Por Thaiane Mendonça, na revista Teoria e Debate:
O início de 2019 foi conturbado no cenário político com a troca do governo federal. Dentre os diversos assuntos na pauta da mídia nacional, as milícias tomaram grande parte. Antes uma questão mais restrita ao Rio de Janeiro, ainda que não exclusiva do estado, agora passou a ser assunto nacional. Toda essa exposição suscitou questionamentos sobre a origem das milícias, sua atuação nas comunidades e, principalmente, sua relação com o poder e o governo.
As milícias são um fenômeno relacionado particularmente ao Rio de Janeiro e que por muitos anos foi tratado de forma restrita ao território do estado. Contudo, o fato de o filho do presidente da República ter aparentes relações com esses grupos fez com que o tema assumisse proporção nacional, suscitando debate e comentários sobre suas características. Historicamente, o termo “milícia” não é novidade e foi utilizado com frequência mesmo para designar forças armadas e guardas nacionais.
No caso do Brasil contemporâneo, o termo é utilizado para designar grupos formados principalmente por policiais e ex-policiais (militares, geralmente), bombeiros e agentes penitenciários com treinamento militar, portanto pertencentes às instituições estatais, que se dão a função de “proteger” e “fornecer” segurança para uma localidade. Geralmente, as milícias se “responsabilizam” por proteger a comunidade de grupos de traficantes. Há diversas configurações possíveis para esses grupos, alguns contando até mesmo com civis. É inegável, contudo, que a grande maioria é resposta e consequência de anos de políticas de segurança falhas e pouco efetivas.
Os grupos mais comuns atualmente são aqueles que eram chamados de “grupos de extermínio” a partir dos anos 1960 principalmente na Zona Oeste do Rio e na Baixada Fluminense, mas que também podiam ser encontrados em outras cidades do país. A particularidade interessante dos grupos hoje em dia está na diversificação dos “serviços” oferecidos. Além de prover segurança, muitos deles controlam o fornecimento local de botijões de gás, pedágio e taxa para a proteção, sinal clandestino de TV a cabo e linhas de transporte alternativo. Além disso, há o claro controle militarizado de parcelas do território em que atuam. A população, em vez de tutelada pelo Estado, encontra-se sob a tutela desses grupos.
Historicamente, as favelas cresceram afastadas do controle disciplinar do Estado. Esse crescimento apartado dos “bairros formais” da cidade fez com que estabelecessem uma série de dinâmicas e relações sociais específicas que mesclam o legal e o ilegal. Por essa razão e também pela particular geografia dos morros cariocas, a partir dos anos 1970 as favelas tornaram-se o local ideal para os grupos narcotraficantes, já que seriam partes da cidade que poderiam ser facilmente controladas.
Pelo fato de o comércio ilegal de drogas ser intrinsecamente violento, não são raros os confrontos entre grupos traficantes rivais buscando controlar ainda mais territórios para viabilizar seu negócio. Com isso, a população dessas comunidades sente-se cada vez mais ameaçada e insegura. Associado à grande insegurança da população local e a uma lógica de sociabilidade que emula as atividades do Estado, já que este sempre esteve presente de forma débil, o ambiente torna-se favorável ao estabelecimento de grupos como as milícias.
A história mais comum sobre a origem das milícias como se conhece hoje é que teriam surgido a partir da experiência de Rio das Pedras, bairro/favela da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, próximo a Jacarepaguá, Itanhangá e Anil. Inicialmente, havia um acordo tácito entre os moradores e o que se chamava “polícia mineira”. A função da polícia mineira era garantir a segurança dos moradores contra os grupos traficantes, e existia uma regra de conduta mais ou menos aceita e respeitada pelos dois lados. Havia, com isso, uma “paz cínica” no local, já que a polícia mineira mantinha o território e a sua população sob um controle militarizado à margem do controle estatal, provendo uma falsa sensação de segurança, pois eles impediam a atuação violenta dos grupos traficantes ao prover um serviço que deveria ser responsabilidade do Estado.
O que se observa em outras comunidades, contudo, é que a ideia de polícia mineira paulatinamente transformou-se no fenômeno mais similar ao que se tem hoje em dia com as milícias. Os grupos tornaram-se mais truculentos ao tentar conquistar novos territórios e não possuem mais laços específicos com a comunidade, como ocorria no caso da polícia mineira.
Em Rio das Pedras chama a atenção, desde os anos 1990, a relação simbiótica entre as lideranças locais e as associações de moradores e milícias, o que evidencia uma característica importante desses grupos: a tentativa de ocupar espaços nos poderes Legislativo e Executivo, com foco no estado e no município do Rio de Janeiro. Em certa medida, os políticos no Rio de Janeiro aceitavam as milícias e as consideravam uma forma de “autodefesa” contra o tráfico. Contudo, em 2008, jornalistas de O Dia foram presos e torturados pela milícia do Batan, na Zona Oeste, justamente quando preparavam uma reportagem sobre a atuação dos grupos.
Depois desse fato, as autoridades passaram a enxergar essa atuação com outro viés e, ainda em 2008, Marcelo Freixo, como deputado estadual (Psol-RJ), foi autor da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Milícias, responsável pela maior investigação dos grupos na cidade. Dentre os mais de duzentos indiciados por envolvimento com esses grupos estavam diversos vereadores e deputados do estado, principalmente ligados às milícias de Campo Grande e de Rio das Pedras, na Zona Oeste da cidade.
Dos indiciados pela CPI, é interessante mencionar o caso da milícia conhecida como Liga da Justiça. Recentemente soltos, os irmãos Jerominho, ex-vereador, e Natalino Guimarães, ex-deputado estadual, foram presos por comandar a Liga da Justiça, maior milícia a atuar na Zona Oeste da cidade. A atuação dos irmãos se dava predominantemente em Campo Grande, bairro mais populoso e um dos maiores colégios eleitorais da cidade.
Outro caso notável de envolvimento das milícias com a política no Rio de Janeiro foi o assassinato de Marielle Franco, vereadora pelo Psol, e de seu motorista Anderson Gomes em 2018. As investigações apontam que o crime teria sido motivado pela luta de Marielle contra uma prática comum das milícias, a grilagem, que consiste na construção, venda ou locação ilegal de imóveis. Ainda que a investigação não esteja concluída, o Ministério Público Federal indica que há “fortes indícios” de que o assassinato tenha sido cometido pelo Escritório do Crime, grupo que atua em Rio das Pedras.
O Escritório do Crime é justamente a milícia que foi ligada a Flávio Bolsonaro. Como foi divulgado pela mídia, quando o caso Queiroz veio a público, o ex-motorista de Flávio escondeu-se em Rio das Pedras, onde sua família supostamente operava um negócio de transporte alternativo, atividade comumente ligada às milícias. Assim como outros políticos durante os anos 2000, por diversas vezes a família Bolsonaro se pronunciou, minimizando o problema das milícias na cidade. É notável, contudo, que Flávio Bolsonaro tenha homenageado com a Medalha Tiradentes, honraria mais alta da Assembleia Legislativa, o ex-policial militar Adriano Nóbrega, suspeito de comandar uma milícia na Zona Oeste. Além disso, tanto a mulher quanto a filha de Nóbrega foram convidadas por Queiroz para integrar o gabinete de Flávio Bolsonaro.
Em outros momentos, a família Bolsonaro já havia proferido discursos com uma visão positiva das milícias e até mesmo contrária à CPI das Milícias em 2008. O que é relevante frisar é o fato de esse tipo de discurso favorável às milícias e sua atuação violenta, que submete uma parcela considerável da população carioca, agora está presente no alto nível da política nacional. A simbiose entre o Estado e as milícias está posta às claras com as notícias sobre o envolvimento de Flávio Bolsonaro, senador e filho do presidente da República, com pessoas comprovadamente ligadas a esses grupos.
Hoje em dia é corrente o discurso de que o tráfico deve ser contido e que as políticas de segurança pública no Rio de Janeiro não são eficientes para tanto. Apesar de ser fato que as políticas de segurança tentadas até o momento não obtiveram o sucesso esperado, não se deve achar que a “paz cínica” conquistada pelas milícias em algumas comunidades cariocas seja a solução para o problema de segurança da cidade. É preciso manter o foco na parcela da população que fica à mercê desses criminosos e de sua arbitrariedade, controle e violência. As milícias já estão espalhadas por diversas localidades da cidade, e sua relação com a política e o atual governo está cada vez mais evidente. Nesse cenário, é possível questionar que tipo de política de segurança pode se esperar da gestão de Bolsonaro.
* Thaiane Mendonça é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), mestre em Estudos Estratégicos pelo Instituto de Estudos Estratégicos (Inest/UFF) e pesquisadora do Lepdesp (Iesp/ESG) e do LaSInTec (Unifesp).
O início de 2019 foi conturbado no cenário político com a troca do governo federal. Dentre os diversos assuntos na pauta da mídia nacional, as milícias tomaram grande parte. Antes uma questão mais restrita ao Rio de Janeiro, ainda que não exclusiva do estado, agora passou a ser assunto nacional. Toda essa exposição suscitou questionamentos sobre a origem das milícias, sua atuação nas comunidades e, principalmente, sua relação com o poder e o governo.
As milícias são um fenômeno relacionado particularmente ao Rio de Janeiro e que por muitos anos foi tratado de forma restrita ao território do estado. Contudo, o fato de o filho do presidente da República ter aparentes relações com esses grupos fez com que o tema assumisse proporção nacional, suscitando debate e comentários sobre suas características. Historicamente, o termo “milícia” não é novidade e foi utilizado com frequência mesmo para designar forças armadas e guardas nacionais.
No caso do Brasil contemporâneo, o termo é utilizado para designar grupos formados principalmente por policiais e ex-policiais (militares, geralmente), bombeiros e agentes penitenciários com treinamento militar, portanto pertencentes às instituições estatais, que se dão a função de “proteger” e “fornecer” segurança para uma localidade. Geralmente, as milícias se “responsabilizam” por proteger a comunidade de grupos de traficantes. Há diversas configurações possíveis para esses grupos, alguns contando até mesmo com civis. É inegável, contudo, que a grande maioria é resposta e consequência de anos de políticas de segurança falhas e pouco efetivas.
Os grupos mais comuns atualmente são aqueles que eram chamados de “grupos de extermínio” a partir dos anos 1960 principalmente na Zona Oeste do Rio e na Baixada Fluminense, mas que também podiam ser encontrados em outras cidades do país. A particularidade interessante dos grupos hoje em dia está na diversificação dos “serviços” oferecidos. Além de prover segurança, muitos deles controlam o fornecimento local de botijões de gás, pedágio e taxa para a proteção, sinal clandestino de TV a cabo e linhas de transporte alternativo. Além disso, há o claro controle militarizado de parcelas do território em que atuam. A população, em vez de tutelada pelo Estado, encontra-se sob a tutela desses grupos.
Historicamente, as favelas cresceram afastadas do controle disciplinar do Estado. Esse crescimento apartado dos “bairros formais” da cidade fez com que estabelecessem uma série de dinâmicas e relações sociais específicas que mesclam o legal e o ilegal. Por essa razão e também pela particular geografia dos morros cariocas, a partir dos anos 1970 as favelas tornaram-se o local ideal para os grupos narcotraficantes, já que seriam partes da cidade que poderiam ser facilmente controladas.
Pelo fato de o comércio ilegal de drogas ser intrinsecamente violento, não são raros os confrontos entre grupos traficantes rivais buscando controlar ainda mais territórios para viabilizar seu negócio. Com isso, a população dessas comunidades sente-se cada vez mais ameaçada e insegura. Associado à grande insegurança da população local e a uma lógica de sociabilidade que emula as atividades do Estado, já que este sempre esteve presente de forma débil, o ambiente torna-se favorável ao estabelecimento de grupos como as milícias.
A história mais comum sobre a origem das milícias como se conhece hoje é que teriam surgido a partir da experiência de Rio das Pedras, bairro/favela da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, próximo a Jacarepaguá, Itanhangá e Anil. Inicialmente, havia um acordo tácito entre os moradores e o que se chamava “polícia mineira”. A função da polícia mineira era garantir a segurança dos moradores contra os grupos traficantes, e existia uma regra de conduta mais ou menos aceita e respeitada pelos dois lados. Havia, com isso, uma “paz cínica” no local, já que a polícia mineira mantinha o território e a sua população sob um controle militarizado à margem do controle estatal, provendo uma falsa sensação de segurança, pois eles impediam a atuação violenta dos grupos traficantes ao prover um serviço que deveria ser responsabilidade do Estado.
O que se observa em outras comunidades, contudo, é que a ideia de polícia mineira paulatinamente transformou-se no fenômeno mais similar ao que se tem hoje em dia com as milícias. Os grupos tornaram-se mais truculentos ao tentar conquistar novos territórios e não possuem mais laços específicos com a comunidade, como ocorria no caso da polícia mineira.
Em Rio das Pedras chama a atenção, desde os anos 1990, a relação simbiótica entre as lideranças locais e as associações de moradores e milícias, o que evidencia uma característica importante desses grupos: a tentativa de ocupar espaços nos poderes Legislativo e Executivo, com foco no estado e no município do Rio de Janeiro. Em certa medida, os políticos no Rio de Janeiro aceitavam as milícias e as consideravam uma forma de “autodefesa” contra o tráfico. Contudo, em 2008, jornalistas de O Dia foram presos e torturados pela milícia do Batan, na Zona Oeste, justamente quando preparavam uma reportagem sobre a atuação dos grupos.
Depois desse fato, as autoridades passaram a enxergar essa atuação com outro viés e, ainda em 2008, Marcelo Freixo, como deputado estadual (Psol-RJ), foi autor da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Milícias, responsável pela maior investigação dos grupos na cidade. Dentre os mais de duzentos indiciados por envolvimento com esses grupos estavam diversos vereadores e deputados do estado, principalmente ligados às milícias de Campo Grande e de Rio das Pedras, na Zona Oeste da cidade.
Dos indiciados pela CPI, é interessante mencionar o caso da milícia conhecida como Liga da Justiça. Recentemente soltos, os irmãos Jerominho, ex-vereador, e Natalino Guimarães, ex-deputado estadual, foram presos por comandar a Liga da Justiça, maior milícia a atuar na Zona Oeste da cidade. A atuação dos irmãos se dava predominantemente em Campo Grande, bairro mais populoso e um dos maiores colégios eleitorais da cidade.
Outro caso notável de envolvimento das milícias com a política no Rio de Janeiro foi o assassinato de Marielle Franco, vereadora pelo Psol, e de seu motorista Anderson Gomes em 2018. As investigações apontam que o crime teria sido motivado pela luta de Marielle contra uma prática comum das milícias, a grilagem, que consiste na construção, venda ou locação ilegal de imóveis. Ainda que a investigação não esteja concluída, o Ministério Público Federal indica que há “fortes indícios” de que o assassinato tenha sido cometido pelo Escritório do Crime, grupo que atua em Rio das Pedras.
O Escritório do Crime é justamente a milícia que foi ligada a Flávio Bolsonaro. Como foi divulgado pela mídia, quando o caso Queiroz veio a público, o ex-motorista de Flávio escondeu-se em Rio das Pedras, onde sua família supostamente operava um negócio de transporte alternativo, atividade comumente ligada às milícias. Assim como outros políticos durante os anos 2000, por diversas vezes a família Bolsonaro se pronunciou, minimizando o problema das milícias na cidade. É notável, contudo, que Flávio Bolsonaro tenha homenageado com a Medalha Tiradentes, honraria mais alta da Assembleia Legislativa, o ex-policial militar Adriano Nóbrega, suspeito de comandar uma milícia na Zona Oeste. Além disso, tanto a mulher quanto a filha de Nóbrega foram convidadas por Queiroz para integrar o gabinete de Flávio Bolsonaro.
Em outros momentos, a família Bolsonaro já havia proferido discursos com uma visão positiva das milícias e até mesmo contrária à CPI das Milícias em 2008. O que é relevante frisar é o fato de esse tipo de discurso favorável às milícias e sua atuação violenta, que submete uma parcela considerável da população carioca, agora está presente no alto nível da política nacional. A simbiose entre o Estado e as milícias está posta às claras com as notícias sobre o envolvimento de Flávio Bolsonaro, senador e filho do presidente da República, com pessoas comprovadamente ligadas a esses grupos.
Hoje em dia é corrente o discurso de que o tráfico deve ser contido e que as políticas de segurança pública no Rio de Janeiro não são eficientes para tanto. Apesar de ser fato que as políticas de segurança tentadas até o momento não obtiveram o sucesso esperado, não se deve achar que a “paz cínica” conquistada pelas milícias em algumas comunidades cariocas seja a solução para o problema de segurança da cidade. É preciso manter o foco na parcela da população que fica à mercê desses criminosos e de sua arbitrariedade, controle e violência. As milícias já estão espalhadas por diversas localidades da cidade, e sua relação com a política e o atual governo está cada vez mais evidente. Nesse cenário, é possível questionar que tipo de política de segurança pode se esperar da gestão de Bolsonaro.
* Thaiane Mendonça é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), mestre em Estudos Estratégicos pelo Instituto de Estudos Estratégicos (Inest/UFF) e pesquisadora do Lepdesp (Iesp/ESG) e do LaSInTec (Unifesp).
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