O espetáculo macabro do incêndio da Catedral de Notre-Dame de Paris completou dois meses. As análises sobre a reação do presidente Emmanuel Macron em face do episódio foram bastante heterogêneas. Alguns especialistas acreditavam que Macron seria, em alguma medida, responsabilizado pela tragédia. Outros, por sua vez, destacaram a celeridade com a qual o presidente se apresentou à imprensa, com a promessa de soluções para a reconstrução da Catedral e com um discurso em tom de união nacional, dispensando acusações vãs que pudessem explicar o incêndio.
Em resumo: nem os arroubos nacionalistas de Nicolas Sarkozy, nem a letargia de François Hollande. Macron parecia aproveitar o estado de choque da população para investir na recuperação de duas coisas que havia perdido ao longo desses dois anos como presidente: a sua popularidade e o papel de moderador de uma França em crise.
Origens da “macromania”
Para compreender o fenômeno Macron, é necessário recuar até o ano eleitoral de 2017. Naquele contexto, o desgaste do impopular presidente François Hollande – que sequer tentou a reeleição – sinalizava que o Partido Socialista (PS) cederia as chaves do Palácio do Eliseu à François Fillon, candidato pela direita tradicional. Seria reeditado, então, o velho e conhecido processo de alternância entre as duas principais agremiações partidárias da república francesa.
Entretanto, graves escândalos de corrupção minaram a poderosa candidatura de François Fillon, abrindo espaço para o crescimento dos extremos. De um lado, o nacionalismo xenófobo e neoprotecionista de Marine le Pen. Do outro, o socialismo antiquado de Jean-Luc Mélenchon. Ideologicamente, ambos divergiam em quase todos os temas da agenda social, econômica e política, muito embora os dois recorressem ao léxico populista, realizando ataques esporádicos à imprensa e ao establishment. À época, a maioria do eleitorado francês não parecia disposta a buscar soluções pelas vias mais radicais, não obstante o descrédito dos políticos tradicionais.
Captando de forma magistral o espírito do eleitor médio, Macron surfou na onda da moderação. Para tanto, lançou mão de todos os tipos de ambiguidades disponíveis, preocupando-se menos com as contradições do que com os possíveis resultados eleitorais que a imagem de conciliador poderia trazer. Apesar de os paradoxos soarem mais do que evidentes entre a parcela mais atenta do eleitorado, Macron logrou êxito ao se transformar em “candidato sensação”, reorganizando de forma decisiva o tabuleiro eleitoral com seu pequeno e recém-fundado “movimento” Em Marcha! – uma forma capciosa de evitar o termo “partido”.
O campo simbólico foi particularmente bem trabalhado. A equipe de Macron massificou a ideia de que ele era não apenas o conciliador perfeito para unir a França, mas também o único com imagem e postura à altura das exigências do cargo máximo do país. A construção de contrastes com as elites políticas tradicionais operava em dois níveis: de um lado, salientando a sujeira da corrupção que manchava a centro-direita e, de outro lado, ofuscar Benoît Hamon explorando erros e fraquezas do PS, à época materializado em Hollande – um presidente considerado desajeitado e, por essa razão, alvo constante de deboche nas redes sociais.
Ao longo da disputa, Macron soube investir na sua imagem de futuro presidente. Sempre impecável e muito bem articulado, mas disposto a ser descontraído nos momentos certos, evitando cair na seriedade insossa da classe política tradicional. Um jovem de 39 anos, com boa aparência, bem sucedido e casado com uma interessante mulher mais velha. No campo simbólico, tudo parecia convergir para seu objetivo.
Na dimensão discursiva, o tema-chave era a antipolítica. Apresentou-se como um técnico “de fora” – nem de esquerda, nem de direita –, imune aos vícios do establishment e… Voilà! Em algumas semanas, Macron já decolava nas pesquisas de intenção de voto e ultrapassando os favoritos de outrora. Conseguiu o segundo turno dos sonhos: a República (Macron) contra o nacional-populismo (Marine le Pen). Conforme previsto, a posição dos principais candidatos derrotados – à exceção de Mélenchon – seguiu a vereda do “voto útil republicano”, orientando as bases a fazer a opção por Macron. Resultado: uma vitória esmagadora sobre a adversária, com 66% dos votos.
Imagem demais, substância de menos
Não se pode duvidar da capacidade estratégica de Macron e de sua equipe. Fundar um partido do zero, ganhar as eleições presidenciais na primeira disputa e ainda eleger mais da metade dos deputados da Assembleia Nacional não são realizações desprezíveis. Mas, como era previsível, o capital político obtido naquele pleito não foi suficiente para solucionar a intrincada rede de contradições, falsas conciliações e ambiguidades que compunham a equação de sua vitória. Após a posse, seria necessário e urgente mergulhar no campo prático, que por sua própria natureza é avesso a frases feitas.
Pierre Bourdieu, ao analisar a moda como um fenômeno dinâmico de disputa e poder, concluiu que as grifes se sustentam por meio de um circuito de crença coletiva. Os impactos emocionais que uma marca provoca não são fruto do aspecto material ou tangível, mas sim da sua dimensão simbólica, carregando todo um complexo e intrincado aparato de conceitos e significados. É evidente que o simbólico é igualmente importante para entender o mundo político, mas, neste caso, trata-se de um campo que é multidimensional por natureza. Para além dos símbolos, muitas outras categorias de variáveis entram em ação e se combinam.
O presidente não é um estilista. Seu cargo não pode estar alicerçado sobre pilares estéticos e imagéticos. É preciso muito mais, sobretudo em uma democracia consolidada, onde o mandatário deve sempre estar apto a apresentar propostas críveis para os impasses do país e ofertar soluções para as demandas da massa heterogênea de cidadãos. Para vencer as eleições, a estratégia de Macron foi nitidamente bem sucedida. Mas, uma vez no poder, nem o melhor marqueteiro consegue convencer o povo de que é possível governar com slogans ou – contrariando a lógica mais elementar – ocupar posições opostas do espectro político ao mesmo tempo.
Uma parte do eleitorado esperava – um tanto ingenuamente – que, ao derrotar o populismo de direita de Le Pen e ao garantir uma sólida base no parlamento, Macron governaria para todos, desbloqueando impasses e afastando o clima de incerteza que rondava o país. Passados dois anos de sua posse e dois meses do incêndio de Notre-Dame, a grife Macron é considerada démodé por 70% da população, principalmente entre aqueles que preferem vestir coletes amarelos.
* Leandro Gavião é doutor em História Política (UERJ) e professor da Universidade Católica de Petrópolis e da Pós-Graduação do Curso Clio-Damásio; Tanguy Baghdadi é mestre em Relações Internacionais (PUC-Rio), professor do Curso Clio-Damásio e membro-fundador do podcast Petit Journal.
Em resumo: nem os arroubos nacionalistas de Nicolas Sarkozy, nem a letargia de François Hollande. Macron parecia aproveitar o estado de choque da população para investir na recuperação de duas coisas que havia perdido ao longo desses dois anos como presidente: a sua popularidade e o papel de moderador de uma França em crise.
Origens da “macromania”
Para compreender o fenômeno Macron, é necessário recuar até o ano eleitoral de 2017. Naquele contexto, o desgaste do impopular presidente François Hollande – que sequer tentou a reeleição – sinalizava que o Partido Socialista (PS) cederia as chaves do Palácio do Eliseu à François Fillon, candidato pela direita tradicional. Seria reeditado, então, o velho e conhecido processo de alternância entre as duas principais agremiações partidárias da república francesa.
Entretanto, graves escândalos de corrupção minaram a poderosa candidatura de François Fillon, abrindo espaço para o crescimento dos extremos. De um lado, o nacionalismo xenófobo e neoprotecionista de Marine le Pen. Do outro, o socialismo antiquado de Jean-Luc Mélenchon. Ideologicamente, ambos divergiam em quase todos os temas da agenda social, econômica e política, muito embora os dois recorressem ao léxico populista, realizando ataques esporádicos à imprensa e ao establishment. À época, a maioria do eleitorado francês não parecia disposta a buscar soluções pelas vias mais radicais, não obstante o descrédito dos políticos tradicionais.
Captando de forma magistral o espírito do eleitor médio, Macron surfou na onda da moderação. Para tanto, lançou mão de todos os tipos de ambiguidades disponíveis, preocupando-se menos com as contradições do que com os possíveis resultados eleitorais que a imagem de conciliador poderia trazer. Apesar de os paradoxos soarem mais do que evidentes entre a parcela mais atenta do eleitorado, Macron logrou êxito ao se transformar em “candidato sensação”, reorganizando de forma decisiva o tabuleiro eleitoral com seu pequeno e recém-fundado “movimento” Em Marcha! – uma forma capciosa de evitar o termo “partido”.
O campo simbólico foi particularmente bem trabalhado. A equipe de Macron massificou a ideia de que ele era não apenas o conciliador perfeito para unir a França, mas também o único com imagem e postura à altura das exigências do cargo máximo do país. A construção de contrastes com as elites políticas tradicionais operava em dois níveis: de um lado, salientando a sujeira da corrupção que manchava a centro-direita e, de outro lado, ofuscar Benoît Hamon explorando erros e fraquezas do PS, à época materializado em Hollande – um presidente considerado desajeitado e, por essa razão, alvo constante de deboche nas redes sociais.
Ao longo da disputa, Macron soube investir na sua imagem de futuro presidente. Sempre impecável e muito bem articulado, mas disposto a ser descontraído nos momentos certos, evitando cair na seriedade insossa da classe política tradicional. Um jovem de 39 anos, com boa aparência, bem sucedido e casado com uma interessante mulher mais velha. No campo simbólico, tudo parecia convergir para seu objetivo.
Na dimensão discursiva, o tema-chave era a antipolítica. Apresentou-se como um técnico “de fora” – nem de esquerda, nem de direita –, imune aos vícios do establishment e… Voilà! Em algumas semanas, Macron já decolava nas pesquisas de intenção de voto e ultrapassando os favoritos de outrora. Conseguiu o segundo turno dos sonhos: a República (Macron) contra o nacional-populismo (Marine le Pen). Conforme previsto, a posição dos principais candidatos derrotados – à exceção de Mélenchon – seguiu a vereda do “voto útil republicano”, orientando as bases a fazer a opção por Macron. Resultado: uma vitória esmagadora sobre a adversária, com 66% dos votos.
Imagem demais, substância de menos
Não se pode duvidar da capacidade estratégica de Macron e de sua equipe. Fundar um partido do zero, ganhar as eleições presidenciais na primeira disputa e ainda eleger mais da metade dos deputados da Assembleia Nacional não são realizações desprezíveis. Mas, como era previsível, o capital político obtido naquele pleito não foi suficiente para solucionar a intrincada rede de contradições, falsas conciliações e ambiguidades que compunham a equação de sua vitória. Após a posse, seria necessário e urgente mergulhar no campo prático, que por sua própria natureza é avesso a frases feitas.
Pierre Bourdieu, ao analisar a moda como um fenômeno dinâmico de disputa e poder, concluiu que as grifes se sustentam por meio de um circuito de crença coletiva. Os impactos emocionais que uma marca provoca não são fruto do aspecto material ou tangível, mas sim da sua dimensão simbólica, carregando todo um complexo e intrincado aparato de conceitos e significados. É evidente que o simbólico é igualmente importante para entender o mundo político, mas, neste caso, trata-se de um campo que é multidimensional por natureza. Para além dos símbolos, muitas outras categorias de variáveis entram em ação e se combinam.
O presidente não é um estilista. Seu cargo não pode estar alicerçado sobre pilares estéticos e imagéticos. É preciso muito mais, sobretudo em uma democracia consolidada, onde o mandatário deve sempre estar apto a apresentar propostas críveis para os impasses do país e ofertar soluções para as demandas da massa heterogênea de cidadãos. Para vencer as eleições, a estratégia de Macron foi nitidamente bem sucedida. Mas, uma vez no poder, nem o melhor marqueteiro consegue convencer o povo de que é possível governar com slogans ou – contrariando a lógica mais elementar – ocupar posições opostas do espectro político ao mesmo tempo.
Uma parte do eleitorado esperava – um tanto ingenuamente – que, ao derrotar o populismo de direita de Le Pen e ao garantir uma sólida base no parlamento, Macron governaria para todos, desbloqueando impasses e afastando o clima de incerteza que rondava o país. Passados dois anos de sua posse e dois meses do incêndio de Notre-Dame, a grife Macron é considerada démodé por 70% da população, principalmente entre aqueles que preferem vestir coletes amarelos.
* Leandro Gavião é doutor em História Política (UERJ) e professor da Universidade Católica de Petrópolis e da Pós-Graduação do Curso Clio-Damásio; Tanguy Baghdadi é mestre em Relações Internacionais (PUC-Rio), professor do Curso Clio-Damásio e membro-fundador do podcast Petit Journal.
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