Manifestação de mulheres pela legalização do aborto no Rio de Janeiro, em 2016 |
Há mais de uma década o aborto bate à porta da Suprema Corte brasileira. Em 2004, o primeiro caso foi de um habeas corpus, descrito entre os juristas como um “caso concreto”, isto é, situações em que por trás dos papéis há pessoas. Gabriela Cordeiro era uma jovem mulher, grávida de um feto com anencefalia, que pedia o direito ao aborto. Ela foi inicialmente à justiça de sua cidade e dali teve início uma longa peregrinação. Quando os ministros da Suprema Corte se reuniram para decidir se poderia ou não haver direito ao aborto para Gabriela, o parto já havia acontecido e um atestado de óbito indicava a breve sobrevida da filha.
Antes de Gabriela algumas milhares de mulheres já haviam recorrido às Cortes para autorizações individuais para o aborto em caso de anencefalia ou de outras malformações incompatíveis com a vida. Como cada mulher dependia da autorização judicial, os processos podiam demorar anos. E a gravidez tem o seu tempo, esticado para as mulheres que esperam, mas incompatível com a morosidade da justiça. Quando o drama de Gabriela alcançou a Corte mais importante do país, havia “perda de objeto”, uma descrição estranha para um sofrimento tão íntimo. Não havia mais o que decidir, pois a crueldade de quem ignora o calvário de uma mulher havia sido mais forte.
O primeiro habeas corpus da história da jurisprudência brasileira na Corte Suprema iniciava um percurso de permanentes provocações sobre a questão do aborto. No mesmo ano, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS) apresentou uma “ação abstrata” à Corte – diferentemente de Gabriela, não havia mais um rosto ou certa angústia singularizada, mas uma ação que falava de todas as mulheres que, pelo acaso da natureza, experimentassem a gravidez de um feto com anencefalia como tortura. O advogado da ação foi o atual ministro Luís Roberto Barroso e o caso esperou oito anos para ser decidido.
O caso abstrato de anencefalia ganhou rostos, no entanto. A ação foi proposta e o ministro relator Marco Aurélio Mello concedeu uma liminar, isto é, uma autorização provisória enquanto o caso esperava ser julgado pela Corte. Ministro Marco Aurélio entendia que havia um urgência em curso, a de deixar as mulheres livres do sofrimento torturante de aguardar um luto ao invés de preparar um enxoval para o futuro filho. A liminar garantiu que algumas dezenas de mulheres interrompessem a gestação sem a peregrinação por Cortes ou hospitais. O documentário “Quem são elas?” contou a história de cinco mulheres protegidas pela liminar da Suprema Corte em 2004.
Talvez mais impactante que conhecer, ver e ouvir a narrativa de dor protegida pela decisão da Corte em “Quem são elas?”, foi acompanhar o longo dia seguinte de Severina, uma agricultora do interior de Pernambuco. Severina não é uma personagem da literatura, mas é um exemplo de como a arte imita a vida. É mulher verdadeira, internada no mesmo dia em que a Corte cassou a liminar. Estava grávida de poucas semanas, o feto havia sido diagnosticado com anencefalia. Católica e já mãe de um filho, Severina e Rosivaldo, seu marido, preferiram interromper a gestação. Sem a liminar, os médicos pediram que voltasse para o sítio em Chã Grade e buscasse uma autorização em sua cidade.
Severina repetiu o calvário de Gabriela, e aos sete meses de gravidez a justiça local autorizou o procedimento médico. O filho nasceu morto e a abstração da ação pode ser vivida pela concretude de cada experiência no filme “Uma história Severina”. O documentário tem início com o julgamento da Corte pela cassação da liminar: ali estavam os ministros, tão fortes e distantes de Severina, se perguntando sobre o início da vida, direitos de nascer e morrer, ou sobre a metafísica da existência. Distante dali, estavam Severina e Rosivaldo, confessando-se ao padre, explicando à família e aos vizinhos que a barriga crescia, mas o filho não viveria.
Oito anos depois de a ação sem rosto ter chegado à Suprema Corte, Severina e Rosivaldo sentaram-se na primeira fileira da sala de julgamento. Acompanharam as abstrações vividas por eles como memória de um intenso sofrimento: Severina não foi ao enterro do filho, Rosivaldo só conheceu a dor do parto de Severina pelo filme. Ouviram com atenção as certezas com que os ministros falavam da gravidez como um direito ou um dever das mulheres. Eles só queriam ter tido o direito de decidir sem tanto peregrinar ou esperar, sem ter que “juntar tanto papel”, como dizia Rosivaldo.
Em 2012, o aborto por anencefalia passava a ser um direito no Brasil. Houve quem considerasse a decisão tímida demais para o escândalo de saúde pública que é o aborto ilegal no país; houve quem considerasse a decisão ousada demais por fazer a Suprema Corte falar de aborto ao invés do Congresso Nacional. Entre timidez e ousadia, outro caso havia chegado aos olhos dos ministros enquanto a anencefalia esperava ser decidida, e certamente muito mais provocante na pergunta sobre o início da vida que movia a metafísica judicial sobre o aborto: o de células-tronco embrionárias.
O Congresso Nacional havia aprovado uma lei que autorizava a pesquisa com células-tronco embrionárias para fins de pesquisa biomédica. Imediatamente após a aprovação da lei, o então Procurador-Geral da República, um católico fervoroso, inconformado com os efeitos da lei para o que considerava ser uma violação da vida desde a concepção, contestou a constitucionalidade da lei. Em 2005, uma nova ação abstrata bateu à porta da Suprema Corte e, agora, a pergunta era muito mais abrangente que a do caso de anencefalia apresentada no ano anterior. A urgência das células-tronco era a promessa da ciência para a salvação, por isso o caso da anencefalia repousou na Corte.
Essa é uma história pouco conhecida. Anencefalia mobilizou a opinião pública pelo escândalo moral do aborto, mas a ação de células-tronco provocou a Corte com uma pergunta muito mais profunda – quando a vida humana teria início para a Constituição Federal? O Procurador-Geral buscava ser mais abrangente que a Constituição: para ele, a proteção à vida como um fundamento constitucional tinha início na fecundação, assim, não só a pesquisa com células-tronco deveria ser proibida, como também o aborto por estupro ou risco de vida para a mulher grávida.
Havia um fosso profundo na ação de células-tronco. A opinião pública se movia como um caso de avanço ou retrocesso da ciência, movimentos de pessoas com doenças genéticas e deficiências apoiavam os cientistas, pois viam promessas da pesquisa para suas angústias do corpo, mas a pergunta de fundo escondia outra. Se a Suprema Corte respondesse à pergunta “quando a vida humana tem início?”, efeitos imediatos teriam para outras questões fundamentais, entre elas a anencefalia.
A ação de células-tronco foi decidida em 2008, e as primeiras audiências públicas da história da Corte foram convocadas. Temas diversos já haviam sido enfrentados pelos ministros, mas foi com a anencefalia e as células-tronco que a Corte se moveu para ouvir especialistas antes da tomada de decisão. Se, por um lado, há algo de transparente e louvável na iniciativa de melhor informar-se para decidir, as audiências públicas eram também um termômetro moral dos casos. Corrupção, refugiados, sistema prisional ou direitos sociais foram temas enfrentados pela Suprema Corte sem convocação de audiências públicas.
A Suprema Corte não disse quando a vida humana tinha início, ao contrário, muitos votos afirmaram não ser esta uma inquietação jurídica. Nos dois casos, a Corte foi coerente nas decisões – nem o aborto por anencefalia tampouco a pesquisa com células-tronco violariam a Constituição Federal. Ao contrário, suas garantias representavam interpretações corretas dos preceitos fundamentais do direito à saúde, à dignidade, à vida, à liberdade de opinião e pesquisa, e a estar livre de discriminação e tortura.
Quatro anos se passaram da decisão da ação de anencefalia e o país enfrentava uma das maiores crises políticas de sua história recente – escândalos de corrupção, impeachment da presidenta Dilma, e uma epidemia sem precedentes para a saúde global. O nordeste brasileiro transformou-se no epicentro da epidemia do vírus zika, e a hipótese da transmissão vertical do vírus na gravidez se anunciava como cientificamente razoável pela Organização Mundial de Saúde. Milhares de mulheres em risco de adoecimento pelo zika vivenciavam intenso sofrimento mental pelos riscos na gravidez. Se havia um anúncio de emergência global pela nova doença, a urgência estava em curso no Brasil: o aborto por sofrimento mental da mulher não é autorizado como excludente de ilicitude pelo Código Penal.
O aborto é um fenômeno comum à vida das mulheres brasileiras. A Pesquisa Nacional do Aborto de 2016 mostrou que em torno de uma em cada cinco mulheres, aos 40 anos, já abortou. Em 2015, foram 503 mil mulheres que abortaram: uma mulher por minuto no Brasil. Do total de mulheres que já fizeram aborto, hoje, estima-se que mais de três milhões tenham filho – essas seriam famílias cujas mães já teriam estado presas ou estariam presas neste momento. Uma face assustadoramente feminina tomaria o sistema prisional por mulheres presas por aborto.
A epidemia de zika lançou uma camada de maior fragilização a uma realidade anterior à chegada do vírus ao país – a vida das mulheres é, cotidianamente, fragilizada pela ilegalidade do aborto. Uma nova doença com riscos imediatos à saúde reprodutiva das mulheres se transformou em uma armadilha perversa para as mulheres mais vulneráveis: a criminalização do aborto não impõe somente restrições para o direito de escolher quando ter filhos, mas carrega consigo uma estigmatização da saúde reprodutiva. As mulheres em risco ao vírus zika carecem de informação, acesso a métodos de planejamento familiar ou repelentes contra o mosquito e esperam por proteções para o cuidado dos filhos afetados pela síndrome congênita.
As estimativas epidemiológicas indicam que o zika se manterá conosco. Houve uma redução do número de casos, mas um segundo pico se anuncia para um futuro próximo quando uma nova geração de meninas não estará imune à doença. O país optou por não mais falar da doença, não garantir políticas específicas às crianças e famílias: é como se não houvesse mais sequelas deixadas nos direitos e nas vidas por uma epidemia para a qual ainda somos o epicentro no mundo.
Em agosto de 2016, uma nova ação abstrata bateu à porta da Suprema Corte sobre aborto. Desta vez com a urgência da epidemia: uma ação proposta pela Associação Nacional dos Defensores Públicos pedia que um conjunto amplo de direitos violados pela epidemia fossem protegidos por uma ação urgente da Corte. Infelizmente, o caso chegou a ir para pauta, mas foi silenciado por temas considerados mais urgentes à vida política brasileira, como a persistência corrupção política.
O silêncio da Corte provocou pela primeira vez na história do país que um partido político, Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), apresentasse uma ação de descriminalização do aborto à Suprema Corte. A ação é abstrata, ainda sem rosto, apesar de uma multidão ser por ela representada, e foi apresentada no dia 6 de março de 2017. O pedido liminar demanda uma resposta rápida da relatora do caso, ministra Rosa Weber. A cada dia mais de 1.300 mulheres fazem aborto no Brasil; há uma emergência em curso na espera da burocracia.
A ação, por um lado, segue os passos dos casos anteriores – fez uso das decisões da anencefalia e de células-tronco para sustentar que a criminalização do aborto viola a dignidade da pessoa humana das mulheres. Mencionou ainda decisão de dezembro de 2016 de uma das turmas da Suprema Corte em que alguns ministros anunciaram ser preciso descriminalizar o aborto no Brasil. Dignidade não é princípio religioso na ação, apesar de seu diálogo aberto com as tradições religiosas que resistem à mudança da lei penal no país. Dignidade é o que garante a possibilidade do exercício de outros direitos fundamentais da Constituição Federal: exercer a liberdade, viver a cidadania, experimentar a saúde, estar livre de tortura – todos foram princípios elencados pela peça do PSOL para mostrar como são dimensões da vida digna às mulheres.
Há quem pergunte se este seria o momento para uma ação de descriminalização do aborto no Brasil. Minha inquietação é ao revés: por que este não seria o momento? Sabemos que as mulheres fazem aborto, que muitas mulheres arriscam a própria vida, que algumas delas, como foram Jandira e Elizangela, morrem pela clandestinidade. Sabemos que o tempo político não é o tempo das mulheres comuns – talvez, por isso, nunca tenha sido o tempo de uma ação tão justa e clara como esta. Ter sido um partido político a apresentar a demanda tem um sentido importante como um marco para o longo acúmulo de litígio sobre aborto na Suprema Corte brasileira. É a democracia se movendo no diálogo entre os poderes com suas forças legítimas e angustiadas pela urgência da multidão de mulheres anônimas.
* Debora Diniz é professora na Universidade de Brasília. Pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.
Antes de Gabriela algumas milhares de mulheres já haviam recorrido às Cortes para autorizações individuais para o aborto em caso de anencefalia ou de outras malformações incompatíveis com a vida. Como cada mulher dependia da autorização judicial, os processos podiam demorar anos. E a gravidez tem o seu tempo, esticado para as mulheres que esperam, mas incompatível com a morosidade da justiça. Quando o drama de Gabriela alcançou a Corte mais importante do país, havia “perda de objeto”, uma descrição estranha para um sofrimento tão íntimo. Não havia mais o que decidir, pois a crueldade de quem ignora o calvário de uma mulher havia sido mais forte.
O primeiro habeas corpus da história da jurisprudência brasileira na Corte Suprema iniciava um percurso de permanentes provocações sobre a questão do aborto. No mesmo ano, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS) apresentou uma “ação abstrata” à Corte – diferentemente de Gabriela, não havia mais um rosto ou certa angústia singularizada, mas uma ação que falava de todas as mulheres que, pelo acaso da natureza, experimentassem a gravidez de um feto com anencefalia como tortura. O advogado da ação foi o atual ministro Luís Roberto Barroso e o caso esperou oito anos para ser decidido.
O caso abstrato de anencefalia ganhou rostos, no entanto. A ação foi proposta e o ministro relator Marco Aurélio Mello concedeu uma liminar, isto é, uma autorização provisória enquanto o caso esperava ser julgado pela Corte. Ministro Marco Aurélio entendia que havia um urgência em curso, a de deixar as mulheres livres do sofrimento torturante de aguardar um luto ao invés de preparar um enxoval para o futuro filho. A liminar garantiu que algumas dezenas de mulheres interrompessem a gestação sem a peregrinação por Cortes ou hospitais. O documentário “Quem são elas?” contou a história de cinco mulheres protegidas pela liminar da Suprema Corte em 2004.
Talvez mais impactante que conhecer, ver e ouvir a narrativa de dor protegida pela decisão da Corte em “Quem são elas?”, foi acompanhar o longo dia seguinte de Severina, uma agricultora do interior de Pernambuco. Severina não é uma personagem da literatura, mas é um exemplo de como a arte imita a vida. É mulher verdadeira, internada no mesmo dia em que a Corte cassou a liminar. Estava grávida de poucas semanas, o feto havia sido diagnosticado com anencefalia. Católica e já mãe de um filho, Severina e Rosivaldo, seu marido, preferiram interromper a gestação. Sem a liminar, os médicos pediram que voltasse para o sítio em Chã Grade e buscasse uma autorização em sua cidade.
Severina repetiu o calvário de Gabriela, e aos sete meses de gravidez a justiça local autorizou o procedimento médico. O filho nasceu morto e a abstração da ação pode ser vivida pela concretude de cada experiência no filme “Uma história Severina”. O documentário tem início com o julgamento da Corte pela cassação da liminar: ali estavam os ministros, tão fortes e distantes de Severina, se perguntando sobre o início da vida, direitos de nascer e morrer, ou sobre a metafísica da existência. Distante dali, estavam Severina e Rosivaldo, confessando-se ao padre, explicando à família e aos vizinhos que a barriga crescia, mas o filho não viveria.
Oito anos depois de a ação sem rosto ter chegado à Suprema Corte, Severina e Rosivaldo sentaram-se na primeira fileira da sala de julgamento. Acompanharam as abstrações vividas por eles como memória de um intenso sofrimento: Severina não foi ao enterro do filho, Rosivaldo só conheceu a dor do parto de Severina pelo filme. Ouviram com atenção as certezas com que os ministros falavam da gravidez como um direito ou um dever das mulheres. Eles só queriam ter tido o direito de decidir sem tanto peregrinar ou esperar, sem ter que “juntar tanto papel”, como dizia Rosivaldo.
Em 2012, o aborto por anencefalia passava a ser um direito no Brasil. Houve quem considerasse a decisão tímida demais para o escândalo de saúde pública que é o aborto ilegal no país; houve quem considerasse a decisão ousada demais por fazer a Suprema Corte falar de aborto ao invés do Congresso Nacional. Entre timidez e ousadia, outro caso havia chegado aos olhos dos ministros enquanto a anencefalia esperava ser decidida, e certamente muito mais provocante na pergunta sobre o início da vida que movia a metafísica judicial sobre o aborto: o de células-tronco embrionárias.
O Congresso Nacional havia aprovado uma lei que autorizava a pesquisa com células-tronco embrionárias para fins de pesquisa biomédica. Imediatamente após a aprovação da lei, o então Procurador-Geral da República, um católico fervoroso, inconformado com os efeitos da lei para o que considerava ser uma violação da vida desde a concepção, contestou a constitucionalidade da lei. Em 2005, uma nova ação abstrata bateu à porta da Suprema Corte e, agora, a pergunta era muito mais abrangente que a do caso de anencefalia apresentada no ano anterior. A urgência das células-tronco era a promessa da ciência para a salvação, por isso o caso da anencefalia repousou na Corte.
Essa é uma história pouco conhecida. Anencefalia mobilizou a opinião pública pelo escândalo moral do aborto, mas a ação de células-tronco provocou a Corte com uma pergunta muito mais profunda – quando a vida humana teria início para a Constituição Federal? O Procurador-Geral buscava ser mais abrangente que a Constituição: para ele, a proteção à vida como um fundamento constitucional tinha início na fecundação, assim, não só a pesquisa com células-tronco deveria ser proibida, como também o aborto por estupro ou risco de vida para a mulher grávida.
Havia um fosso profundo na ação de células-tronco. A opinião pública se movia como um caso de avanço ou retrocesso da ciência, movimentos de pessoas com doenças genéticas e deficiências apoiavam os cientistas, pois viam promessas da pesquisa para suas angústias do corpo, mas a pergunta de fundo escondia outra. Se a Suprema Corte respondesse à pergunta “quando a vida humana tem início?”, efeitos imediatos teriam para outras questões fundamentais, entre elas a anencefalia.
A ação de células-tronco foi decidida em 2008, e as primeiras audiências públicas da história da Corte foram convocadas. Temas diversos já haviam sido enfrentados pelos ministros, mas foi com a anencefalia e as células-tronco que a Corte se moveu para ouvir especialistas antes da tomada de decisão. Se, por um lado, há algo de transparente e louvável na iniciativa de melhor informar-se para decidir, as audiências públicas eram também um termômetro moral dos casos. Corrupção, refugiados, sistema prisional ou direitos sociais foram temas enfrentados pela Suprema Corte sem convocação de audiências públicas.
A Suprema Corte não disse quando a vida humana tinha início, ao contrário, muitos votos afirmaram não ser esta uma inquietação jurídica. Nos dois casos, a Corte foi coerente nas decisões – nem o aborto por anencefalia tampouco a pesquisa com células-tronco violariam a Constituição Federal. Ao contrário, suas garantias representavam interpretações corretas dos preceitos fundamentais do direito à saúde, à dignidade, à vida, à liberdade de opinião e pesquisa, e a estar livre de discriminação e tortura.
Quatro anos se passaram da decisão da ação de anencefalia e o país enfrentava uma das maiores crises políticas de sua história recente – escândalos de corrupção, impeachment da presidenta Dilma, e uma epidemia sem precedentes para a saúde global. O nordeste brasileiro transformou-se no epicentro da epidemia do vírus zika, e a hipótese da transmissão vertical do vírus na gravidez se anunciava como cientificamente razoável pela Organização Mundial de Saúde. Milhares de mulheres em risco de adoecimento pelo zika vivenciavam intenso sofrimento mental pelos riscos na gravidez. Se havia um anúncio de emergência global pela nova doença, a urgência estava em curso no Brasil: o aborto por sofrimento mental da mulher não é autorizado como excludente de ilicitude pelo Código Penal.
O aborto é um fenômeno comum à vida das mulheres brasileiras. A Pesquisa Nacional do Aborto de 2016 mostrou que em torno de uma em cada cinco mulheres, aos 40 anos, já abortou. Em 2015, foram 503 mil mulheres que abortaram: uma mulher por minuto no Brasil. Do total de mulheres que já fizeram aborto, hoje, estima-se que mais de três milhões tenham filho – essas seriam famílias cujas mães já teriam estado presas ou estariam presas neste momento. Uma face assustadoramente feminina tomaria o sistema prisional por mulheres presas por aborto.
A epidemia de zika lançou uma camada de maior fragilização a uma realidade anterior à chegada do vírus ao país – a vida das mulheres é, cotidianamente, fragilizada pela ilegalidade do aborto. Uma nova doença com riscos imediatos à saúde reprodutiva das mulheres se transformou em uma armadilha perversa para as mulheres mais vulneráveis: a criminalização do aborto não impõe somente restrições para o direito de escolher quando ter filhos, mas carrega consigo uma estigmatização da saúde reprodutiva. As mulheres em risco ao vírus zika carecem de informação, acesso a métodos de planejamento familiar ou repelentes contra o mosquito e esperam por proteções para o cuidado dos filhos afetados pela síndrome congênita.
As estimativas epidemiológicas indicam que o zika se manterá conosco. Houve uma redução do número de casos, mas um segundo pico se anuncia para um futuro próximo quando uma nova geração de meninas não estará imune à doença. O país optou por não mais falar da doença, não garantir políticas específicas às crianças e famílias: é como se não houvesse mais sequelas deixadas nos direitos e nas vidas por uma epidemia para a qual ainda somos o epicentro no mundo.
Em agosto de 2016, uma nova ação abstrata bateu à porta da Suprema Corte sobre aborto. Desta vez com a urgência da epidemia: uma ação proposta pela Associação Nacional dos Defensores Públicos pedia que um conjunto amplo de direitos violados pela epidemia fossem protegidos por uma ação urgente da Corte. Infelizmente, o caso chegou a ir para pauta, mas foi silenciado por temas considerados mais urgentes à vida política brasileira, como a persistência corrupção política.
O silêncio da Corte provocou pela primeira vez na história do país que um partido político, Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), apresentasse uma ação de descriminalização do aborto à Suprema Corte. A ação é abstrata, ainda sem rosto, apesar de uma multidão ser por ela representada, e foi apresentada no dia 6 de março de 2017. O pedido liminar demanda uma resposta rápida da relatora do caso, ministra Rosa Weber. A cada dia mais de 1.300 mulheres fazem aborto no Brasil; há uma emergência em curso na espera da burocracia.
A ação, por um lado, segue os passos dos casos anteriores – fez uso das decisões da anencefalia e de células-tronco para sustentar que a criminalização do aborto viola a dignidade da pessoa humana das mulheres. Mencionou ainda decisão de dezembro de 2016 de uma das turmas da Suprema Corte em que alguns ministros anunciaram ser preciso descriminalizar o aborto no Brasil. Dignidade não é princípio religioso na ação, apesar de seu diálogo aberto com as tradições religiosas que resistem à mudança da lei penal no país. Dignidade é o que garante a possibilidade do exercício de outros direitos fundamentais da Constituição Federal: exercer a liberdade, viver a cidadania, experimentar a saúde, estar livre de tortura – todos foram princípios elencados pela peça do PSOL para mostrar como são dimensões da vida digna às mulheres.
Há quem pergunte se este seria o momento para uma ação de descriminalização do aborto no Brasil. Minha inquietação é ao revés: por que este não seria o momento? Sabemos que as mulheres fazem aborto, que muitas mulheres arriscam a própria vida, que algumas delas, como foram Jandira e Elizangela, morrem pela clandestinidade. Sabemos que o tempo político não é o tempo das mulheres comuns – talvez, por isso, nunca tenha sido o tempo de uma ação tão justa e clara como esta. Ter sido um partido político a apresentar a demanda tem um sentido importante como um marco para o longo acúmulo de litígio sobre aborto na Suprema Corte brasileira. É a democracia se movendo no diálogo entre os poderes com suas forças legítimas e angustiadas pela urgência da multidão de mulheres anônimas.
* Debora Diniz é professora na Universidade de Brasília. Pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.
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