Por Antonio Luiz M. C. Costa, na revista CartaCapital:
O G-20, não custa lembrar, foi uma consequência indireta da decisão do governo Lula de articular 20 e poucos países periféricos na reunião de Cancún de agosto de 2003, para se contrapor ao G-7 e sua pretensão de abertura unilateral e incondicional dos mercados dos países periféricos. O projeto da Alca foi definitivamente bloqueado e iniciou-se uma ofensiva para aprofundar laços diplomáticos e comerciais com os vizinhos e o Sul do mundo.
O G-7 (então G-8 com a Rússia, sócia honorária de 1997 a 2014) havia sido até então o centro das decisões econômicas, capaz de se impor às demais 200 nações sem discussão. Quando surgiu, em 1975, reunia todas as maiores economias capitalistas e 70% do Produto Mundial Bruto, mas o quadro mudou. A economia da China tornou-se a segunda do mundo e Brasil e Índia superaram alguns fundadores do G-7, cuja participação caiu para a metade da produção mundial.
O episódio de Cancún demonstrou ser impossível continuar a ignorar a realidade e o G-20, até então um quarto dos fundos do G-7, foi promovido a fórum principal.
Apesar de sua legitimidade para responder pelo restante do planeta ser não muito menos problemática do que a do grupo menor e algumas das economias mais importantes (notadamente Irã, Nigéria, Taiwan e Tailândia) ficarem de fora, o G-20 soma 85% da produção, dois terços da população mundial e 80% do comércio internacional, o suficiente para dar direção à economia do planeta, sem ter um número de participantes grande a ponto de inviabilizar o diálogo, como frequentemente acontece na Assembleia-Geral da ONU ou na OMC.
A reunião dos ministros da Fazenda de outubro de 2008, presidida por Guido Mantega, inaugurou o grupo em seu novo papel. Um mês depois, deu-se a primeira reunião dos chefes de Estado, seguida pela de abril de 2009, na qual o recém-empossado Barack Obama festejou Lula como “o cara, o político mais popular da Terra”. Ainda naquele ano, criou-se formalmente o BRICS, como contraponto ao G-7 dentro do espaço do G-20.
Nesse momento, após anos de críticas da oposição e da mídia à “política confusa” do Itamaraty, à “inutilidade” da aproximação com países da África e América Latina e ao suposto “encolhimento do Brasil”, o crescimento do papel dos países periféricos promovidos a emergentes, especialmente o nosso, foi reconhecido pela maior parte do mundo.
Para a Newsweek, o Brasil era o “astro da ONU”, para a Time, o “‘primeiro contrapeso real aos EUA no Ocidente”, e para a Der Spiegel, o “gigante gentil”. O País ganhava peso não por se submeter às potências ocidentais, mas por conduzir uma política independente.
Abriu-se uma janela de oportunidade para a construção de uma ordem mundial mais equilibrada, infelizmente mal aproveitada. Lula desentendeu-se com Obama por tentar costurar, em 2010, um acordo com o Irã muito semelhante àquele que a própria Casa Branca celebraria em 2015.
Em vez de tentar coordenar a saída da crise com os emergentes, as nações ricas recorreram à emissão em massa de moeda, redução de juros e desvalorizações competitivas para ganhar espaço no jogo comercial.
O apoio dos EUA aos golpes em Honduras e no Paraguai, a intervenção na Líbia e o apoio aos rebeldes na Síria enfraqueceram as perspectivas de cooperação entre G-7 e BRICS, demolidas de vez pelo apoio de Washington e Bruxelas ao golpe pró-ocidental na Ucrânia e pela ocupação russa da Crimeia.
A China, às voltas com problemas internos e regionais, retraiu-se no cenário mundial. E o Brasil, embora não tivesse mudado de orientação no governo de Dilma Rousseff, também recuou de seu papel internacional por um enfoque supostamente mais técnico e menos político, que na prática se mostrou menos eficaz e agregador tanto no plano internacional quanto no interno.
Foi um retrocesso, mas insignificante se comparado com o desastre após o golpe parlamentar de 2016. O governo interino rachou o Mercosul e esvaziou mais de uma década de trabalho de construção de confiança mútua e cooperação sul-americana.
Do chanceler José Serra, que ainda em 2012 se surpreendia ao descobrir que desde 1969 seu próprio país não se chamava mais “Estados Unidos do Brasil”, não se pode esperar a compreensão das mudanças no cenário internacional nas últimas décadas e da futilidade de querer retornar à alegre submissão dos anos 1990. Do novo ocupante da cadeira presidencial, muito menos.
A prioridade de Michel Temer em sua participação no G-20 era conseguir uma reunião, uma cena, um aperto de mão capaz de legitimá-lo. Foi literalmente relegado a um canto e nem sequer teve o nome registrado na página oficial do grupo. Não foi acidente.
Ele não interessa aos outros BRICS. Já os líderes dos países ricos saberão se aproveitar da sua ânsia por validação e deixam claro que ela não sairá de graça. Será preciso muita submissão e muitas concessões (inclusive de petróleo) para sair melhor na foto. Mesmo assim não conseguirá um lugar como aquele que dignidade e independência chegaram a proporcionar.
À parte o vexame e o prejuízo ao interesse nacional, é preciso preocupar-se também com o futuro do grupo. O Brexit mostrou que as tendências desagregadoras continuam em alta e nem se fale das possibilidades de vitória da direita nacionalista em países como os Estados Unidos, a França e a Alemanha.
Se até agora o G-20 se mostrou pouco eficaz e incapaz de cooperar para responder em conjunto às crises econômicas, a perspectiva é de que isso se torne ainda mais improvável nos próximos anos. Ao mesmo tempo, é difícil imaginar em qual outro fórum os nós mais cruciais para o mundo poderão ser desatados.
O G-20, não custa lembrar, foi uma consequência indireta da decisão do governo Lula de articular 20 e poucos países periféricos na reunião de Cancún de agosto de 2003, para se contrapor ao G-7 e sua pretensão de abertura unilateral e incondicional dos mercados dos países periféricos. O projeto da Alca foi definitivamente bloqueado e iniciou-se uma ofensiva para aprofundar laços diplomáticos e comerciais com os vizinhos e o Sul do mundo.
O G-7 (então G-8 com a Rússia, sócia honorária de 1997 a 2014) havia sido até então o centro das decisões econômicas, capaz de se impor às demais 200 nações sem discussão. Quando surgiu, em 1975, reunia todas as maiores economias capitalistas e 70% do Produto Mundial Bruto, mas o quadro mudou. A economia da China tornou-se a segunda do mundo e Brasil e Índia superaram alguns fundadores do G-7, cuja participação caiu para a metade da produção mundial.
O episódio de Cancún demonstrou ser impossível continuar a ignorar a realidade e o G-20, até então um quarto dos fundos do G-7, foi promovido a fórum principal.
Apesar de sua legitimidade para responder pelo restante do planeta ser não muito menos problemática do que a do grupo menor e algumas das economias mais importantes (notadamente Irã, Nigéria, Taiwan e Tailândia) ficarem de fora, o G-20 soma 85% da produção, dois terços da população mundial e 80% do comércio internacional, o suficiente para dar direção à economia do planeta, sem ter um número de participantes grande a ponto de inviabilizar o diálogo, como frequentemente acontece na Assembleia-Geral da ONU ou na OMC.
A reunião dos ministros da Fazenda de outubro de 2008, presidida por Guido Mantega, inaugurou o grupo em seu novo papel. Um mês depois, deu-se a primeira reunião dos chefes de Estado, seguida pela de abril de 2009, na qual o recém-empossado Barack Obama festejou Lula como “o cara, o político mais popular da Terra”. Ainda naquele ano, criou-se formalmente o BRICS, como contraponto ao G-7 dentro do espaço do G-20.
Nesse momento, após anos de críticas da oposição e da mídia à “política confusa” do Itamaraty, à “inutilidade” da aproximação com países da África e América Latina e ao suposto “encolhimento do Brasil”, o crescimento do papel dos países periféricos promovidos a emergentes, especialmente o nosso, foi reconhecido pela maior parte do mundo.
Para a Newsweek, o Brasil era o “astro da ONU”, para a Time, o “‘primeiro contrapeso real aos EUA no Ocidente”, e para a Der Spiegel, o “gigante gentil”. O País ganhava peso não por se submeter às potências ocidentais, mas por conduzir uma política independente.
Abriu-se uma janela de oportunidade para a construção de uma ordem mundial mais equilibrada, infelizmente mal aproveitada. Lula desentendeu-se com Obama por tentar costurar, em 2010, um acordo com o Irã muito semelhante àquele que a própria Casa Branca celebraria em 2015.
Em vez de tentar coordenar a saída da crise com os emergentes, as nações ricas recorreram à emissão em massa de moeda, redução de juros e desvalorizações competitivas para ganhar espaço no jogo comercial.
O apoio dos EUA aos golpes em Honduras e no Paraguai, a intervenção na Líbia e o apoio aos rebeldes na Síria enfraqueceram as perspectivas de cooperação entre G-7 e BRICS, demolidas de vez pelo apoio de Washington e Bruxelas ao golpe pró-ocidental na Ucrânia e pela ocupação russa da Crimeia.
A China, às voltas com problemas internos e regionais, retraiu-se no cenário mundial. E o Brasil, embora não tivesse mudado de orientação no governo de Dilma Rousseff, também recuou de seu papel internacional por um enfoque supostamente mais técnico e menos político, que na prática se mostrou menos eficaz e agregador tanto no plano internacional quanto no interno.
Foi um retrocesso, mas insignificante se comparado com o desastre após o golpe parlamentar de 2016. O governo interino rachou o Mercosul e esvaziou mais de uma década de trabalho de construção de confiança mútua e cooperação sul-americana.
Do chanceler José Serra, que ainda em 2012 se surpreendia ao descobrir que desde 1969 seu próprio país não se chamava mais “Estados Unidos do Brasil”, não se pode esperar a compreensão das mudanças no cenário internacional nas últimas décadas e da futilidade de querer retornar à alegre submissão dos anos 1990. Do novo ocupante da cadeira presidencial, muito menos.
A prioridade de Michel Temer em sua participação no G-20 era conseguir uma reunião, uma cena, um aperto de mão capaz de legitimá-lo. Foi literalmente relegado a um canto e nem sequer teve o nome registrado na página oficial do grupo. Não foi acidente.
Ele não interessa aos outros BRICS. Já os líderes dos países ricos saberão se aproveitar da sua ânsia por validação e deixam claro que ela não sairá de graça. Será preciso muita submissão e muitas concessões (inclusive de petróleo) para sair melhor na foto. Mesmo assim não conseguirá um lugar como aquele que dignidade e independência chegaram a proporcionar.
À parte o vexame e o prejuízo ao interesse nacional, é preciso preocupar-se também com o futuro do grupo. O Brexit mostrou que as tendências desagregadoras continuam em alta e nem se fale das possibilidades de vitória da direita nacionalista em países como os Estados Unidos, a França e a Alemanha.
Se até agora o G-20 se mostrou pouco eficaz e incapaz de cooperar para responder em conjunto às crises econômicas, a perspectiva é de que isso se torne ainda mais improvável nos próximos anos. Ao mesmo tempo, é difícil imaginar em qual outro fórum os nós mais cruciais para o mundo poderão ser desatados.
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