Por Sandra Russo, no site Carta Maior:
Em 14 de março de 2018, quatro balas na cabeça terminaram com a vida de Marielle Franco, no Rio de Janeiro. Seu acompanhante, o motorista Anderson Gomes, também morreu. Ambos saíam de uma reunião política (ela pertencia ao partido PSOL), quando um carro que os perseguia começou a disparar. Quatro atingiram a cabeça de Marielle, onde ela tinha guardadas suas ideias e sonhos, seus projetos para o seu povo, o mais fraco entre os mais fracos.
O Brasil obturado, vencido, o Brasil humilhado, um país que há anos não para de recebem chicotadas da realidade com forma de democracia transformada em ditadura de novo tipo, a despediu envergonhado. No dia seguinte, 50 mil pessoas foram ao seu enterro. O assassinato de Marielle foi uma prévia do que estava por vir, com a aceleração da militarização e da pilhagem dos recursos naturais da região. O mesmo poder, com as mesmas ideias e o mesmo comando estrangeiro, decidiu atuar para abortar possíveis reações populares na América Latina, eliminando lideranças sociais, lutadores pela paz e pelo meio ambiente e os direitos humanos, os quais passaram a ser mortos sistematicamente, em um roteiro que teve em Marielle um dos seus capítulos no Brasil.
“Mulher, negra, favelada (oriunda do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro) e defensora dos direitos humanos”, assim se apresentava a vereadora Marielle Franco nas redes sociais. Tinha 38 anos, uma filha de 19, e estava há 12 anos namorando outra mulher. Marielle nasceu e cresceu na favela, pobre entre os pobres, esmagada entre os esmagados, e era aos afrodescendentes que ela dedicava especialmente o seu trabalho e seus projetos, como o Programa Noturno de Acolhimento Infantil, para crianças cujos pais estudavam ou trabalhavam de noite, além da criação do Dia da Mulher Negra, e das campanhas de sensibilização sobre o acosso e a violência sexual nos transportes públicos.
Tempos depois, foram presos os seus assassinos, e descobriu-se que um deles era amigo do filho de Jair Bolsonaro, enquanto outro morava no mesmo condomínio do presidente. Não foi um escândalo midiático, como o bom senso esperava que fosse. Brasil ainda é uma carcaça de democracia envenenada com o elixir nazi. As armas liberadas e comercializadas para a população não têm como objetivo a autodefesa. São a ferramenta pela qual se naturaliza também a eliminação do outro, quando se considera uma ameaça. Essa política está se propagando a toda a região, eximindo as forças de segurança de cumprir seu papel de prevenir o delito, ao mesmo tempo em que fomenta a ideia do “todos contra todos”, e a sensação de viver rodeado de inimigos. E é o próprio poder estabelecido que dá forma e coloração a esse inimigo – que quase sempre é negro, e se não mestiço, e se é branco é pobre. Assim Bolsonaro resolve o dilema da segurança: com mais insegurança permanente e assassinatos impunes.
Marielle não só era negra, pobre, lésbica e feminista. Era vereadora. Eles resolveram agir antes que se tornasse um fenômeno muito maior: Lula está preso, o operário que saiu da miséria com esse mérito que eles nunca terão, porque já nasceram ricos, está fora do jogo graças a manobras jurídicas ilegais como as que fazem na Argentina com Cristina Fernández de Kirchner, que foi colocada no banco dos réus no julgamento mais bizarro e vergonhoso que já se viu. Com as quatro balas com as que mataram Marielle, eles disseram às mulheres negras, lésbicas, pobres e feministas que “nem sonhem em chegar a um lugar ao que não pertencem, pois isso é o que acontece”.
Marielle, que era socióloga porque estudou em uma universidade para setores populares, passou a se dedicar à ação política depois que uma de suas companheiras foi morta por uma bala perdida na favela, e ao saber como os bairros e assentamentos latino-americanos sofrem com a intervenção dos exércitos ou das polícias militares, em ações de “prevenção ao narcotráfico”. Sempre a mesma conversa. No fundo, não há prevenção, e sim cumplicidade.
A comoção pelo crime se estendeu por várias cidades do país e de outros lugares do mundo, e com epicentro na Maré, onde ela cresceu. O complexo de favelas tem quase 140 mil residentes e um dos piores índices de desenvolvimento humano do Rio. Porém, ela já é um ícone, com seu rosto belo e de olhos negros e profundos, os dentes grandes e expostos em um lindo e enorme sorriso. As ideias de Marielle sobreviveram, é estão presentes no rosto que seus seguidores carregam como bandeira, lembrando porque ela foi assassinada, razões pelas quais vale a pena viver, embora muitos morram por elas. E também devemos dizer que a América Latina é o cenário onde, há mais de cinco séculos, ocorrem esses mesmos crimes massivos e horríveis, e ainda assim, a região sempre preserva o nome daqueles, porque quando tudo parece se tornar trevas, costuma surgir um sorriso como o Marielle para nos lembrar que é preciso continuar.
Bolsonaro quer um Brasil onde os negros saibam qual é o seu lugar, que é o de doar suas vidas para ganhar a mera sobrevivência. Uma forma de desigualdade que se aproxima da escravidão. Negras serventes, atentas, caladas. Ele quer as mulheres negras a serviço do homem, que não se queixem e mantenham a comida quente, para quando chegue o seu marido, outro negro explorado, que volta para casa a recuperar as forças para possa ser explorado novamente no dia seguinte. Afinal, esse é o seu lugar. Assim como na Argentina, no Brasil o lugar do pobre também é a intempérie, o restaurante popular, a inundação, a comida vencida, o ruído das tripas. Querem que os sujeitos sejam sujeitados por uma triste ideia deles mesmos, que não merecem outra coisa e não devem se rebelar contra essa aberração que parece ser uma lei natural, não menos absurda que aquela que fazia os Lulas acreditarem que foram designados por Deus.
Desde o assassinato de Marielle, tem aumentado em vários países os crimes contra ativistas de setores populares ou de povos originários que lutam pelo acesso à água, e muitos deles com requintes de crueldade. É tão óbvio que estão fomentando uma guerra, que estão promovendo a morte, que estão espalhando a dor às pessoas que as únicas coisas que variam entre os países são as modalidades de ação e os intervalos entre os diferentes casos. O projeto, contudo, é o mesmo. Eliminar. Cortar o mal pela raiz, acabar com qualquer anseio por dignidade, esperança de superação, a ideia de alcançar politicamente os espaços que permitam recuperar o governo.
Estamos nessa encruzilhada aqui também. A maquinária mortal da nova direita neofascista é um dos eixos da neocolonização. Não trazem mais espelhinhos coloridos, e sim armas sofisticadas compradas nos Estados Unidos ou em Israel. O projeto é bastante simples: querem ficar com tudo para vender barato em seus países. Nesse contexto, há milhões de pessoas sobrando, e não há o menor pudor em agir para eliminá-las, de mil maneiras, e não só com balas, mas também com a fome ou a falta de alimentos ou de tetos para viver. A sua vida para eles não importa, pelo contrário.
Marielle Franco é um símbolo que eles odeiam, porque representa a potência que tem a vida de um pobre que tem chance de ser outra coisa. Por isso, não se pode esquecê-la.
* Publicado originalmente no site pagina12.com.ar. Tradução de Victor Farinelli.
Em 14 de março de 2018, quatro balas na cabeça terminaram com a vida de Marielle Franco, no Rio de Janeiro. Seu acompanhante, o motorista Anderson Gomes, também morreu. Ambos saíam de uma reunião política (ela pertencia ao partido PSOL), quando um carro que os perseguia começou a disparar. Quatro atingiram a cabeça de Marielle, onde ela tinha guardadas suas ideias e sonhos, seus projetos para o seu povo, o mais fraco entre os mais fracos.
O Brasil obturado, vencido, o Brasil humilhado, um país que há anos não para de recebem chicotadas da realidade com forma de democracia transformada em ditadura de novo tipo, a despediu envergonhado. No dia seguinte, 50 mil pessoas foram ao seu enterro. O assassinato de Marielle foi uma prévia do que estava por vir, com a aceleração da militarização e da pilhagem dos recursos naturais da região. O mesmo poder, com as mesmas ideias e o mesmo comando estrangeiro, decidiu atuar para abortar possíveis reações populares na América Latina, eliminando lideranças sociais, lutadores pela paz e pelo meio ambiente e os direitos humanos, os quais passaram a ser mortos sistematicamente, em um roteiro que teve em Marielle um dos seus capítulos no Brasil.
“Mulher, negra, favelada (oriunda do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro) e defensora dos direitos humanos”, assim se apresentava a vereadora Marielle Franco nas redes sociais. Tinha 38 anos, uma filha de 19, e estava há 12 anos namorando outra mulher. Marielle nasceu e cresceu na favela, pobre entre os pobres, esmagada entre os esmagados, e era aos afrodescendentes que ela dedicava especialmente o seu trabalho e seus projetos, como o Programa Noturno de Acolhimento Infantil, para crianças cujos pais estudavam ou trabalhavam de noite, além da criação do Dia da Mulher Negra, e das campanhas de sensibilização sobre o acosso e a violência sexual nos transportes públicos.
Tempos depois, foram presos os seus assassinos, e descobriu-se que um deles era amigo do filho de Jair Bolsonaro, enquanto outro morava no mesmo condomínio do presidente. Não foi um escândalo midiático, como o bom senso esperava que fosse. Brasil ainda é uma carcaça de democracia envenenada com o elixir nazi. As armas liberadas e comercializadas para a população não têm como objetivo a autodefesa. São a ferramenta pela qual se naturaliza também a eliminação do outro, quando se considera uma ameaça. Essa política está se propagando a toda a região, eximindo as forças de segurança de cumprir seu papel de prevenir o delito, ao mesmo tempo em que fomenta a ideia do “todos contra todos”, e a sensação de viver rodeado de inimigos. E é o próprio poder estabelecido que dá forma e coloração a esse inimigo – que quase sempre é negro, e se não mestiço, e se é branco é pobre. Assim Bolsonaro resolve o dilema da segurança: com mais insegurança permanente e assassinatos impunes.
Marielle não só era negra, pobre, lésbica e feminista. Era vereadora. Eles resolveram agir antes que se tornasse um fenômeno muito maior: Lula está preso, o operário que saiu da miséria com esse mérito que eles nunca terão, porque já nasceram ricos, está fora do jogo graças a manobras jurídicas ilegais como as que fazem na Argentina com Cristina Fernández de Kirchner, que foi colocada no banco dos réus no julgamento mais bizarro e vergonhoso que já se viu. Com as quatro balas com as que mataram Marielle, eles disseram às mulheres negras, lésbicas, pobres e feministas que “nem sonhem em chegar a um lugar ao que não pertencem, pois isso é o que acontece”.
Marielle, que era socióloga porque estudou em uma universidade para setores populares, passou a se dedicar à ação política depois que uma de suas companheiras foi morta por uma bala perdida na favela, e ao saber como os bairros e assentamentos latino-americanos sofrem com a intervenção dos exércitos ou das polícias militares, em ações de “prevenção ao narcotráfico”. Sempre a mesma conversa. No fundo, não há prevenção, e sim cumplicidade.
A comoção pelo crime se estendeu por várias cidades do país e de outros lugares do mundo, e com epicentro na Maré, onde ela cresceu. O complexo de favelas tem quase 140 mil residentes e um dos piores índices de desenvolvimento humano do Rio. Porém, ela já é um ícone, com seu rosto belo e de olhos negros e profundos, os dentes grandes e expostos em um lindo e enorme sorriso. As ideias de Marielle sobreviveram, é estão presentes no rosto que seus seguidores carregam como bandeira, lembrando porque ela foi assassinada, razões pelas quais vale a pena viver, embora muitos morram por elas. E também devemos dizer que a América Latina é o cenário onde, há mais de cinco séculos, ocorrem esses mesmos crimes massivos e horríveis, e ainda assim, a região sempre preserva o nome daqueles, porque quando tudo parece se tornar trevas, costuma surgir um sorriso como o Marielle para nos lembrar que é preciso continuar.
Bolsonaro quer um Brasil onde os negros saibam qual é o seu lugar, que é o de doar suas vidas para ganhar a mera sobrevivência. Uma forma de desigualdade que se aproxima da escravidão. Negras serventes, atentas, caladas. Ele quer as mulheres negras a serviço do homem, que não se queixem e mantenham a comida quente, para quando chegue o seu marido, outro negro explorado, que volta para casa a recuperar as forças para possa ser explorado novamente no dia seguinte. Afinal, esse é o seu lugar. Assim como na Argentina, no Brasil o lugar do pobre também é a intempérie, o restaurante popular, a inundação, a comida vencida, o ruído das tripas. Querem que os sujeitos sejam sujeitados por uma triste ideia deles mesmos, que não merecem outra coisa e não devem se rebelar contra essa aberração que parece ser uma lei natural, não menos absurda que aquela que fazia os Lulas acreditarem que foram designados por Deus.
Desde o assassinato de Marielle, tem aumentado em vários países os crimes contra ativistas de setores populares ou de povos originários que lutam pelo acesso à água, e muitos deles com requintes de crueldade. É tão óbvio que estão fomentando uma guerra, que estão promovendo a morte, que estão espalhando a dor às pessoas que as únicas coisas que variam entre os países são as modalidades de ação e os intervalos entre os diferentes casos. O projeto, contudo, é o mesmo. Eliminar. Cortar o mal pela raiz, acabar com qualquer anseio por dignidade, esperança de superação, a ideia de alcançar politicamente os espaços que permitam recuperar o governo.
Estamos nessa encruzilhada aqui também. A maquinária mortal da nova direita neofascista é um dos eixos da neocolonização. Não trazem mais espelhinhos coloridos, e sim armas sofisticadas compradas nos Estados Unidos ou em Israel. O projeto é bastante simples: querem ficar com tudo para vender barato em seus países. Nesse contexto, há milhões de pessoas sobrando, e não há o menor pudor em agir para eliminá-las, de mil maneiras, e não só com balas, mas também com a fome ou a falta de alimentos ou de tetos para viver. A sua vida para eles não importa, pelo contrário.
Marielle Franco é um símbolo que eles odeiam, porque representa a potência que tem a vida de um pobre que tem chance de ser outra coisa. Por isso, não se pode esquecê-la.
* Publicado originalmente no site pagina12.com.ar. Tradução de Victor Farinelli.
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