Por Gabriel Gallipolo, na revista CartaCapital:
Assisti o percuciente Mercado de Notícias, documentário de Jorge Furtado, que desvenda as técnicas das empresas produtoras de notícias na imprensa brasileira, por meio de depoimentos espantosamente sinceros de jornalistas dos principais veículos do jornalismo nacional.
O título desse texto deriva da peça de Ben Johnson, qual o documentário se baseia, e me remeteu a uma passagem de Machado de Assis sobre as dificuldades em compreender o que dizem os economistas:
“Há sempre três ou quatro pessoas (principalmente agora) que tratam de cousas financeiras e econômicas, e das causas das cousas, com tal ardor e autoridade que me oprimem. É então, que leio algum jornal, se o levo, ou rôo as unhas – vício indispensável, mas antes vicioso que ignorante. Quando não tenho jornal, nem unhas, atiro-me às tabuletas. Miro ostensivamente as tabuletas, como quem estuda o comércio e a indústria... Foi assim que, um dia, há anos, não me lembro em que loja, nem em que rua, achei uma tabuleta que dizia: Ao Planeta do Destino. Intencionalmente obscuro, este título era a nova edição da esfinge. Pensei nele, estudei-o, e não podia dar com o sentido, até que me lembrou virá-lo do avesso: Ao Destino do Planeta. Vi logo que, assim virado, tinha mais senso, porque, em suma, pode-se admitir um destino ao planeta em que pisamos. Talvez a ciência econômica e financeira seja isso mesmo, o avesso do que dizem os discutidores de bonds. Quando fiz essa reflexão exultei. Grande consolação é persuadir-se um homem de que os outros são asnos” (Machado de Assis. Obras completas, vol. III)
Ocupa espaço predominante das colunas dos “discutidores de bonds” a imperatividade da elevação da taxa de juros básica da economia, como forma de contenção do processo inflacionário que estaria prestes a fugir do controle no Brasil.
Os mecanismos pelo qual essas taxas (juros e inflação) se relacionam muitas vezes são apresentados de forma complexa, por meio de explicações sobre o engenhoso efeito do programa de metas de inflação em agentes econômicos que trabalham com expectativas racionais. Se os meandros podem se revestir de uma tecnicidade intricada ao leitor, a relação causa e efeito é estabelecida com clareza: mais juros = menos inflação.
É claro que todos queremos menos inflação, essa representa redução no poder aquisitivo, ou seja, quando vamos aos mercados nossos salários podem adquirir menos coisas, pois as mercadorias estão mais caras (ou seria o nosso salário que se desvalorizou?).
Juros e inflação são dois lados de uma mesma moeda. Ambos representam a direção e velocidade com que o valor da moeda se move ao longo do tempo. Se o dinheiro se desvaloriza frente aos ativos reais (mercadorias) temos inflação, pois precisamos dar mais dinheiro em troca da mesma quantidade de mercadorias que podíamos adquirir anteriormente.
A taxa de juros é o “preço” que concilia a vontade de manter riqueza sob a forma líquida com a quantidade de moeda disponível. Ela representa a valorização do dinheiro ao longo do tempo, como prêmio a um período de renúncia, indisponibilidade temporária da liquidez.
Aqueles que detêm riqueza sobre a forma líquida podem cobrar o “aluguel” desse dinheiro, sobre a forma de juros, daqueles que não detêm, mas necessitam hoje adquirir bens de consumo ou produção. Essa aquisição é viabilizada pelo crédito que emprenhará a renda futura dos devedores de forma a remunerar o valor do bem adquirido, acrescido de um prêmio ao credor que “alugou” a sua liquidez em troca de juros.
Taxas de juros mais altas restringem, portanto, o acesso a bens de consumo e de produção, pois encarecem o crédito que viabiliza o acesso ao dinheiro necessário à sua aquisição, tendo com resultado uma redução na demanda. É de se esperar que com o arrefecimento da demanda os preços das mercadorias venham a cair, contendo o processo inflacionário, pois todos fomos expostos à inexorável sabedoria da “lei” da oferta e da procura: se a demanda cai os preços caem, se a demanda sobe os preços sobem.
Está claro, portanto, como a elevação das taxas de juros contém a elevação dos preços (inflação) decorrente de uma alta na demanda. Mas ainda assim, não causa estranheza ao leitor de que a outra parte do caderno de economia do seu jornal, aquela que não fala sobre a inevitabilidade da elevação nas taxas de juros, se dedique a expor a crise e o desaquecimento da economia, materializado justamente na queda da demanda.
Como é possível conciliar a lógica, a recomendação de uma política monetária que se dedica a arrefecer a demanda de forma a conter a inflação, e a constatação de que a economia brasileira e, portanto, o consumo de bens de produção e consumo, está estagnada e caminhando para uma recessão (encolhimento)?
O estabelecimento automático de uma relação causal determinística entre inflação e “excesso de demanda” (sempre!), faz paralelo ao diagnóstico de virose com recomendação de analgésico, antitérmico e anti-inflamatório dos plantonistas de pronto socorro.
Frente às inevitáveis evidências de que a economia brasileira não passa por um cenário de “excesso” de demanda, não caberia uma investigação se o processo inflacionário teria outra causa?
É raro que o leitor não tenha ainda se deparado com o comentário de que os produtos e serviços com preços administrados são aqueles que sofreram a maior alta neste ano. Se enquadram nesta categoria o preço da energia, da gasolina, da água, dos transportes. Muitos estavam represados, com defasagem acumulada, e sofreram uma correção monetária concentrada neste ano.
Se esse é o caso, a elevação nas taxas de juros terá pouca capacidade de provocar uma reversão na tendência de evolução desses preços. A tentativa de reduzir a demanda e os preços das demais mercadorias da economia, compensatoriamente dentro da composição dos índices de inflação, só é possível a um custo social e econômico muito elevado. A queda nos preços dos alimentos em função da redução da demanda pode se revestir de um vocabulário técnico financeiro elegante, mas em português claro significa que as pessoas estão consumindo menos alimento (comendo menos ou pior).
Como energia, gasolina, água e transporte não são mercadorias compradas a prazo pelas famílias, sua demanda só se arrefece em caso de queda do nível de atividade e produção das empresas, portanto, consumindo menos desses produtos, o que endereça o ônus do ajuste aos mesmos lombos, redução da produção nas empresas é sinônimo de desemprego.
Complementarmente às colunas econômicas, temos os comentaristas políticos que alertam sob a urgência da implementação dessas medidas de forma a evitar a cubanização ouvenezualização (esses neologismos são sinônimos no vocabulário jornalístico atual) do Brasil.
Cabe o aviso aos viajantes com destino à Miami, se você é um recém ingresso à chamada nova classe média e como tal, apesar de adepto de discursos pró-rentista, ainda depende da venda de sua força de trabalho para obter sua subsistência, poderá encontrar no mercado de trabalho estadunidense melhores condições. Já você brasileiro cliente dos segmentos exclusivos do sistema financeiro nacional, com elevada preferência pela liquidez e acostumado a altas taxas de juros para ativos de baixíssimo risco, saiba que sua vida no país do capitalismo e do self-made man será mais difícil.
Isso porque naquela economia os ativos apresentam uma relação proporcional entre prêmio e risco (renuncia à liquidez). As taxas de juros são estabelecidas em patamares para desincentivar o entesouramento e encorajar o empreendedorismo, seja como empresário ou por meio do mercado de ações que amplia a liquidez das empresas possibilitando que estas invistam, produzam, gerando emprego e renda.
Ao analisarmos uma série histórica da evolução daquilo que os economistas chamam de prêmio de risco do mercado, a remuneração adicional (spread) que a bolsa de valores deve apresentar em relação aos títulos públicos, vemos que o Brasil, em oposição aos EUA, estabelece sua taxa de juros em um patamar que incentiva a posição de entesouramento e pune o investimento em empresas.
Preventivamente, cabe o alerta aos que concluírem que o problema é o Ibovespa que tem “andado de lado” nos últimos 10 anos, esse resultado, pelos motivos já expostos é diretamente afetado pela taxa básica de juros da economia, uma vez que só são atrativos os ativos que apresentem um prêmio superior a essa taxa.
Apesar de simples e presente no discurso de vários economistas relevantes (nacionais e estrangeiros), as ideias aqui expostas raramente são encontradas nos cadernos de economia. As lógicas que fazem com que certas ideias sejam melhor ou pior cotadas no mercado de notícias são conhecidas, mas também pouco divulgadas. A iniciativa de Jorge Furtado e a honestidade dos depoimentos da maioria dos jornalistas são louváveis e fundamentais à plena compreensão da democracia brasileira.
O título desse texto deriva da peça de Ben Johnson, qual o documentário se baseia, e me remeteu a uma passagem de Machado de Assis sobre as dificuldades em compreender o que dizem os economistas:
“Há sempre três ou quatro pessoas (principalmente agora) que tratam de cousas financeiras e econômicas, e das causas das cousas, com tal ardor e autoridade que me oprimem. É então, que leio algum jornal, se o levo, ou rôo as unhas – vício indispensável, mas antes vicioso que ignorante. Quando não tenho jornal, nem unhas, atiro-me às tabuletas. Miro ostensivamente as tabuletas, como quem estuda o comércio e a indústria... Foi assim que, um dia, há anos, não me lembro em que loja, nem em que rua, achei uma tabuleta que dizia: Ao Planeta do Destino. Intencionalmente obscuro, este título era a nova edição da esfinge. Pensei nele, estudei-o, e não podia dar com o sentido, até que me lembrou virá-lo do avesso: Ao Destino do Planeta. Vi logo que, assim virado, tinha mais senso, porque, em suma, pode-se admitir um destino ao planeta em que pisamos. Talvez a ciência econômica e financeira seja isso mesmo, o avesso do que dizem os discutidores de bonds. Quando fiz essa reflexão exultei. Grande consolação é persuadir-se um homem de que os outros são asnos” (Machado de Assis. Obras completas, vol. III)
Ocupa espaço predominante das colunas dos “discutidores de bonds” a imperatividade da elevação da taxa de juros básica da economia, como forma de contenção do processo inflacionário que estaria prestes a fugir do controle no Brasil.
Os mecanismos pelo qual essas taxas (juros e inflação) se relacionam muitas vezes são apresentados de forma complexa, por meio de explicações sobre o engenhoso efeito do programa de metas de inflação em agentes econômicos que trabalham com expectativas racionais. Se os meandros podem se revestir de uma tecnicidade intricada ao leitor, a relação causa e efeito é estabelecida com clareza: mais juros = menos inflação.
É claro que todos queremos menos inflação, essa representa redução no poder aquisitivo, ou seja, quando vamos aos mercados nossos salários podem adquirir menos coisas, pois as mercadorias estão mais caras (ou seria o nosso salário que se desvalorizou?).
Juros e inflação são dois lados de uma mesma moeda. Ambos representam a direção e velocidade com que o valor da moeda se move ao longo do tempo. Se o dinheiro se desvaloriza frente aos ativos reais (mercadorias) temos inflação, pois precisamos dar mais dinheiro em troca da mesma quantidade de mercadorias que podíamos adquirir anteriormente.
A taxa de juros é o “preço” que concilia a vontade de manter riqueza sob a forma líquida com a quantidade de moeda disponível. Ela representa a valorização do dinheiro ao longo do tempo, como prêmio a um período de renúncia, indisponibilidade temporária da liquidez.
Aqueles que detêm riqueza sobre a forma líquida podem cobrar o “aluguel” desse dinheiro, sobre a forma de juros, daqueles que não detêm, mas necessitam hoje adquirir bens de consumo ou produção. Essa aquisição é viabilizada pelo crédito que emprenhará a renda futura dos devedores de forma a remunerar o valor do bem adquirido, acrescido de um prêmio ao credor que “alugou” a sua liquidez em troca de juros.
Taxas de juros mais altas restringem, portanto, o acesso a bens de consumo e de produção, pois encarecem o crédito que viabiliza o acesso ao dinheiro necessário à sua aquisição, tendo com resultado uma redução na demanda. É de se esperar que com o arrefecimento da demanda os preços das mercadorias venham a cair, contendo o processo inflacionário, pois todos fomos expostos à inexorável sabedoria da “lei” da oferta e da procura: se a demanda cai os preços caem, se a demanda sobe os preços sobem.
Está claro, portanto, como a elevação das taxas de juros contém a elevação dos preços (inflação) decorrente de uma alta na demanda. Mas ainda assim, não causa estranheza ao leitor de que a outra parte do caderno de economia do seu jornal, aquela que não fala sobre a inevitabilidade da elevação nas taxas de juros, se dedique a expor a crise e o desaquecimento da economia, materializado justamente na queda da demanda.
Como é possível conciliar a lógica, a recomendação de uma política monetária que se dedica a arrefecer a demanda de forma a conter a inflação, e a constatação de que a economia brasileira e, portanto, o consumo de bens de produção e consumo, está estagnada e caminhando para uma recessão (encolhimento)?
O estabelecimento automático de uma relação causal determinística entre inflação e “excesso de demanda” (sempre!), faz paralelo ao diagnóstico de virose com recomendação de analgésico, antitérmico e anti-inflamatório dos plantonistas de pronto socorro.
Frente às inevitáveis evidências de que a economia brasileira não passa por um cenário de “excesso” de demanda, não caberia uma investigação se o processo inflacionário teria outra causa?
É raro que o leitor não tenha ainda se deparado com o comentário de que os produtos e serviços com preços administrados são aqueles que sofreram a maior alta neste ano. Se enquadram nesta categoria o preço da energia, da gasolina, da água, dos transportes. Muitos estavam represados, com defasagem acumulada, e sofreram uma correção monetária concentrada neste ano.
Se esse é o caso, a elevação nas taxas de juros terá pouca capacidade de provocar uma reversão na tendência de evolução desses preços. A tentativa de reduzir a demanda e os preços das demais mercadorias da economia, compensatoriamente dentro da composição dos índices de inflação, só é possível a um custo social e econômico muito elevado. A queda nos preços dos alimentos em função da redução da demanda pode se revestir de um vocabulário técnico financeiro elegante, mas em português claro significa que as pessoas estão consumindo menos alimento (comendo menos ou pior).
Como energia, gasolina, água e transporte não são mercadorias compradas a prazo pelas famílias, sua demanda só se arrefece em caso de queda do nível de atividade e produção das empresas, portanto, consumindo menos desses produtos, o que endereça o ônus do ajuste aos mesmos lombos, redução da produção nas empresas é sinônimo de desemprego.
Complementarmente às colunas econômicas, temos os comentaristas políticos que alertam sob a urgência da implementação dessas medidas de forma a evitar a cubanização ouvenezualização (esses neologismos são sinônimos no vocabulário jornalístico atual) do Brasil.
Cabe o aviso aos viajantes com destino à Miami, se você é um recém ingresso à chamada nova classe média e como tal, apesar de adepto de discursos pró-rentista, ainda depende da venda de sua força de trabalho para obter sua subsistência, poderá encontrar no mercado de trabalho estadunidense melhores condições. Já você brasileiro cliente dos segmentos exclusivos do sistema financeiro nacional, com elevada preferência pela liquidez e acostumado a altas taxas de juros para ativos de baixíssimo risco, saiba que sua vida no país do capitalismo e do self-made man será mais difícil.
Isso porque naquela economia os ativos apresentam uma relação proporcional entre prêmio e risco (renuncia à liquidez). As taxas de juros são estabelecidas em patamares para desincentivar o entesouramento e encorajar o empreendedorismo, seja como empresário ou por meio do mercado de ações que amplia a liquidez das empresas possibilitando que estas invistam, produzam, gerando emprego e renda.
Ao analisarmos uma série histórica da evolução daquilo que os economistas chamam de prêmio de risco do mercado, a remuneração adicional (spread) que a bolsa de valores deve apresentar em relação aos títulos públicos, vemos que o Brasil, em oposição aos EUA, estabelece sua taxa de juros em um patamar que incentiva a posição de entesouramento e pune o investimento em empresas.
Preventivamente, cabe o alerta aos que concluírem que o problema é o Ibovespa que tem “andado de lado” nos últimos 10 anos, esse resultado, pelos motivos já expostos é diretamente afetado pela taxa básica de juros da economia, uma vez que só são atrativos os ativos que apresentem um prêmio superior a essa taxa.
Apesar de simples e presente no discurso de vários economistas relevantes (nacionais e estrangeiros), as ideias aqui expostas raramente são encontradas nos cadernos de economia. As lógicas que fazem com que certas ideias sejam melhor ou pior cotadas no mercado de notícias são conhecidas, mas também pouco divulgadas. A iniciativa de Jorge Furtado e a honestidade dos depoimentos da maioria dos jornalistas são louváveis e fundamentais à plena compreensão da democracia brasileira.
1 comentários:
EXCELENTE MATÉRIA ESCLARECEDORA.
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