Por Amanda Cotrim, na revista Caros Amigos:
A história do confeiteiro Araújo da Silva, de 39 anos, que perdeu o segundo dia de prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) porque não teve autorização para sair do trabalho 10 minutos mais cedo nos diz muito sobre a sociedade em que vivemos, sobre as relações de trabalho, a luta de classes. Mas também nos diz muito sobre o jornalismo, e mais ainda sobre a linguagem. A matéria, republicada depois por inúmeros veículos de mídia no Brasil, é assinada por Luiz Fernando Toledo, José Maria Tomazela e Guilherme Mazeiro, desde São Paulo, e foi ao ar, pela última vez, às 21h44, do dia 25 de outubro (domingo), conforme diz o site do jornal O Estado de S. Paulo.
O texto destaca que Araújo estava trabalhando desde as cinco horas da manhã e não conseguiu chegar a tempo no local da prova (os portões fecharam às 13h) porque não teve autorização para sair mais cedo do trabalho. A pergunta que não quer calar: Quem é o patrão? Um personagem, tão importante quanto Araújo, foi silenciado na narrativa do jornal. Dizer que Araújo não teve autorização para sair antes do emprego soa impessoal. O jornal, que tem como evidência a relação patrão e empregado, coloca o patrão em segundo, terceiro... quarto lugar em relação ao entorno social e ideológico.
Palavras
É claro que o jornalismo não inventou o capitalismo, mas não quer dizer que por isso não jogue o jogo. Há duas questões na narrativa: a culpa (negada) do patrão e a expressão de Araújo “não consegui”, usada para descrever o fato. Há quem imagine que as palavras são irrelevantes. Engana-se. São cruciais. São elas que farão com que gente ocupe um lugar no discurso. Araújo, na posição de empregado, é falado pelo Jornal, que expõe sua submissão. Na correlação de forças com o patrão, ele “só” tem (com muitas aspas) a força de trabalho, e o patrão tem a força; o Jornal não só não a aborda com a devida proporção, como a silencia, expondo sua posição no discurso sobre o capitalismo, naturalizando a relação patrão e empregado.
A negação do patrão no texto é a materialidade ideológica que escapa ao controle do sujeito pela linguagem. Os jornais, de modo geral, todos os dias materializam essa disputa discursiva. Não é uma questão “só” de palavras, porque é essa disputa, como escreveu Sírio Possenti, que vai definir vencedores e perdedores nas outras disputas sociais e ideológicas, seja por vaga na universidade ou por salário.
Podemos interpretar que o silêncio produzido pelo Jornal sobre o patrão tem historicidade, o qual funciona como uma marca lingüística que também significa no discurso. Essa historicidade se produz no capitalismo. O silêncio produzido não se dá apenas pela falta, mas pelo excesso de outras palavras e sentidos que se inscrevem no texto. Silenciar um sentido é a garantia do movimento de outros sentidos, necessário na relação da língua com a ideologia. Quando dizemos algo, produzimos representações sobre o mundo.
Alguém poderá dizer: mas nas condições de produção da notícia (factual), o repórter só teve algumas horas para escrever a matéria, o que o impossibilitou de ouvir os dois lados, premissa discursiva do Jornalismo. Pode até ser, mas isso não deixa de ser uma condição para o seu discurso, pois não dar importância para o patrão e enunciá-lo na forma/sujeito oculta materializa a posição do Jornal na luta de classes, que se registra no discurso.
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* Amanda Cotrim é jornalista e mestranda no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) no Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp, com ênfase em análise de discurso da mídia.
A história do confeiteiro Araújo da Silva, de 39 anos, que perdeu o segundo dia de prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) porque não teve autorização para sair do trabalho 10 minutos mais cedo nos diz muito sobre a sociedade em que vivemos, sobre as relações de trabalho, a luta de classes. Mas também nos diz muito sobre o jornalismo, e mais ainda sobre a linguagem. A matéria, republicada depois por inúmeros veículos de mídia no Brasil, é assinada por Luiz Fernando Toledo, José Maria Tomazela e Guilherme Mazeiro, desde São Paulo, e foi ao ar, pela última vez, às 21h44, do dia 25 de outubro (domingo), conforme diz o site do jornal O Estado de S. Paulo.
O texto destaca que Araújo estava trabalhando desde as cinco horas da manhã e não conseguiu chegar a tempo no local da prova (os portões fecharam às 13h) porque não teve autorização para sair mais cedo do trabalho. A pergunta que não quer calar: Quem é o patrão? Um personagem, tão importante quanto Araújo, foi silenciado na narrativa do jornal. Dizer que Araújo não teve autorização para sair antes do emprego soa impessoal. O jornal, que tem como evidência a relação patrão e empregado, coloca o patrão em segundo, terceiro... quarto lugar em relação ao entorno social e ideológico.
Palavras
É claro que o jornalismo não inventou o capitalismo, mas não quer dizer que por isso não jogue o jogo. Há duas questões na narrativa: a culpa (negada) do patrão e a expressão de Araújo “não consegui”, usada para descrever o fato. Há quem imagine que as palavras são irrelevantes. Engana-se. São cruciais. São elas que farão com que gente ocupe um lugar no discurso. Araújo, na posição de empregado, é falado pelo Jornal, que expõe sua submissão. Na correlação de forças com o patrão, ele “só” tem (com muitas aspas) a força de trabalho, e o patrão tem a força; o Jornal não só não a aborda com a devida proporção, como a silencia, expondo sua posição no discurso sobre o capitalismo, naturalizando a relação patrão e empregado.
A negação do patrão no texto é a materialidade ideológica que escapa ao controle do sujeito pela linguagem. Os jornais, de modo geral, todos os dias materializam essa disputa discursiva. Não é uma questão “só” de palavras, porque é essa disputa, como escreveu Sírio Possenti, que vai definir vencedores e perdedores nas outras disputas sociais e ideológicas, seja por vaga na universidade ou por salário.
Podemos interpretar que o silêncio produzido pelo Jornal sobre o patrão tem historicidade, o qual funciona como uma marca lingüística que também significa no discurso. Essa historicidade se produz no capitalismo. O silêncio produzido não se dá apenas pela falta, mas pelo excesso de outras palavras e sentidos que se inscrevem no texto. Silenciar um sentido é a garantia do movimento de outros sentidos, necessário na relação da língua com a ideologia. Quando dizemos algo, produzimos representações sobre o mundo.
Alguém poderá dizer: mas nas condições de produção da notícia (factual), o repórter só teve algumas horas para escrever a matéria, o que o impossibilitou de ouvir os dois lados, premissa discursiva do Jornalismo. Pode até ser, mas isso não deixa de ser uma condição para o seu discurso, pois não dar importância para o patrão e enunciá-lo na forma/sujeito oculta materializa a posição do Jornal na luta de classes, que se registra no discurso.
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* Amanda Cotrim é jornalista e mestranda no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) no Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp, com ênfase em análise de discurso da mídia.
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