Por Celso Amorim, na revista CartaCapital:
Política externa, como toda política, implica conversa. Conceitos e ideias se expressam por palavras. Diferentemente do que pensam alguns, palavras têm consequências. Boas ou más. Podem apontar na direção de um mundo melhor ou semear destruição. Paz e Desenvolvimento dão sentido à Diplomacia, diferenciando-a do governo sem propósito ético, que Santo Agostinho comparava a um bando de salteadores.
Até neologismos têm força. Brexit só foi entendida, até pelos que a propuseram, em toda sua extensão ex-post. “Flexibilização”, um neologismo dicionarizado, aparentemente de sentido positivo, pode vir a se revelar nefasto, quando aplicado ao Mercosul e à integração, levando-nos de volta à era em que Brasil e Argentina rivalizavam para saber quem era o “melhor amigo” da grande potência.
Uma das resoluções mais importantes propostas pelo Brasil na Comissão (hoje Conselho) de Direitos Humanos, no limiar do novo milênio, girou em torno de duas palavras. Causou apreensão dos poderosos e arrepiou sensibilidades dos privilegiados. Não envolvia, em si mesma, qualquer ação prática. Limitava-se a estabelecer que “o racismo é incompatível com a democracia”.
A mera constatação, de resto óbvia, surpreendeu algumas delegações, acostumadas a ver os países em desenvolvimento como potenciais alvos de críticas e condenações e não como autores de denúncias, ainda que sem destinatário explícito. Para agravar o incômodo, a proposta foi feita sob o capítulo dos direitos civis e políticos, considerado comochasse gardée dos países ocidentais.
Variações por vezes sutis entre palavras podem alterar profundamente a realidade. Quando a “Declaração de Doha sobre TRIPS e Saúde” (TRIPS é o acrônimo, em inglês, para o acordo sobre propriedade intelectual da Rodada Uruguai, que criou a OMC) foi negociada, em 2001, tomou-se enorme cuidado para assegurar que as “flexibilidades” contidas no acordo fossem preservadas e que dispositivos que pudessem conter ambiguidades fossem interpretados de modo favorável a políticas que visavam proteger a saúde da população, acima de interesses meramente comerciais.
A Declaração afirma, por exemplo, que TRIPS “pode e deve” (can and should) ser lido como autorizando medidas que garantam o acesso a medicamentos “para todos” (ou “todas”). Já o texto da Parceria Transpacífica (TPP), um dos muitos que despertam a cobiça e as ilusões da nossa elite, troca o termo afirmativo can pelo dubitativo may, em um jogo de palavras que, potencialmente, colocaria por terra, caso o Brasil viesse a aderir a tal acordo (ou outro semelhante), nossa política de patentes e medicamentos genéricos, posta em prática pelo governo Cardoso e aprofundada nos governos Lula e Dilma.
Pelo que se lê por aí, a ênfase nas relações Sul-Sul faria igualmente parte do “blá-blá-blá”, que teria caracterizado a política externa dos “governos petistas”, assim definidos como se deles não tivessem feito parte personalidades hoje no poder, a começar pelo presidente em exercício. O tema torna-se mais relevante à medida que se aproxima o 40º aniversário da Conferência de Buenos Aires do G-77, cujo documento final tratou, pela primeira vez de modo operativo, da cooperação entre países em desenvolvimento.
Nos muitos eventos de que tenho participado, nas áreas da saúde, do trabalho ou, mais amplamente, das relações internacionais, tenho ouvido com frequência expressões de gratidão pelo impulso dado pelo Brasil a esse tipo de cooperação.
E não apenas com declarações retóricas, mas por meio de ações práticas, como o estabelecimento de fábrica de elementos antirretrovirais em Moçambique, o apoio a uma fazenda-modelo para o aprimoramento de espécies de algodão no Mali (como parte de um projeto que abrange quatro outros países muito pobres da África Ocidental), o financiamento de um centro esportivo na Palestina, juntamente com os outros membros do fórum IBAS (Índia e África do Sul) e a criação de oficinas para treinamento profissional, com ajuda do Senai, no Timor-Leste, no Haiti e em outros países da América Latina, Caribe e da África.
Recentemente, em um evento desse tipo, encontrei estudiosos, professores, funcionários e sindicalistas (no caso do Brasil, da CUT, da Força Sindical e da UGT) de mais de 50 países. Em ambiente de paz e cooperação, técnicos de governos e elementos da sociedade civil discutiam como levar adiante projetos que envolvem aprendizado recíproco, e que, entre outras coisas, servem para aproximar povos de diferentes religiões, línguas e etnias.
Em outro diapasão, jamais se apagará da minha memória a expressão de um homem de meia-idade, que encontrei no pátio da famosa Mesquita Omíada de Damasco – a mesma que por um de seus minaretes o profeta Jesus (ou Issa) descerá à Terra no Dia do Juízo Final – pouco tempo após a assinatura da Declaração de Teerã. Acompanhado do filho, aquele indivíduo, que poderia ser um artesão ou um pequeno comerciante, parou diante de mim e disse, em um inglês pouco fluente: “Ministro? Brasil? Obrigado! Sou iraniano!”
Para aquelas pessoas cujas vidas foram salvas – ou cuja dignidade foi recuperada – mediante ações como as acima referidas, a construção de um mundo mais humano e solidário, em que o legítimo interesse nacional de cada um não implica hostilidade ou mesmo indiferença em relação ao próximo, não é mera narrativa vazia.
Até neologismos têm força. Brexit só foi entendida, até pelos que a propuseram, em toda sua extensão ex-post. “Flexibilização”, um neologismo dicionarizado, aparentemente de sentido positivo, pode vir a se revelar nefasto, quando aplicado ao Mercosul e à integração, levando-nos de volta à era em que Brasil e Argentina rivalizavam para saber quem era o “melhor amigo” da grande potência.
Uma das resoluções mais importantes propostas pelo Brasil na Comissão (hoje Conselho) de Direitos Humanos, no limiar do novo milênio, girou em torno de duas palavras. Causou apreensão dos poderosos e arrepiou sensibilidades dos privilegiados. Não envolvia, em si mesma, qualquer ação prática. Limitava-se a estabelecer que “o racismo é incompatível com a democracia”.
A mera constatação, de resto óbvia, surpreendeu algumas delegações, acostumadas a ver os países em desenvolvimento como potenciais alvos de críticas e condenações e não como autores de denúncias, ainda que sem destinatário explícito. Para agravar o incômodo, a proposta foi feita sob o capítulo dos direitos civis e políticos, considerado comochasse gardée dos países ocidentais.
Variações por vezes sutis entre palavras podem alterar profundamente a realidade. Quando a “Declaração de Doha sobre TRIPS e Saúde” (TRIPS é o acrônimo, em inglês, para o acordo sobre propriedade intelectual da Rodada Uruguai, que criou a OMC) foi negociada, em 2001, tomou-se enorme cuidado para assegurar que as “flexibilidades” contidas no acordo fossem preservadas e que dispositivos que pudessem conter ambiguidades fossem interpretados de modo favorável a políticas que visavam proteger a saúde da população, acima de interesses meramente comerciais.
A Declaração afirma, por exemplo, que TRIPS “pode e deve” (can and should) ser lido como autorizando medidas que garantam o acesso a medicamentos “para todos” (ou “todas”). Já o texto da Parceria Transpacífica (TPP), um dos muitos que despertam a cobiça e as ilusões da nossa elite, troca o termo afirmativo can pelo dubitativo may, em um jogo de palavras que, potencialmente, colocaria por terra, caso o Brasil viesse a aderir a tal acordo (ou outro semelhante), nossa política de patentes e medicamentos genéricos, posta em prática pelo governo Cardoso e aprofundada nos governos Lula e Dilma.
Pelo que se lê por aí, a ênfase nas relações Sul-Sul faria igualmente parte do “blá-blá-blá”, que teria caracterizado a política externa dos “governos petistas”, assim definidos como se deles não tivessem feito parte personalidades hoje no poder, a começar pelo presidente em exercício. O tema torna-se mais relevante à medida que se aproxima o 40º aniversário da Conferência de Buenos Aires do G-77, cujo documento final tratou, pela primeira vez de modo operativo, da cooperação entre países em desenvolvimento.
Nos muitos eventos de que tenho participado, nas áreas da saúde, do trabalho ou, mais amplamente, das relações internacionais, tenho ouvido com frequência expressões de gratidão pelo impulso dado pelo Brasil a esse tipo de cooperação.
E não apenas com declarações retóricas, mas por meio de ações práticas, como o estabelecimento de fábrica de elementos antirretrovirais em Moçambique, o apoio a uma fazenda-modelo para o aprimoramento de espécies de algodão no Mali (como parte de um projeto que abrange quatro outros países muito pobres da África Ocidental), o financiamento de um centro esportivo na Palestina, juntamente com os outros membros do fórum IBAS (Índia e África do Sul) e a criação de oficinas para treinamento profissional, com ajuda do Senai, no Timor-Leste, no Haiti e em outros países da América Latina, Caribe e da África.
Recentemente, em um evento desse tipo, encontrei estudiosos, professores, funcionários e sindicalistas (no caso do Brasil, da CUT, da Força Sindical e da UGT) de mais de 50 países. Em ambiente de paz e cooperação, técnicos de governos e elementos da sociedade civil discutiam como levar adiante projetos que envolvem aprendizado recíproco, e que, entre outras coisas, servem para aproximar povos de diferentes religiões, línguas e etnias.
Em outro diapasão, jamais se apagará da minha memória a expressão de um homem de meia-idade, que encontrei no pátio da famosa Mesquita Omíada de Damasco – a mesma que por um de seus minaretes o profeta Jesus (ou Issa) descerá à Terra no Dia do Juízo Final – pouco tempo após a assinatura da Declaração de Teerã. Acompanhado do filho, aquele indivíduo, que poderia ser um artesão ou um pequeno comerciante, parou diante de mim e disse, em um inglês pouco fluente: “Ministro? Brasil? Obrigado! Sou iraniano!”
Para aquelas pessoas cujas vidas foram salvas – ou cuja dignidade foi recuperada – mediante ações como as acima referidas, a construção de um mundo mais humano e solidário, em que o legítimo interesse nacional de cada um não implica hostilidade ou mesmo indiferença em relação ao próximo, não é mera narrativa vazia.
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