O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) acaba de divulgar seu relatório global, com as informações relativas ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O documento apresenta as estatísticas para um total de 189 países, com dados coletados para o ano de 2019.
Uma das maiores dificuldades existentes no campo da teoria econômica tradicional se refere a mecanismos e metodologias para avaliar, de forma abrangente e multidisciplinar, as capacidades de um determinado país. A informação que foi utilizada durante décadas resumia-se àquilo que era extraído da contabilidade nacional: o Produto Interno Bruto, o famoso PIB. Ocorre que tal número, tomado de forma isolada e a frio, pouco contribui para expressar e analisar a complexidade da realidade social, cultural, política e mesmo econômica de um país.
É compreensível que países com população mais reduzida e menor extensão territorial, por exemplo, venham a apresentar em média PIBs mais modestos. Afinal, esse indicador pretende refletir tudo aquilo que foi produzido sob a forma de bens e serviços em uma sociedade ao longo de um determinado período. Porém, o fator populacional não resolve toda a questão, pois ele depende da capacidade instalada de produção. Se não fosse assim, a China e a Índia deveriam ter há décadas os maiores PIBs do mundo. E o primeiro só agora começa a alcançar os Estados Unidos, em razão de seu elevado desenvolvimento econômico recente e não apenas por conta da condição de nação mais populosa do planeta.
Indicadores de desenvolvimento econômico e social
Em razão dessa dificuldade, começaram a surgir novos indicadores, com o objetivo de comparar a evolução de um determinado país no tempo e também permitir algum grau de comparação entre nações diferentes. O PIB per capita tenta avançar por esse caminho, ao dividir a capacidade de produção pelo número de habitantes. Porém, ainda assim permanecem dúvidas a respeito da qualidade de vida da população de tal país. E também não são esclarecidas questões a respeito de como os diferentes grupos sociais se apropriam daquilo o que é produzido. Ou seja, o PIB/capita também se revela pouco apropriado para compreendermos a questão das desigualdades no interior de uma formação social.
Assim foram sendo construídos novas famílias de indicadores. O IDH nasce desse tipo de insuficiência, a partir dos trabalhos elaborados ao longo das décadas de 1980 e 1990 por alguns economistas críticos do establishment, dentre eles Amartya Sen e Mahbub ul Haq. O PNUD incorpora tais contribuições e passa a divulgar o índice em seu Relatório Anual a partir de 1993.
A intenção dos proponentes era oferecer uma abordagem mais abrangente para avaliação da realidade de países. Assim o IDH incorpora três dimensões: i) saúde: ii) educação; e, iii) renda. Pra cada uma destas variáveis são aplicados indicadores que permitam uma comparação global. Assim temos a ponderação entre: i) expectativa de vida ao nascer; ii) taxa de escolarização e alfabetização; e, iii) PIB/capita.
IDH no Brasil e no mundo
Apesar dos avanços proporcionados pelo IDH, há um intenso movimento para que sejam incorporadas novas dimensões a tais indicadores, a exemplo da questão da sustentabilidade ambiental, dos padrões de concentração e desigualdade socioeconômica no interior dos países e de novas variáveis envolvendo a mensuração da qualidade de vida, dentre outros. Tudo isto deve ser uma questão de tempo para que sejam adicionadas nos relatórios oficiais.
No relatório recém divulgado, o Brasil caiu 5 posições, passando da posição 79ª para 84ª. Assim, apesar de o IDH brasileiro ter melhorado de 0,762 em 2018 para 0,765 em 2019, fomos ultrapassados por outros países ao longo do período. A metodologia adotada pressupõe que quanto mais próximo de 1, melhor o indicador. Assim por exemplo, nesse mesmo levantamento a Noruega apresentou um IDH de 0,957 na primeira posição, enquanto a última colocação é do Níger com um IDH de 0,394.
O Brasil se mantém próximo à média dos países da América Latina (0,766), mas permanece atrás de alguns como Chile (0,851), Argentina (0,845), Uruguai (0,817), Peru (0,777) e Colômbia (0,767). Caso a comparação seja com países membros da OCDE, a distância fica ainda maior, uma vez que a média dos mesmos é 0,900.
A evolução do IDH do Brasil pode ser observado no gráfico abaixo. Ao longo dos trinta anos de mensuração do índice, o país saiu de um valor 0,613 em 1990 para os atuais 0,765. Com certeza esse desempenho guarda relação com a taxa média de crescimento do PIB e também com a melhoria de acesso aos serviços públicos e/ou privados de saúde e educação. O fato é que durante esse período o PIB/capita cresceu, assim como ocorreu também com os indicadores de longevidade e taxas de alfabetização e escolaridade.
A observação do IDH guarda particularidades quando se divide a sua evolução em períodos. No primeiro quinquênio, o crescimento foi mais expressivo (5,2%), inclusive porque a base de comparação era muito fraca. Já no segundo quinquênio, observa-se uma redução para 2,2%. O terceiro e quarto períodos apresentam uma recuperação de 3,9% e 4,0%, respectivamente. E a grande novidade foi exatamente o período 2015-2019, com o menor crescimento de todos – apenas 1,2%. Caso fosse possível incorporar os efeitos da tragédia de 2020, com certeza os números seriam ainda menores.
O importante a reter, porém, é que esse último período coincide exatamente com o início do austericídio. Todos devemos nos lembrar que Dilma Roussef, depois de eleita em outubro de 2014 em vitória apertada contra Aécio Neves, resolveu praticar um grave estelionato eleitoral. Chamou Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda e o economista conservador implementou uma política de redução de despesas orçamentárias, combinada com uma política monetária de juros elevados. A partir daí, a pauta da austeridade fiscal rigorosa entrou para a agenda dos sucessivos governos e nunca mais foi abandonada. A dupla Temer & Meirelles aprofundou a estratégia e Bolsonaro & Paulo Guedes estão dando as mostras de que os limites da maldade sempre podem ser ultrapassados.
Austericídio reduz o IDH
Os resultados de tal opção foram desastrosos para o país, em especial para a população de mais baixa renda. O desemprego foi buscado de forma ativa como solução para o equilíbrio macroeconômico e o nível de atividade foi sendo reduzido a cada ano. Os resultados dos PIBs desde então foram sofríveis e as despesas com saúde e educação foram comprimidas, na busca de atingir as sacrossantas metas de superávit primário.
Ora, como os três componentes do IDH são justamente PIB/capita, longevidade e taxa de alfabetização/escolaridade, não tinha como os resultados do quinquênio serem diferentes. O austericídio foi realmente nefasto para o conjunto da sociedade brasileira e os indicadores do IDH expressam muito bem essa triste realidade.
Apesar de todas as críticas que podem ser direcionadas à questão metodológica e também à insuficiência do IDH como único instrumento para avaliação de efetividade de políticas públicas, o fato concreto é que uma abordagem como essa de longa duração não desmente as intuições que se possam ter “a priori” na análise do caso brasileiro. Entre 2001 e 2012, por exemplo, o número de cidadãos em pobreza extrema foi reduzido em 75%. Ainda segundo o mesmo relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) em 2014, o número de brasileiros subalimentados caiu 80% entre 2002 e 2013. Assim, de acordo com o documento, o Brasil teria saído do Mapa da Fome naquele ano.
No entanto, em razão das políticas equivocadas que apontamos acima, o Brasil voltou novamente a esse mapa em 2018. Triste realidade para um país que já tinha trilhado o caminho da superação desse tipo de cicatriz de seu passado escravista e colonial. O IDH apenas reflete essa volta a um atraso secular.
* Paulo Kliass é Doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
Uma das maiores dificuldades existentes no campo da teoria econômica tradicional se refere a mecanismos e metodologias para avaliar, de forma abrangente e multidisciplinar, as capacidades de um determinado país. A informação que foi utilizada durante décadas resumia-se àquilo que era extraído da contabilidade nacional: o Produto Interno Bruto, o famoso PIB. Ocorre que tal número, tomado de forma isolada e a frio, pouco contribui para expressar e analisar a complexidade da realidade social, cultural, política e mesmo econômica de um país.
É compreensível que países com população mais reduzida e menor extensão territorial, por exemplo, venham a apresentar em média PIBs mais modestos. Afinal, esse indicador pretende refletir tudo aquilo que foi produzido sob a forma de bens e serviços em uma sociedade ao longo de um determinado período. Porém, o fator populacional não resolve toda a questão, pois ele depende da capacidade instalada de produção. Se não fosse assim, a China e a Índia deveriam ter há décadas os maiores PIBs do mundo. E o primeiro só agora começa a alcançar os Estados Unidos, em razão de seu elevado desenvolvimento econômico recente e não apenas por conta da condição de nação mais populosa do planeta.
Indicadores de desenvolvimento econômico e social
Em razão dessa dificuldade, começaram a surgir novos indicadores, com o objetivo de comparar a evolução de um determinado país no tempo e também permitir algum grau de comparação entre nações diferentes. O PIB per capita tenta avançar por esse caminho, ao dividir a capacidade de produção pelo número de habitantes. Porém, ainda assim permanecem dúvidas a respeito da qualidade de vida da população de tal país. E também não são esclarecidas questões a respeito de como os diferentes grupos sociais se apropriam daquilo o que é produzido. Ou seja, o PIB/capita também se revela pouco apropriado para compreendermos a questão das desigualdades no interior de uma formação social.
Assim foram sendo construídos novas famílias de indicadores. O IDH nasce desse tipo de insuficiência, a partir dos trabalhos elaborados ao longo das décadas de 1980 e 1990 por alguns economistas críticos do establishment, dentre eles Amartya Sen e Mahbub ul Haq. O PNUD incorpora tais contribuições e passa a divulgar o índice em seu Relatório Anual a partir de 1993.
A intenção dos proponentes era oferecer uma abordagem mais abrangente para avaliação da realidade de países. Assim o IDH incorpora três dimensões: i) saúde: ii) educação; e, iii) renda. Pra cada uma destas variáveis são aplicados indicadores que permitam uma comparação global. Assim temos a ponderação entre: i) expectativa de vida ao nascer; ii) taxa de escolarização e alfabetização; e, iii) PIB/capita.
IDH no Brasil e no mundo
Apesar dos avanços proporcionados pelo IDH, há um intenso movimento para que sejam incorporadas novas dimensões a tais indicadores, a exemplo da questão da sustentabilidade ambiental, dos padrões de concentração e desigualdade socioeconômica no interior dos países e de novas variáveis envolvendo a mensuração da qualidade de vida, dentre outros. Tudo isto deve ser uma questão de tempo para que sejam adicionadas nos relatórios oficiais.
No relatório recém divulgado, o Brasil caiu 5 posições, passando da posição 79ª para 84ª. Assim, apesar de o IDH brasileiro ter melhorado de 0,762 em 2018 para 0,765 em 2019, fomos ultrapassados por outros países ao longo do período. A metodologia adotada pressupõe que quanto mais próximo de 1, melhor o indicador. Assim por exemplo, nesse mesmo levantamento a Noruega apresentou um IDH de 0,957 na primeira posição, enquanto a última colocação é do Níger com um IDH de 0,394.
O Brasil se mantém próximo à média dos países da América Latina (0,766), mas permanece atrás de alguns como Chile (0,851), Argentina (0,845), Uruguai (0,817), Peru (0,777) e Colômbia (0,767). Caso a comparação seja com países membros da OCDE, a distância fica ainda maior, uma vez que a média dos mesmos é 0,900.
A evolução do IDH do Brasil pode ser observado no gráfico abaixo. Ao longo dos trinta anos de mensuração do índice, o país saiu de um valor 0,613 em 1990 para os atuais 0,765. Com certeza esse desempenho guarda relação com a taxa média de crescimento do PIB e também com a melhoria de acesso aos serviços públicos e/ou privados de saúde e educação. O fato é que durante esse período o PIB/capita cresceu, assim como ocorreu também com os indicadores de longevidade e taxas de alfabetização e escolaridade.
A observação do IDH guarda particularidades quando se divide a sua evolução em períodos. No primeiro quinquênio, o crescimento foi mais expressivo (5,2%), inclusive porque a base de comparação era muito fraca. Já no segundo quinquênio, observa-se uma redução para 2,2%. O terceiro e quarto períodos apresentam uma recuperação de 3,9% e 4,0%, respectivamente. E a grande novidade foi exatamente o período 2015-2019, com o menor crescimento de todos – apenas 1,2%. Caso fosse possível incorporar os efeitos da tragédia de 2020, com certeza os números seriam ainda menores.
O importante a reter, porém, é que esse último período coincide exatamente com o início do austericídio. Todos devemos nos lembrar que Dilma Roussef, depois de eleita em outubro de 2014 em vitória apertada contra Aécio Neves, resolveu praticar um grave estelionato eleitoral. Chamou Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda e o economista conservador implementou uma política de redução de despesas orçamentárias, combinada com uma política monetária de juros elevados. A partir daí, a pauta da austeridade fiscal rigorosa entrou para a agenda dos sucessivos governos e nunca mais foi abandonada. A dupla Temer & Meirelles aprofundou a estratégia e Bolsonaro & Paulo Guedes estão dando as mostras de que os limites da maldade sempre podem ser ultrapassados.
Austericídio reduz o IDH
Os resultados de tal opção foram desastrosos para o país, em especial para a população de mais baixa renda. O desemprego foi buscado de forma ativa como solução para o equilíbrio macroeconômico e o nível de atividade foi sendo reduzido a cada ano. Os resultados dos PIBs desde então foram sofríveis e as despesas com saúde e educação foram comprimidas, na busca de atingir as sacrossantas metas de superávit primário.
Ora, como os três componentes do IDH são justamente PIB/capita, longevidade e taxa de alfabetização/escolaridade, não tinha como os resultados do quinquênio serem diferentes. O austericídio foi realmente nefasto para o conjunto da sociedade brasileira e os indicadores do IDH expressam muito bem essa triste realidade.
Apesar de todas as críticas que podem ser direcionadas à questão metodológica e também à insuficiência do IDH como único instrumento para avaliação de efetividade de políticas públicas, o fato concreto é que uma abordagem como essa de longa duração não desmente as intuições que se possam ter “a priori” na análise do caso brasileiro. Entre 2001 e 2012, por exemplo, o número de cidadãos em pobreza extrema foi reduzido em 75%. Ainda segundo o mesmo relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) em 2014, o número de brasileiros subalimentados caiu 80% entre 2002 e 2013. Assim, de acordo com o documento, o Brasil teria saído do Mapa da Fome naquele ano.
No entanto, em razão das políticas equivocadas que apontamos acima, o Brasil voltou novamente a esse mapa em 2018. Triste realidade para um país que já tinha trilhado o caminho da superação desse tipo de cicatriz de seu passado escravista e colonial. O IDH apenas reflete essa volta a um atraso secular.
* Paulo Kliass é Doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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