Por Ricardo Carneiro, no site Carta Maior:
Em países nos quais o Estado não é capaz de garantir de forma democrática os seus monopólios fundadores, o da violência e o da moeda, não raro surgem as soluções ad hocpara essas atribuições. No primeiro caso, por meio de restrições crescentes à operação do Estado de direito e de forma mais radical, pela constituição de grupos paramilitares. No segundo, por soluções que atrelam a gestão da moeda a outra, mais forte, os currency boards. As variantes mitigadas dessas formas polares são recorrentes nas sociedades periféricas, onde não raro se observa o exercício do monopólio da violência, não por instituições democráticas, mas pelas burocracias, em particular a militar. Por sua vez, o poder da finança e a fragilidade do Estado podem ser tais que a gestão da moeda pode ser cedida incondicionalmente ao setor privado, por meio de formas extremadas do banco central independente.
O Brasil pode não ter chegado a esse ponto, mas a eleição de Bolsonaro está levando o país nesta direção. Embora, a opção de terceirizar o monopólio da violência não seja evidente, há, como veremos, o intuito de administrar esse monopólio por propostas que relativizam o Estado de direito e fazem antever crescente autoritarismo. A indicação do juiz Sérgio Moro, cuja ação à frente da Operação Lava Jato caracterizou-se por reiterada parcialidade, para um Ministério da Justiça turbinado, é um indicativo claro do projeto autoritário. Para se concentrar nesse objetivo, o projeto de poder Bolsonaro propõe como contrapartida uma gestão econômica ultraliberal, fundada na ampla primazia do mercado, com substancial encolhimento do Estado por meio da ampla e irrestrita abertura ao exterior, das privatizações de empresas e do sistema de financiamento público, da supressão de direitos trabalhistas e por último, mas não menos importante, da independência do Banco Central.
Para entender como esse projeto ganhou preeminência na sociedade, cabe discutir a sua articulação com três grupos sociais distintos. O primeiro deles, o menos numeroso, mas certamente o mais poderoso, é constituído pelo empresariado de todos os tipos e setores. Ressentidos com os avanços das conquistas trabalhistas e sociais dos governos do PT, em especial com a regulação do trabalho e de setores como o meio ambiente, esse segmento clama pela liberalização, que vê como condição essencial para a dinamização dos negócios e o controle sobre a força de trabalho. Pouco importa se essa liberalização será feita com violações de direitos humanos e deterioração das instituições democráticas. Aliás, a bem da verdade, os compromissos democráticos do empresariado brasileiro nunca foram sólidos. Seu apoio generalizado ao projeto Bolsonaro funda-se na sua leitura de que será um governo que usará o aparato do Estado para assegurar uma ordem social que viabilize a desregulação e o enriquecimento, mesmo que especulativo.
O segundo grupo é constituído pela classe média tradicional, composta majoritariamente de profissionais de nível superior que se empregam nas empresas privadas. Esse segmento sempre teve uma posição política conservadora, valorizando as liberdades vinculadas ao funcionamento do mercado – liberdade de escolha, de empreender etc. Não se pode afirmar, todavia, que tenha desprezado integralmente as liberdades democráticas, sobretudo quando elas estão associadas ao american way of life ou a lutas identitárias. A diminuição das oportunidades desde 2013, quando se inicia uma desaceleração econômica relevante, sucedida por uma crise econômica de grandes proporções, faz com que este segmento que sempre foi crítico do modelo de desenvolvimento do PT abandone crescentemente suas parcas aspirações democráticas em nome da almejada volta do dinamismo econômico. Cabe considerar também que, sobretudo em alguns centros urbanos, esses grupos foram atingidos de maneira relevante pela crescente insegurança associada ao aumento da criminalidade. Recorrer à desregulação e a um programa de segurança mais duro é uma decisão coerente para o grupo.
O terceiro e mais importante segmento, por seu número e diversidade, é a baixa ou nova classe média. Seus ganhos de renda e de padrão de consumo foram muito significativos durante os governos do PT, embora a natureza e o tipo de emprego não tenham evoluído pari passu, a despeito de ter ocorrido sua maior formalização. Na verdade, exceto por diferenças institucionais, ou de intensidade das políticas sociais – tanto no Brasil quanto nos demais países da América Latina –, as mudanças que alavancaram esse grupo foram produzidas, sobretudo, pelo barateamento dos bens de consumo duráveis associado à transformação industrial asiática e, particularmente, chinesa. Em razão da característica essencial da sua posição social, a desaceleração e, posteriormente, a crise explicitaram a insegurança e a possível reversibilidade dos seus ganhos, mediados pelos anseios de galgar padrões mais elevados de consumo.
Nesses estratos, para os quais os valores democráticos nunca foram muito fortes –reflexo dos níveis de educação e cidadania do país –, sacrificá-los no altar da retomada do crescimento não requer maiores ponderações. Há que considerar ainda duas de suas características: por serem de fato parcela do povo, estão muito mais sujeitos à violência que campeia nas cidades brasileiras. Parte deles se refugiou, até como mecanismo de defesa, em religiões sectárias, com destaque para as evangélicas, tornando-se, portanto, muito conservadores quanto aos costumes. Neste caso, o autoritarismo cumpre funções práticas, mas também ideológicas, presentes no machismo, no racismo, na intolerância religiosa etc.
À luz da caracterização desses atores e das suas relações com as duas âncoras, a econômica e a da segurança, como se pode imaginar o desdobramento de um governo Bolsonaro? O programa de segurança tem viés autoritário e várias propostas endurecem não só o tratamento da criminalidade, mas também do ativismo social. Seus objetivos principais são: investimento na modernização das forças policiais; eliminação das progressões de pena e saídas temporárias de presidiários; redução da maioridade penal para 16 anos; ampliação do direito de comprar e portar armas de fogo; proteção à ação das polícias, mesmo as violentas e injustificadas, por meio da exclusão de ilicitude; caracterização da invasão de propriedades como terrorismo; retirar da Constituição a relativização do direito de propriedade; e amenizar e redirecionar as políticas de direitos humanos.
Por meio desse programa será inevitável a atuação do governo no enquadramento dos vários tipos de ativismo, da militância social à identitária, bem como sua equiparação à criminalidade comum. É previsível, ademais, uma intensificação do combate às diversas formas de criminalidade. Quanto à corrupção, o futuro ministro da Justiça não faz segredo da sua admiração das dez medidas contra a corrupção, projeto de lei de iniciativa popular, originário de proposta do MPF em tramitação no Congresso, considerado por inúmeros juristas como incompatível, em vários aspectos, com o Estado de direito, especialmente, no que tange: o teste de integridade, o uso da prova ilícita no processo e a restrição do uso do habeas corpus.
Nesse contexto, a violência, tanto do Estado – reforçada por leis e práticas menos democráticas –, quanto dos agentes privados empoderados pelo acesso às armas de fogo e pelo discurso do ódio deverá se ampliar. Os resultados desse afrouxamento dos princípios do Estado de direito, numa sociedade pouco estruturada como a brasileira, certamente serão deletérios. A curto prazo, todavia, inclusive pelo efeito demonstração, isso poderá produzir uma melhora e uma sensação maior de segurança pública. Mas a sua permanência e mitigação do autoritarismo somente será viável se houver progresso simultâneo no campo econômico-social.
No plano da gestão econômica, a questão que se coloca é a das chances de um experimento ultraliberal produzir resultados numa economia periférica que, ademais, se encontra estagnada. Afora o enunciado de alguns princípios gerais, o plano de Guedes-Bolsonaro é bastante impreciso e sua discussão interna tem sido marcada por marchas e contramarchas, refletindo as divergências de dois grupos: o ultraliberal, comandado por Guedes, e o nacionalista liderado pelos militares. Ou seja, um programa de desregulação radical compreendendo privatização e internacionalização massivas enfrentará resistência parcial no próprio núcleo do poder. A revisão da proposta de Guedes quanto a privatizações extensivas e a presença significativa de militares nas áreas de Defesa e Infraestrutura indicam que esses segmentos deverão se manter imunes à ultra liberalização.
Cabe destacar que o programa pretende levar adiante a instituição de um novo regime fiscal, do qual a reforma da Previdência é a pedra angular. A despeito das várias propostas em discussão, a opção preferida seria a substituição da repartição simples, pela capitalização. Afora a própria concepção desse regime, muito mais um fundo de investimento individualizado do que uma Previdência e que deixa as aposentadorias a mercê dos ciclos econômicos e financeiros, há do ponto de vista fiscal custos de transição elevados. Os resultados desse regime, sobretudo em países nos quais a previdência pública é pouco significativa, são bastante deletérios. Não só a taxa de reposição dos rendimentos da vida laboral ativa é muito baixa, como também se observa faixas importantes de aposentados com baixíssima remuneração, constituindo uma camada de idosos miseráveis.
No que tange à legislação trabalhista, o próprio presidente eleito advertiu que o trabalhador teria que escolher entre direitos ou emprego. O seu vice-presidente, reiteradas vezes, criticou os direitos sociais, em particular o 13º salário e o adicional de férias. Notícias da extinção do abono salarial circulam diuturnamente. Tudo isto, somado a uma reforma tributária regressiva, como assinalado adiante, faz antever um rebaixamento de direitos e remunerações. Seu efeito econômico mais importante será o crescimento mais lento da massa salarial e, por essa via, do peso do consumo na demanda agregada e, por consequência, na sustentação do crescimento.
No que tange o tema fiscal, à pergunta de como os custos da transição da Previdência serão bancados, responde-se: com os resultados da privatização. Na verdade, a esta última também se atribuía o papel de reduzir o estoque da dívida pública. Todavia, por pressão dos militares, o núcleo duro das estatais, ou seja, aquelas que têm cotação de mercado – Petrobras, Eletrobrás e Banco do Brasil – e demais bancos públicos foi excluído do processo. Assim, sobraram empresas que, ou são deficitárias, ou possuem baixa rentabilidade e cuja venda pode reduzir, no futuro, a transferência de recursos do tesouro, mas nunca produzir um resultado patrimonial capaz de bancar a mudança do regime previdenciário e muito menos, a redução significativa da dívida pública. Isso implica que o objetivo de reduzir substancialmente a dívida deverá ser sacrificado, ou será necessariamente diluído no tempo, mas o da reforma da Previdência deverá ser pago, em maior medida, pela população. Reforça a conclusão acima a existência do congelamento dos gastos – corrigidos apenas pela inflação–, instituído pela EC 95, que vai inexoravelmente exacerbar a disputa de recursos entre a Previdência e demais gastos sociais.
O centro do programa de curto prazo é o equilíbrio fiscal, com a expectativa de obtenção de superávit primário em um ano e queda substancial do nominal em dois anos, o primeiro por meio de uma drástica redução de gastos primários e o segundo por uma queda dos juros decorrentes da improvável queda da dívida. No curto prazo, o ajuste seria acompanhado de uma reforma tributária regressiva com alíquota única de 20% no Imposto de Renda (IR) das pessoas físicas, extensiva a todos os rendimentos, e redução da tributação das empresas. Cálculos realizados por especialistas mostram que isto reduziria a arrecadação em torno de 0,5% do PIB, além de ser bastante regressiva, beneficiando proporcionalmente os muito ricos. Um ajuste de gastos primários de 2,5% do PIB, a curto prazo, dificilmente seria exequível. E se o fosse, constituir-se-ia numa enorme força contracionista sobre a economia.
O outro ponto crucial, que o novo governo pretende tratar de maneira radicalmente distinta é a inserção externa. De um lado, pretende uma rápida e unilateral liberalização comercial por meio da redução de tarifas e das barreiras não tarifárias. De outro, uma reinserção focada em preferências ideológicas e não considerações sobre o desempenho econômico. As hostilidades à China e ao mundo árabe, o descaso com acordos tradicionais como o Mercosul e, por fim, a crítica às políticas de meio ambiente configuram seus principais aspectos. Quanto à proteção da economia essa proposta é falha por desconhecer o novo padrão de comércio e Investimento Direto Externo (IDE) originado pelas cadeias globais de valor, que exige seletividade nas várias políticas de comércio exterior. Por sua vez, é conveniente lembrar que as duas principais origens do saldo brasileiro são a China e o Mercosul, sendo a primeira importante fonte de investimento direto. Com os Estados Unidos e a União Europeia temos tido déficits ou, no máximo, equilíbrio comercial e no caso desta última as restrições às nossas exportações agrícolas devem ampliar-se. Assim, além de ser uma proposta de inserção confusa e estrategicamente inconsistente ela deverá implicar, no curto prazo, a uma redução do saldo comercial configurando outra vertente da redução da demanda agregada da economia. Dada a previsão de desaceleração da economia mundial em 2019, e uma possível recessão em 2020, o impacto do setor externo pode ser ainda mais danoso à trajetória da nossa economia.
Quais as possibilidades de sucesso desse modelo econômico ultraliberal? Em primeiro lugar, isso deve ser pensado à luz das eventuais possibilidades de reações positivas no curto prazo, oriundas da melhora das expectativas e aumento da confiança e, consequentemente, da valorização de ativos e endividamento adicional para consumo das camadas de renda mais elevada. Ou seja, não se deve descartar que breves ciclos de preços de ativos (bolsa, dólar e talvez imóveis) possam dinamizar temporariamente a economia, embora no nosso país o peso desses ativos no patrimônio das famílias seja relativamente pequeno. Por sua vez, esses gastos serão contrabalançados pela contração fiscal, redução do superávit comercial e da massa salarial.
Afora o impacto positivo inicial, a dificuldade do modelo reside na sua ampliação e sustentabilidade. O big bang ultraliberal deve produzir uma onda não replicável. Num segundo momento, diante dos fatores contraditórios apontados acima e ainda com a redução do investimento público, o investimento privado vai precisar dar conta do dinamismo da economia. E aqui, as expectativas de longo prazo e os mecanismos de financiamento públicos, que estão sendo desmantelados terão um peso crucial. Imaginar que o investimento externo vai dar conta de tudo isso, como aliás pretendeu o programa econômico argentino recentemente, não parece crível. Não há registro de programas ultraliberais que tenham dado certo na América Latina por um período duradouro. Talvez a única exceção seja o Chile, país pequeno e ultra especializado. Ademais, isso foi levado a cabo numa ditadura militar que, nos vários momentos nos quais o experimento fracassou, bancou pela força a sua continuidade, utilizando-se também de vários instrumentos não liberais de intervenção na economia.
Não é difícil imaginar que, caso o modelo econômico de Guedes-Bolsonaro não produza resultados substantivos no campo social, a legitimidade do governo dependerá crescentemente da intensificação do poder repressivo formal e informal. Para o empresariado, além da eventual valorização de ativos, esta é uma condição importante para manter a força de trabalho sob controle e com salários moderados. Para a classe média tradicional, a ausência de oportunidades já será um fator de decepção, mas que pode ser apaziguado por ciclos especulativos intermitentes de preços de ativos durante os quais parte dela ascenda socialmente. Para a baixa classe média, cujas expectativas de progresso e temores de regressão só podem ser equacionadas pelo incremento da renda e do emprego, a crítica ao modelo deverá ser crescente. Assim, se não for possível se legitimar pela economia, será previsível, portanto, um endurecimento crescente do regime político. Ele poderá se direcionar para uma intensificação do autoritarismo, mas num quadro de baixo dinamismo econômico e social ele contará cada vez menos com o apoio das instituições – Parlamento, Judiciário, sociedade civil – e do ponto de vista popular, da nova classe média. Nesse contexto, para se manter no poder as forças que sustentam Bolsonaro deverão recorrer a mecanismo informais de violência, eventualmente pela constituição e operação de milícias. Até onde irá e quanto tempo durará isso é difícil prever. Ademais, isso não será independente da ação política das forças democráticas.
* Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
Em países nos quais o Estado não é capaz de garantir de forma democrática os seus monopólios fundadores, o da violência e o da moeda, não raro surgem as soluções ad hocpara essas atribuições. No primeiro caso, por meio de restrições crescentes à operação do Estado de direito e de forma mais radical, pela constituição de grupos paramilitares. No segundo, por soluções que atrelam a gestão da moeda a outra, mais forte, os currency boards. As variantes mitigadas dessas formas polares são recorrentes nas sociedades periféricas, onde não raro se observa o exercício do monopólio da violência, não por instituições democráticas, mas pelas burocracias, em particular a militar. Por sua vez, o poder da finança e a fragilidade do Estado podem ser tais que a gestão da moeda pode ser cedida incondicionalmente ao setor privado, por meio de formas extremadas do banco central independente.
O Brasil pode não ter chegado a esse ponto, mas a eleição de Bolsonaro está levando o país nesta direção. Embora, a opção de terceirizar o monopólio da violência não seja evidente, há, como veremos, o intuito de administrar esse monopólio por propostas que relativizam o Estado de direito e fazem antever crescente autoritarismo. A indicação do juiz Sérgio Moro, cuja ação à frente da Operação Lava Jato caracterizou-se por reiterada parcialidade, para um Ministério da Justiça turbinado, é um indicativo claro do projeto autoritário. Para se concentrar nesse objetivo, o projeto de poder Bolsonaro propõe como contrapartida uma gestão econômica ultraliberal, fundada na ampla primazia do mercado, com substancial encolhimento do Estado por meio da ampla e irrestrita abertura ao exterior, das privatizações de empresas e do sistema de financiamento público, da supressão de direitos trabalhistas e por último, mas não menos importante, da independência do Banco Central.
Para entender como esse projeto ganhou preeminência na sociedade, cabe discutir a sua articulação com três grupos sociais distintos. O primeiro deles, o menos numeroso, mas certamente o mais poderoso, é constituído pelo empresariado de todos os tipos e setores. Ressentidos com os avanços das conquistas trabalhistas e sociais dos governos do PT, em especial com a regulação do trabalho e de setores como o meio ambiente, esse segmento clama pela liberalização, que vê como condição essencial para a dinamização dos negócios e o controle sobre a força de trabalho. Pouco importa se essa liberalização será feita com violações de direitos humanos e deterioração das instituições democráticas. Aliás, a bem da verdade, os compromissos democráticos do empresariado brasileiro nunca foram sólidos. Seu apoio generalizado ao projeto Bolsonaro funda-se na sua leitura de que será um governo que usará o aparato do Estado para assegurar uma ordem social que viabilize a desregulação e o enriquecimento, mesmo que especulativo.
O segundo grupo é constituído pela classe média tradicional, composta majoritariamente de profissionais de nível superior que se empregam nas empresas privadas. Esse segmento sempre teve uma posição política conservadora, valorizando as liberdades vinculadas ao funcionamento do mercado – liberdade de escolha, de empreender etc. Não se pode afirmar, todavia, que tenha desprezado integralmente as liberdades democráticas, sobretudo quando elas estão associadas ao american way of life ou a lutas identitárias. A diminuição das oportunidades desde 2013, quando se inicia uma desaceleração econômica relevante, sucedida por uma crise econômica de grandes proporções, faz com que este segmento que sempre foi crítico do modelo de desenvolvimento do PT abandone crescentemente suas parcas aspirações democráticas em nome da almejada volta do dinamismo econômico. Cabe considerar também que, sobretudo em alguns centros urbanos, esses grupos foram atingidos de maneira relevante pela crescente insegurança associada ao aumento da criminalidade. Recorrer à desregulação e a um programa de segurança mais duro é uma decisão coerente para o grupo.
O terceiro e mais importante segmento, por seu número e diversidade, é a baixa ou nova classe média. Seus ganhos de renda e de padrão de consumo foram muito significativos durante os governos do PT, embora a natureza e o tipo de emprego não tenham evoluído pari passu, a despeito de ter ocorrido sua maior formalização. Na verdade, exceto por diferenças institucionais, ou de intensidade das políticas sociais – tanto no Brasil quanto nos demais países da América Latina –, as mudanças que alavancaram esse grupo foram produzidas, sobretudo, pelo barateamento dos bens de consumo duráveis associado à transformação industrial asiática e, particularmente, chinesa. Em razão da característica essencial da sua posição social, a desaceleração e, posteriormente, a crise explicitaram a insegurança e a possível reversibilidade dos seus ganhos, mediados pelos anseios de galgar padrões mais elevados de consumo.
Nesses estratos, para os quais os valores democráticos nunca foram muito fortes –reflexo dos níveis de educação e cidadania do país –, sacrificá-los no altar da retomada do crescimento não requer maiores ponderações. Há que considerar ainda duas de suas características: por serem de fato parcela do povo, estão muito mais sujeitos à violência que campeia nas cidades brasileiras. Parte deles se refugiou, até como mecanismo de defesa, em religiões sectárias, com destaque para as evangélicas, tornando-se, portanto, muito conservadores quanto aos costumes. Neste caso, o autoritarismo cumpre funções práticas, mas também ideológicas, presentes no machismo, no racismo, na intolerância religiosa etc.
À luz da caracterização desses atores e das suas relações com as duas âncoras, a econômica e a da segurança, como se pode imaginar o desdobramento de um governo Bolsonaro? O programa de segurança tem viés autoritário e várias propostas endurecem não só o tratamento da criminalidade, mas também do ativismo social. Seus objetivos principais são: investimento na modernização das forças policiais; eliminação das progressões de pena e saídas temporárias de presidiários; redução da maioridade penal para 16 anos; ampliação do direito de comprar e portar armas de fogo; proteção à ação das polícias, mesmo as violentas e injustificadas, por meio da exclusão de ilicitude; caracterização da invasão de propriedades como terrorismo; retirar da Constituição a relativização do direito de propriedade; e amenizar e redirecionar as políticas de direitos humanos.
Por meio desse programa será inevitável a atuação do governo no enquadramento dos vários tipos de ativismo, da militância social à identitária, bem como sua equiparação à criminalidade comum. É previsível, ademais, uma intensificação do combate às diversas formas de criminalidade. Quanto à corrupção, o futuro ministro da Justiça não faz segredo da sua admiração das dez medidas contra a corrupção, projeto de lei de iniciativa popular, originário de proposta do MPF em tramitação no Congresso, considerado por inúmeros juristas como incompatível, em vários aspectos, com o Estado de direito, especialmente, no que tange: o teste de integridade, o uso da prova ilícita no processo e a restrição do uso do habeas corpus.
Nesse contexto, a violência, tanto do Estado – reforçada por leis e práticas menos democráticas –, quanto dos agentes privados empoderados pelo acesso às armas de fogo e pelo discurso do ódio deverá se ampliar. Os resultados desse afrouxamento dos princípios do Estado de direito, numa sociedade pouco estruturada como a brasileira, certamente serão deletérios. A curto prazo, todavia, inclusive pelo efeito demonstração, isso poderá produzir uma melhora e uma sensação maior de segurança pública. Mas a sua permanência e mitigação do autoritarismo somente será viável se houver progresso simultâneo no campo econômico-social.
No plano da gestão econômica, a questão que se coloca é a das chances de um experimento ultraliberal produzir resultados numa economia periférica que, ademais, se encontra estagnada. Afora o enunciado de alguns princípios gerais, o plano de Guedes-Bolsonaro é bastante impreciso e sua discussão interna tem sido marcada por marchas e contramarchas, refletindo as divergências de dois grupos: o ultraliberal, comandado por Guedes, e o nacionalista liderado pelos militares. Ou seja, um programa de desregulação radical compreendendo privatização e internacionalização massivas enfrentará resistência parcial no próprio núcleo do poder. A revisão da proposta de Guedes quanto a privatizações extensivas e a presença significativa de militares nas áreas de Defesa e Infraestrutura indicam que esses segmentos deverão se manter imunes à ultra liberalização.
Cabe destacar que o programa pretende levar adiante a instituição de um novo regime fiscal, do qual a reforma da Previdência é a pedra angular. A despeito das várias propostas em discussão, a opção preferida seria a substituição da repartição simples, pela capitalização. Afora a própria concepção desse regime, muito mais um fundo de investimento individualizado do que uma Previdência e que deixa as aposentadorias a mercê dos ciclos econômicos e financeiros, há do ponto de vista fiscal custos de transição elevados. Os resultados desse regime, sobretudo em países nos quais a previdência pública é pouco significativa, são bastante deletérios. Não só a taxa de reposição dos rendimentos da vida laboral ativa é muito baixa, como também se observa faixas importantes de aposentados com baixíssima remuneração, constituindo uma camada de idosos miseráveis.
No que tange à legislação trabalhista, o próprio presidente eleito advertiu que o trabalhador teria que escolher entre direitos ou emprego. O seu vice-presidente, reiteradas vezes, criticou os direitos sociais, em particular o 13º salário e o adicional de férias. Notícias da extinção do abono salarial circulam diuturnamente. Tudo isto, somado a uma reforma tributária regressiva, como assinalado adiante, faz antever um rebaixamento de direitos e remunerações. Seu efeito econômico mais importante será o crescimento mais lento da massa salarial e, por essa via, do peso do consumo na demanda agregada e, por consequência, na sustentação do crescimento.
No que tange o tema fiscal, à pergunta de como os custos da transição da Previdência serão bancados, responde-se: com os resultados da privatização. Na verdade, a esta última também se atribuía o papel de reduzir o estoque da dívida pública. Todavia, por pressão dos militares, o núcleo duro das estatais, ou seja, aquelas que têm cotação de mercado – Petrobras, Eletrobrás e Banco do Brasil – e demais bancos públicos foi excluído do processo. Assim, sobraram empresas que, ou são deficitárias, ou possuem baixa rentabilidade e cuja venda pode reduzir, no futuro, a transferência de recursos do tesouro, mas nunca produzir um resultado patrimonial capaz de bancar a mudança do regime previdenciário e muito menos, a redução significativa da dívida pública. Isso implica que o objetivo de reduzir substancialmente a dívida deverá ser sacrificado, ou será necessariamente diluído no tempo, mas o da reforma da Previdência deverá ser pago, em maior medida, pela população. Reforça a conclusão acima a existência do congelamento dos gastos – corrigidos apenas pela inflação–, instituído pela EC 95, que vai inexoravelmente exacerbar a disputa de recursos entre a Previdência e demais gastos sociais.
O centro do programa de curto prazo é o equilíbrio fiscal, com a expectativa de obtenção de superávit primário em um ano e queda substancial do nominal em dois anos, o primeiro por meio de uma drástica redução de gastos primários e o segundo por uma queda dos juros decorrentes da improvável queda da dívida. No curto prazo, o ajuste seria acompanhado de uma reforma tributária regressiva com alíquota única de 20% no Imposto de Renda (IR) das pessoas físicas, extensiva a todos os rendimentos, e redução da tributação das empresas. Cálculos realizados por especialistas mostram que isto reduziria a arrecadação em torno de 0,5% do PIB, além de ser bastante regressiva, beneficiando proporcionalmente os muito ricos. Um ajuste de gastos primários de 2,5% do PIB, a curto prazo, dificilmente seria exequível. E se o fosse, constituir-se-ia numa enorme força contracionista sobre a economia.
O outro ponto crucial, que o novo governo pretende tratar de maneira radicalmente distinta é a inserção externa. De um lado, pretende uma rápida e unilateral liberalização comercial por meio da redução de tarifas e das barreiras não tarifárias. De outro, uma reinserção focada em preferências ideológicas e não considerações sobre o desempenho econômico. As hostilidades à China e ao mundo árabe, o descaso com acordos tradicionais como o Mercosul e, por fim, a crítica às políticas de meio ambiente configuram seus principais aspectos. Quanto à proteção da economia essa proposta é falha por desconhecer o novo padrão de comércio e Investimento Direto Externo (IDE) originado pelas cadeias globais de valor, que exige seletividade nas várias políticas de comércio exterior. Por sua vez, é conveniente lembrar que as duas principais origens do saldo brasileiro são a China e o Mercosul, sendo a primeira importante fonte de investimento direto. Com os Estados Unidos e a União Europeia temos tido déficits ou, no máximo, equilíbrio comercial e no caso desta última as restrições às nossas exportações agrícolas devem ampliar-se. Assim, além de ser uma proposta de inserção confusa e estrategicamente inconsistente ela deverá implicar, no curto prazo, a uma redução do saldo comercial configurando outra vertente da redução da demanda agregada da economia. Dada a previsão de desaceleração da economia mundial em 2019, e uma possível recessão em 2020, o impacto do setor externo pode ser ainda mais danoso à trajetória da nossa economia.
Quais as possibilidades de sucesso desse modelo econômico ultraliberal? Em primeiro lugar, isso deve ser pensado à luz das eventuais possibilidades de reações positivas no curto prazo, oriundas da melhora das expectativas e aumento da confiança e, consequentemente, da valorização de ativos e endividamento adicional para consumo das camadas de renda mais elevada. Ou seja, não se deve descartar que breves ciclos de preços de ativos (bolsa, dólar e talvez imóveis) possam dinamizar temporariamente a economia, embora no nosso país o peso desses ativos no patrimônio das famílias seja relativamente pequeno. Por sua vez, esses gastos serão contrabalançados pela contração fiscal, redução do superávit comercial e da massa salarial.
Afora o impacto positivo inicial, a dificuldade do modelo reside na sua ampliação e sustentabilidade. O big bang ultraliberal deve produzir uma onda não replicável. Num segundo momento, diante dos fatores contraditórios apontados acima e ainda com a redução do investimento público, o investimento privado vai precisar dar conta do dinamismo da economia. E aqui, as expectativas de longo prazo e os mecanismos de financiamento públicos, que estão sendo desmantelados terão um peso crucial. Imaginar que o investimento externo vai dar conta de tudo isso, como aliás pretendeu o programa econômico argentino recentemente, não parece crível. Não há registro de programas ultraliberais que tenham dado certo na América Latina por um período duradouro. Talvez a única exceção seja o Chile, país pequeno e ultra especializado. Ademais, isso foi levado a cabo numa ditadura militar que, nos vários momentos nos quais o experimento fracassou, bancou pela força a sua continuidade, utilizando-se também de vários instrumentos não liberais de intervenção na economia.
Não é difícil imaginar que, caso o modelo econômico de Guedes-Bolsonaro não produza resultados substantivos no campo social, a legitimidade do governo dependerá crescentemente da intensificação do poder repressivo formal e informal. Para o empresariado, além da eventual valorização de ativos, esta é uma condição importante para manter a força de trabalho sob controle e com salários moderados. Para a classe média tradicional, a ausência de oportunidades já será um fator de decepção, mas que pode ser apaziguado por ciclos especulativos intermitentes de preços de ativos durante os quais parte dela ascenda socialmente. Para a baixa classe média, cujas expectativas de progresso e temores de regressão só podem ser equacionadas pelo incremento da renda e do emprego, a crítica ao modelo deverá ser crescente. Assim, se não for possível se legitimar pela economia, será previsível, portanto, um endurecimento crescente do regime político. Ele poderá se direcionar para uma intensificação do autoritarismo, mas num quadro de baixo dinamismo econômico e social ele contará cada vez menos com o apoio das instituições – Parlamento, Judiciário, sociedade civil – e do ponto de vista popular, da nova classe média. Nesse contexto, para se manter no poder as forças que sustentam Bolsonaro deverão recorrer a mecanismo informais de violência, eventualmente pela constituição e operação de milícias. Até onde irá e quanto tempo durará isso é difícil prever. Ademais, isso não será independente da ação política das forças democráticas.
* Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
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