Por Igor Fuser, no jornal Brasil de Fato:
Em nenhum momento da história das relações dos Estados Unidos com a América do Sul, um presidente estadunidense proferiu uma ameaça tão agressiva quanto a que Donald Trump fez à Venezuela. Trump colocou na mesa a possibilidade de uma ação militar para depor o presidente Nicolás Maduro poucos dias depois que o governo venezuelano alcançou uma vitória política importante ao realizar com relativo sucesso a polêmica eleição de uma Assembleia Constituinte contestada pela oposição direitista. “Temos muitas opções para a Venezuela, incluindo, possivelmente, uma opção militar se isso for necessário”, disse Trump.
Para além das previsíveis reações que essa ameaça provocou – manifestações de rua e exercícios militares defensivos na Venezuela; críticas aos EUA até mesmo por parte de governantes latino-americanos alinhados com sua campanha para desestabilizar o governo chavista; a tomada de posição da Rússia contra o intervencionismo estadunidense, discretamente compartilhada pela China – três perguntas ficam no ar. Trump está mesmo disposto a cumprir essa ameaça? Em caso positivo, de que forma ocorreria essa intervenção? E quais seriam as suas consequências?
Um olhar para a história pode ajudar na busca de respostas. A América Latina, ao longo do século 20, foi a única região do mundo onde a hegemonia estadunidense se exerceu de forma incontrastável, isto é, sem enfrentar um sério desafio de alguma outra potência ou de aspirações nacionalistas locais. A incorporação de Cuba à esfera de influência soviética, durante a Guerra Fria, é claramente uma exceção.
Para eliminar governos latino-americanos contrários os seus interesses, os EUA têm utilizado diversos instrumentos de poder: articulação de golpes de estado, pressões econômicas, forças de combate ao estilo dos “contras” nicaraguenses, financiamento de atores políticos em outros países e, quando nenhum desses recursos funciona, a intervenção militar direta. Muitas vezes, a simples possibilidade de uma ação militar já se mostrou suficiente para alterar o rumo dos acontecimentos em favor das preferências de Washington.
Ainda assim, a hipótese de uma ação militar na Venezuela contém um ingrediente inédito. Em suas relações com a América Latina, os EUA sempre estabeleceram uma clara diferença entre os métodos que utilizam na América Central e no Caribe e a sua conduta perante os demais países. A maioria das nações centro-americanas já foi invadida pelo Tio Sam, algumas delas várias vezes. A ocupação militar pelos EUA também faz parte da história de Cuba, República Dominicana e Haiti. O episódio mais recente foi a invasão do Panamá em 1990, numa operação militar desfechada pelo presidente George Bush (pai) para depor e levar preso o governante panamenho Manuel Noriega, um ex-colaborador da CIA que caiu em desgraça e passou a ser acusado de narcotráfico. Porém na América do Sul o imperialismo estadunidense sempre agiu através das forças armadas e da burguesia local, sem recorrer ao desembarque dos marines.
É improvável que, mesmo em um cenário de conflito intenso na Venezuela, os EUA cheguem a despachar tropas para ocupar diretamente aquele país e tomar de assalto os seus centros de poder, como ocorreu nas invasões do Afeganistão (2001) e do Iraque (2003). O cenário mais factível é que os EUA recorram ao lançamento de mísseis para debilitar as capacidades militares venezuelanas e destruir a infraestrutura do país. Nesse caso, a ofensiva poderia ser precedida pela declaração de uma “zona de exclusão aérea”, a exemplo do expediente usado na Líbia como porta de entrada para o envolvimento da força aérea de países da Otan no apoio aos rebeldes líbios em luta contra o regime de Kadafi. Assim como na Líbia, a defesa dos “direitos humanos” serviria de pretexto para o uso da força militar.
Em uma operação desse tipo, o papel decisivo seria atribuído a forças armadas de países aliados dos EUA, em primeiro lugar a Colômbia, governada por políticos particularmente submissos aos EUA. Para que isso aconteça, contudo, são necessárias certas condições prévias. A crise política e econômica na Venezuela deve atingir um ponto de ingovernabilidade, o que permitiria a atores externos declararem uma situação de guerra civil e/ou de “crise humanitária”. E devem existir contingentes expressivos de venezuelanos engajados na luta armada contra o governo.
Até o momento, as autoridades venezuelanas têm conseguido manter sob controle o problema candente do abastecimento. A escassez é real, assim como a inflação galopante e o descontrole cambial, mas as necessidades básicas dos venezuelanos continuam a ser atendidas. No plano político, a instalação da Constituinte alcançou um sucesso inicial ao reverter a dinâmica de confronto violento impulsionada pela oposição.
Nada disso afasta definitivamente o risco de a Venezuela se tornar “o novo Iraque”, conforme alertou o jornalista Julian Assange. Os EUA e a oligarquia venezuelana não estão dispostos a aceitar a consolidação de um governo nitidamente de esquerda, anti-imperialista, comprometido com a redistribuição da riqueza e apoiado pela mobilização popular. Por isso recorrem a todos os meios políticos e econômicos, até o limite, para derrotar o chavismo, seja pela via eleitoral, seja por um golpe de estado. Na medida em que esses meios se mostram inviáveis, cresce o risco da intervenção militar externa.
É difícil imaginar maior tragédia, não só para o povo venezuelano, mas para toda a América Latina. Mergulharemos, nesse caso, num abismo de devastação material, social e simbólica comparável ao cenário apocalíptico existente em boa parte do Oriente Médio. Estariam os formuladores de política externa de Washington dispostos a cometer esse crime? Certamente que sim, conforme o próprio Trump deixou claro em sua ameaça. Nenhuma consideração ética irá deter “o país mais perigoso do mundo”, na definição precisa de Noam Chomsky. Na luta desesperada para se manter como potência hegemônica, o império estadunidense prefere a destruição dos estados insubmissos a conviver com o exercício da soberania de forma contrária aos seus interesses. É o que temos assistido na Síria, na Líbia, na Iugoslávia.
Não é esse, porém, o rumo mais provável na Venezuela. Ainda que uma ampla parcela da sua população se mostre insatisfeita com as autoridades, nota-se também um forte anseio pela paz e pela estabilidade. Os grupos de choque fascistóides que protagonizaram ações violentas nos últimos quatro meses terminaram isolados até mesmo entre os opositores. A Venezuela não está à beira de uma guerra civil, apesar do ambiente político de intensa polarização, com escassas margens para uma solução negociada.
Para situar mais uma vez a conjuntura desse país numa perspectiva ampla, vale notar que as guerras civis do pós-Guerra Fria apresentam uma diferença marcante em relação aos conflitos do período anterior. Em diversas partes do mundo, sociedades se dilaceram a partir do choque entre identidades religiosas, como no Iraque e na Síria, ou da afirmação de valores nacionalistas, como ocorre com os russos do leste da Ucrânia.
Hoje já não se veem mais guerras civis movidas pela luta de classes – a essência do conflito político venezuelano. Na Colômbia, os acordos de paz estão colocando um ponto final na última insurgência de inspiração comunista no continente. É difícil que, nesse quadro, a Venezuela se torne um Iraque sul-americano, pela simples falta de gente disposta a morrer.
Em nenhum momento da história das relações dos Estados Unidos com a América do Sul, um presidente estadunidense proferiu uma ameaça tão agressiva quanto a que Donald Trump fez à Venezuela. Trump colocou na mesa a possibilidade de uma ação militar para depor o presidente Nicolás Maduro poucos dias depois que o governo venezuelano alcançou uma vitória política importante ao realizar com relativo sucesso a polêmica eleição de uma Assembleia Constituinte contestada pela oposição direitista. “Temos muitas opções para a Venezuela, incluindo, possivelmente, uma opção militar se isso for necessário”, disse Trump.
Para além das previsíveis reações que essa ameaça provocou – manifestações de rua e exercícios militares defensivos na Venezuela; críticas aos EUA até mesmo por parte de governantes latino-americanos alinhados com sua campanha para desestabilizar o governo chavista; a tomada de posição da Rússia contra o intervencionismo estadunidense, discretamente compartilhada pela China – três perguntas ficam no ar. Trump está mesmo disposto a cumprir essa ameaça? Em caso positivo, de que forma ocorreria essa intervenção? E quais seriam as suas consequências?
Um olhar para a história pode ajudar na busca de respostas. A América Latina, ao longo do século 20, foi a única região do mundo onde a hegemonia estadunidense se exerceu de forma incontrastável, isto é, sem enfrentar um sério desafio de alguma outra potência ou de aspirações nacionalistas locais. A incorporação de Cuba à esfera de influência soviética, durante a Guerra Fria, é claramente uma exceção.
Para eliminar governos latino-americanos contrários os seus interesses, os EUA têm utilizado diversos instrumentos de poder: articulação de golpes de estado, pressões econômicas, forças de combate ao estilo dos “contras” nicaraguenses, financiamento de atores políticos em outros países e, quando nenhum desses recursos funciona, a intervenção militar direta. Muitas vezes, a simples possibilidade de uma ação militar já se mostrou suficiente para alterar o rumo dos acontecimentos em favor das preferências de Washington.
Ainda assim, a hipótese de uma ação militar na Venezuela contém um ingrediente inédito. Em suas relações com a América Latina, os EUA sempre estabeleceram uma clara diferença entre os métodos que utilizam na América Central e no Caribe e a sua conduta perante os demais países. A maioria das nações centro-americanas já foi invadida pelo Tio Sam, algumas delas várias vezes. A ocupação militar pelos EUA também faz parte da história de Cuba, República Dominicana e Haiti. O episódio mais recente foi a invasão do Panamá em 1990, numa operação militar desfechada pelo presidente George Bush (pai) para depor e levar preso o governante panamenho Manuel Noriega, um ex-colaborador da CIA que caiu em desgraça e passou a ser acusado de narcotráfico. Porém na América do Sul o imperialismo estadunidense sempre agiu através das forças armadas e da burguesia local, sem recorrer ao desembarque dos marines.
É improvável que, mesmo em um cenário de conflito intenso na Venezuela, os EUA cheguem a despachar tropas para ocupar diretamente aquele país e tomar de assalto os seus centros de poder, como ocorreu nas invasões do Afeganistão (2001) e do Iraque (2003). O cenário mais factível é que os EUA recorram ao lançamento de mísseis para debilitar as capacidades militares venezuelanas e destruir a infraestrutura do país. Nesse caso, a ofensiva poderia ser precedida pela declaração de uma “zona de exclusão aérea”, a exemplo do expediente usado na Líbia como porta de entrada para o envolvimento da força aérea de países da Otan no apoio aos rebeldes líbios em luta contra o regime de Kadafi. Assim como na Líbia, a defesa dos “direitos humanos” serviria de pretexto para o uso da força militar.
Em uma operação desse tipo, o papel decisivo seria atribuído a forças armadas de países aliados dos EUA, em primeiro lugar a Colômbia, governada por políticos particularmente submissos aos EUA. Para que isso aconteça, contudo, são necessárias certas condições prévias. A crise política e econômica na Venezuela deve atingir um ponto de ingovernabilidade, o que permitiria a atores externos declararem uma situação de guerra civil e/ou de “crise humanitária”. E devem existir contingentes expressivos de venezuelanos engajados na luta armada contra o governo.
Até o momento, as autoridades venezuelanas têm conseguido manter sob controle o problema candente do abastecimento. A escassez é real, assim como a inflação galopante e o descontrole cambial, mas as necessidades básicas dos venezuelanos continuam a ser atendidas. No plano político, a instalação da Constituinte alcançou um sucesso inicial ao reverter a dinâmica de confronto violento impulsionada pela oposição.
Nada disso afasta definitivamente o risco de a Venezuela se tornar “o novo Iraque”, conforme alertou o jornalista Julian Assange. Os EUA e a oligarquia venezuelana não estão dispostos a aceitar a consolidação de um governo nitidamente de esquerda, anti-imperialista, comprometido com a redistribuição da riqueza e apoiado pela mobilização popular. Por isso recorrem a todos os meios políticos e econômicos, até o limite, para derrotar o chavismo, seja pela via eleitoral, seja por um golpe de estado. Na medida em que esses meios se mostram inviáveis, cresce o risco da intervenção militar externa.
É difícil imaginar maior tragédia, não só para o povo venezuelano, mas para toda a América Latina. Mergulharemos, nesse caso, num abismo de devastação material, social e simbólica comparável ao cenário apocalíptico existente em boa parte do Oriente Médio. Estariam os formuladores de política externa de Washington dispostos a cometer esse crime? Certamente que sim, conforme o próprio Trump deixou claro em sua ameaça. Nenhuma consideração ética irá deter “o país mais perigoso do mundo”, na definição precisa de Noam Chomsky. Na luta desesperada para se manter como potência hegemônica, o império estadunidense prefere a destruição dos estados insubmissos a conviver com o exercício da soberania de forma contrária aos seus interesses. É o que temos assistido na Síria, na Líbia, na Iugoslávia.
Não é esse, porém, o rumo mais provável na Venezuela. Ainda que uma ampla parcela da sua população se mostre insatisfeita com as autoridades, nota-se também um forte anseio pela paz e pela estabilidade. Os grupos de choque fascistóides que protagonizaram ações violentas nos últimos quatro meses terminaram isolados até mesmo entre os opositores. A Venezuela não está à beira de uma guerra civil, apesar do ambiente político de intensa polarização, com escassas margens para uma solução negociada.
Para situar mais uma vez a conjuntura desse país numa perspectiva ampla, vale notar que as guerras civis do pós-Guerra Fria apresentam uma diferença marcante em relação aos conflitos do período anterior. Em diversas partes do mundo, sociedades se dilaceram a partir do choque entre identidades religiosas, como no Iraque e na Síria, ou da afirmação de valores nacionalistas, como ocorre com os russos do leste da Ucrânia.
Hoje já não se veem mais guerras civis movidas pela luta de classes – a essência do conflito político venezuelano. Na Colômbia, os acordos de paz estão colocando um ponto final na última insurgência de inspiração comunista no continente. É difícil que, nesse quadro, a Venezuela se torne um Iraque sul-americano, pela simples falta de gente disposta a morrer.
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