foram estabelecidas.
Sob tal perspectiva, o filósofo francês identificara três tipos de governo: república, monarquia e despotismo. Deixando os dois primeiros de lado, vejamos o que ele tem a nos dizer sobre esse último.
O despotismo é a forma de governo em que uma única pessoa dirige tudo com base na sua própria vontade e caprichos. Ao contrário da monarquia, em que a honra atua como princípio nuclear, o despotismo encontra seu fundamento no medo. Estes princípios estão intimamente relacionados ao papel a ser desempenhado pela educação.
Nas monarquias, ela é importante, não tanto quanto nas repúblicas democráticas, é verdade, mas, ainda assim, o é. Ela tem a função de elevar (moralmente) as nossas ambições e o valor que atribuímos a nós mesmos, fornecendo um ideal de honra que a nós interessaria aspirar, cultivando, também, a polidez necessária ao convívio entre os cidadãos.
Nos regimes despóticos, no entanto, ela seria desnecessária, ao ponto de dever ser projetada, caso exista, para rebaixar a mente e quebrar o espírito dos indivíduos. Não é útil a um déspota que seus súditos passem a compartilhar um ideal de honra, pois a ele não agradaria que os mesmos pudessem reconhecer o seu próprio valor e, quem sabe, gerar distúrbios sociais em repúdio ao governo. Não, para o déspota a educação deve ser alienante ou inexistir.
Daí se entende o porquê de, para Montesquieu, o medo ser o componente central dos regimes despóticos: à população deve ser imposto um cenário em que se extinga até o mais elementar senso de ambição. Em decorrência disso, homens e mulheres são bestializados, de maneira que instinto, obediência e castigo passem a conformar a tríade que resume a vida social.
“O princípio do governo despótico está sujeito a uma contínua corrupção, porque mesmo em sua natureza, ele é corrupto”. Mas não se desesperem: donde o medo é a tônica da política, constata-se, também, a sua intrínseca fragilidade. Afinal, um governo que depende do medo é, ao fim e ao cabo, um governo fraco, e, não por acaso, seus líderes tendem ao enfraquecimento progressivo até que sejam, enfim, derrubados.
Vejam, para que um déspota se mantenha no poder, ele deve aderir ao imperativo de aterrorizar ininterruptamente o seu povo, deixando-o num estado constante de medo. Há inúmeras formas de fazê-lo, mas a punição parece ser o mecanismo mais usual.
Todavia, o autor de O Espírito das Leis nos adverte que esse tipo de expediente tem um prazo de validade: ao longo do tempo, as punições necessárias para manter o povo sob controle vão se tornando cada vez mais duras, até que chegue o momento em que elas percam por completo o seu potencial ameaçador. Ao tratar o povo como uma espécie de massa que só cresce à base de pancadas, o déspota acaba passando do ponto e se vê numa situação em que não há alternativas.
Tendo em vista que todos os seus caprichos e desejos são imediatamente atendidos, ele “não tem ocasião para deliberar, duvidar ou raciocinar; ele tem apenas as suas vontades”. Por essa razão, ele nunca é compelido a desenvolver coisas como inteligência, caráter ou resolução.
O déspota não passa, afinal, de um menino mimado que é “naturalmente preguiçoso, voluptuoso e ignorante”. Ele não é guiado por um desejo genuíno de governar, só o que ele tem são seus desejos vulgares.
Nesse sentido, é natural que ele acabe escolhendo um vizir para poupá-lo do trabalho exaustivo que é governar, retirando-se de cena para dedicar-se à satisfação de seus prazeres.
Com a sua ausência – e, acreditem, há pessoas que estão ausentes mesmo quando se fazem presentes – multiplicam-se as intrigas contra ele, e isto ocorre pois não existem vácuos de poder e, ademais, seus súditos necessariamente têm o governo em baixíssima conta. Forjados no medo e no terror, eles não têm por que temer derrubá-lo, pois, sejamos razoáveis, o que mais ele poderia fazer contra eles?
Numa encruzilhada como esta, é possível que ele se volte para o seu exército, visando a manutenção da ordem despótica, mas ele não pode confiar neles: empoderados pelo status quo brutalizado e repressivo, não tarda até que seus generais tentem alçar o poder. É nesse momento em que ele percebe que está só; irremediavelmente só, tendo se tornado refém do próprio medo que impingiu ao seu povo.
A cada dia que passa, o presidente que queria ser déspota se vê mais impotente. Desejoso de autoritarismo, mas incapaz de exercer autoridade, é obrigado a mudar de posição em posição ao sabor dos acontecimentos.
Com medo de ser derrubado, pôs ao seu lado justamente as pessoas mais indicadas para a tarefa, e agora se vê desesperado, fazendo, inclusive, participações especiais em programas de televisão que lhe caem como uma luva. Longe da inteligência e perspicácia de um Barão de Montesquieu, o desastrado que queria liderar se vê na tragicômica situação de um Barão de Münchhausen, que tenta uma fuga do pântano puxando a si mesmo pelos próprios cabelos. Até quando isso pode durar, e o que virá em seguida?
Com medo de ser derrubado, pôs ao seu lado justamente as pessoas mais indicadas para a tarefa, e agora se vê desesperado, fazendo, inclusive, participações especiais em programas de televisão que lhe caem como uma luva. Longe da inteligência e perspicácia de um Barão de Montesquieu, o desastrado que queria liderar se vê na tragicômica situação de um Barão de Münchhausen, que tenta uma fuga do pântano puxando a si mesmo pelos próprios cabelos. Até quando isso pode durar, e o que virá em seguida?
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